Eis o fim da religião?

A religião diminuiu drasticamente, mas será que podemos afirmar o mesmo da espiritualidade?

Ao olhar para a realidade contemporânea, notamos uma (pelo menos aparente) diminuição da dimensão religiosa e espiritual na sociedade. Sendo isto verdade, terá razão Karl Marx, como afirmam os neomarxistas? Vamos ver!

Karl Marx e a Religião

Karl Marx, para expressar a sua opinião sobre a religião, afirma metaforicamente que esta é o «ópio do povo» (Marx, 2010). Tal como a droga, esta tem uma dupla faceta: manifesta simultaneamente uma determinada miséria e um protesto contra essa própria miséria. A desgraça expressa pela religião é aquela vivida por tantos, não só no tempo do autor como na realidade dos nossos dias: a pobreza, a falta de estruturas, de apoios, de saúde, a fome, etc. Na expressão do autor, a miséria real.

Como ilustra o desabafo de Hécuba em As Troianas, «Fracos são os aliados que eu invoco, mas ao menos há qualquer coisa na simples invocação dos deuses, quando um de nós suporta um destino miserando», o assentimento religioso revela-se como uma consolação ilusória. Deste modo, ela é apenas necessária na medida em que serve de consolo para os que sofrem e de desejo, em modo de protesto, de um futuro melhor. Nas palavras de Ara Norenzayan, autor do livro Big Gods (2013),

«People want to escape suffering, but if they can’t get out of it, they want to find meaning. (…) For some reason, religion seems to give meaning to suffering – much more so than any secular ideal or belief that we know of.» (Nuwer, 2014)

Herdando o modo de pensar hegeliano, acerca da evolução da história, Marx acreditava que novas e melhores estruturas se formariam na sociedade, com o progresso científico e social que ia acontecendo. Assim, esta consolação e este protesto deixariam de ser necessários, e ao desaparecerem, desapareceria também a religião.

O ponto de partida para este comentário será então de nos apercebermos 1) que o percurso da história apresenta este progresso social e 2) se ocorreu o desaparecimento da religião. Podíamos, no entanto, ter ainda que perceber se existe uma ligação direta entre estes dois fatores, o que pediria uma abordagem mais profunda ao tema, do que aquela que é aqui possível.

Quanto ao primeiro ponto, constata-se que ao longo dos últimos séculos houve um exponencial desenvolvimento socioeconómico a nível mundial, especialmente nas últimas décadas. A título de exemplo, pois outros se poderiam trazer, trago este gráfico que nos mostra a percentagem de população mundial que vive em pobreza extrema, de 1820 até 2018.

Quanto ao desaparecimento da religião, a minha tese, de modo muito simples, é a seguinte: a religião diminuiu drasticamente, mas não podemos afirmar o mesmo com tanta segurança sobre a espiritualidade, como falarei mais adiante.

Religião e Espiritualidade

O conceito de religião foi amplamente discutido em aula, acabando por se utilizar normalmente as expressões fenómeno religioso e a experiência religiosa para determinar o objeto da filosofia da religião.

O Cambridge Dictionary define religião como «a crença e adoração de um deus ou deuses, ou qualquer sistema de crença e adoração deste tipo». Deste modo, podemos tirar duas definições que cabem sob este conceito: 1) o fenómeno religioso enquanto estrutura social, com ritos e atividades de culto; 2) a experiência religiosa enquanto desejo pessoal do infinito e da eternidade. Entendo que, para Marx, o termo religião englobaria estas duas definições. No entanto, para o trabalho, farei uma distinção, aplicando o termo religião para a primeira e o termo espiritualidade para a segunda.

Como dizia, parece-me que atualmente tem vindo a diminuir a religião mas não a espiritualidade. Na generalidade dos ditos países mais desenvolvidos, é patente uma diminuição da adesão às grandes religiões ou a ritos muito estruturados (ao contrário de países onde a pobreza é generalizada e onde ainda vemos o ritualismo culturalmente ainda muito presente). Nas palavras de um artigo da BBC:

«(…) nations that report the highest rates of atheism tend to be those that provide their citizens with relatively high economic, political and existential stability. “Security in society seems to diminish religious belief,” Zuckerman says. Capitalism, access to technology and education also seems to correlate with a corrosion of religiosity in some populations, he adds» (Nuwer, 2014).

 Porém, permanece no ser humano o desejo de perfeição e de infinito. O progresso – que diminui, de facto, a miséria em que vive grande parte da população – não acabou com este desejo de eternidade, apenas o transformou. Antes era manifesto na adesão a uma igreja (ou qualquer outra instituição religiosa) ou na profissão de fé num Ser Todo-Poderoso, esperando uma vida plena após a morte, agora, por exemplo, revela-se de modo mais implícito no culto da imagem (cosmética, operações plásticas, fama, etc.), e de modo mais explícito na adesão a técnicas meditativas e espiritualidades orientais de cariz individual – por exemplo, o Reiki ou o Yoga e como se pode ver no relatório da Centers for Disease Control and Prevention (Clarke et al., 2018) – ou de viagens pelo mundo realizadas à procura de um propósito – incluindo peregrinações, que curiosamente têm crescido exponencialmente (Walker, 2021).

Na minha opinião, muito ainda se poderia escrever para fundamentar e desenvolver o que aqui foi dito, mas, em suma, parece-me que podemos conceder alguma razão a Marx, na medida em que o desenvolvimento socioeconómico, ao aumentar o nível de vida da população, diminui a adesão às grandes religiões. Não podemos, porém, conceder toda a razão, pois creio que existe no homem um desejo insaciável de infinito, que nenhum progresso histórico poderá eliminar.

Fotografia de Vasco Lucas Pires SJ no Santuário de Nossa Senhora da Lapa, em Lamego

Bibliografia

Clarke, T. C., Black, L. I., Barnes, P. M., Nahin, R. L., & Stussman, B. J. (2018). Use of Yoga, Meditation, and Chiropractors Among U.S. Adults Aged 18 and Over (Estatístico N.o 235; NCHS Data Brief). Centers for Disease Control and Prevention. https://www.cdc.gov/nchs/data/databriefs/db325-h.pdf

Eurípides. (2018). Tragédias. III. Imprensa Nacional Casa da Moeda.

Macfarlane, R. (2012, junho 15). Rites of way: Behind the pilgrimage revival. The Guardian. https://www.theguardian.com/books/2012/jun/15/rites-of-way-pilgrimage-walks

Marx, K. (2010). Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: 1843 (R. Enderle & L. de Deus, Trads.; 2. ed., rev). Boitempo.

Norenzayan, A. (2013). Big gods: How religion transformed cooperation and conflict. Princeton Univ. Press.

Nuwer, R. (2014, dezembro 19). Will religion ever disappear? BBC. https://www.bbc.com/future/article/20141219-will-religion-ever-disappear

Share of population living in extreme poverty, Wolrd, 1820 to 2018. (sem data). [Our Wolrd in Data]. Our World in Data. https://ourworldindata.org/grapher/share-of-population-living-in-extreme-poverty-cost-of-basic-needs?country=~OWID_WRL

Walker, K. (2021, julho 12). Pilgrimages could be the next post-COVID travel trend. National Geographic. https://www.nationalgeographic.com/travel/article/could-pilgrimages-be-the-next-post-covid-travel-trend