É preciso morrer para viver de facto!

Vamos falar do limite. Não me parece que um ciclo de artigos sobre temas fundamentais possa estar completo sem do limite e da morte como experiência humana fundamental.

Vamos falar do limite. Não me parece que um ciclo de artigos sobre temas fundamentais possa estar completo sem do limite e da morte como experiência humana fundamental. Este é um dos grandes temas que tem percorrido a história do pensamento, que tem levado a debates tão antigos como a origem da vida social ou tão recentes como o transumanismo.

A sociedade contemporânea recebe muitos rótulos: líquida, individualista, virtual, secularizada, pós-moderna… Conforme o âmbito em que nos movamos, estes títulos vão sendo repetidos e confirmados como síntese de um conjunto de atitudes e disposições fundamentais dos nossos contemporâneos. Um dos epítetos que mais me tem provocado é da autoria do monge e biblista italiano Luciano Manicardi: vivemos numa sociedade pós-mortal (1).

Creio que não precisamos de fazer muto esforço para encontrar a pertinência desta descrição. Os nossos ambientes são marcados pelo ritmo frenético, pela produtividade, pela eficiência, pelo auto-melhoramento. Tenho dúvidas que, à força de tanta exposição, sejamos imunes a esta tendências! Este afã de optimização gera uma imagem ideal, o “melhor eu” que eu quero que os outros vejam e confirmem. As redes sociais vivem disto, são a plataforma em que outros vêem, aprovam e se alimentam mutuamente com a sua atenção.

Este afã de optimização gera uma imagem ideal, o “melhor eu” que eu quero que os outros vejam e confirmem. As redes sociais vivem disto, são a plataforma em que outros vêem, aprovam e se alimentam mutuamente com a sua atenção. 

Mas este estilo optimizado de vida não tem espaço para o limite. As partilhas em torno da fragilidade são feitas com uma capa de verniz, como experiências assépticas, sem lugar para a indefinição ou para a dor gratuita. Esconde-se a morte, esconde-se a crueza da perda e da frustração. Seria um engano pensar que as fotografias #nofilter ou que os testamentos elogiosos de luto estão fora deste esquema. São formas idealizadas de atenuar e, inevitavelmente, de marginar a dor importada pela experiência do limite.

Este comportamento não é novo nem reprovável. É uma expressão actualizada do mesmo mecanismo de preservação que faz pensar no que se deve vestir para um evento importante, para não destoar; e que nos fez crescer em sociedades estáveis com uma identidade cultural bem marcada. Estes padrões de comportamento assentam no reconhecimento do outro como parte essencial da minha constituição enquanto pessoa.

O problema surge quando, nas várias esferas da vida, este ego imortal idealizado começa a confundir-se com o real e impõe a sua tirania. Todos nós, nesta sede de vida que nos habita, buscamos a realização, que, tantas vezes, é um sinónimo de busca de sentido, de completude, de felicidade. Até aqui, tudo bem. Contudo, nesta busca, é fácil – diria até inevitável – uma certa exclusão do limite, que, por natureza, nos tolhe possibilidades que quereríamos explorar. Podemos pensar em exemplos inúmeros, desde o compromisso das horas de sono em prol da produtividade laboral até às cirurgias estéticas. Desde os mitos antigos até aos mitos contemporâneos, chega-nos uma certeza: o homem não quer ser limitado. A avidez de opções, auto-atribuídas e realizadas, é o critério de exclusão de todas as realidades que nos constranjam, mesmo que este constrangimento seja para nossa preservação!

Esquecemos, neste estilo de vida, algo de fundamental. O limite não é apenas uma condição terminal em que se esbarra. O limite é responsável por definir a forma concreta dum objecto, de um animal ou de uma pessoa; desenhando o contorno e as singularidades, permite que o objecto seja apreendido enquanto tal. Assim, é o limite que nos permite ver a beleza de cada ente concreto, e sem ele nenhuma beleza poderemos apreender.

Neste encalço, é possível compreender os sucessivos apelos que cruzam a história da Filosofia, a pensar na morte:

A preparação para a morte tem prioridade sobre a preparação para a vida. Esta dispõe de recursos suficientes, nós é que nos precipitamos com demasiada avidez sobre esses recursos: por isso mesmo nos parece, e sempre parecerá, que alguma coisa nos falta! (2)

Não creio que este apelo seja uma mera exortação tétrica com o intuito de privar o leitor de toda a sua alegria e ânimo de viver. Pretende sim tornar presente, não de forma acidental mas com intencionalidade e crescente consciência, a dimensão constitutiva do limite. Sou limitado e isso não é alienável, sou um eu limitado, ao qual corresponde uma beleza particular.

Se dermos um salto até ao séc. XX, podemos encontrar um aprofundamento desta visão. Em Ser e Tempo, Martin Heidegger leva-nos a considerar o homem não a partir dos conceitos abstractos, mas da sua realidade concreta, da sua experiência real (3). A identidade do homem desvela-se num processo histórico, num contínuo aprofundamento da sua origem e identidade. O Homem é um Dasein, um ser-aí, situado na sua existência. Esta existência, precisamente por ser situada, tem um traço fundamental: o homem é para a morte. A morte é a impossibilidade última das possibilidades do homem. Nesta experiência derradeira, dá-se afirmação do limite, desenha-se a nossa fronteira com máxima clareza. Já não há “E se…?” nem pontas soltas que não conseguimos atar; ali, estamos nus na nossa identidade íntima, que nos faz pessoas. Ser-para-a-morte significa que a concentração última do limite humano polariza a nossa existência e torna-nos possível ir tomando consciência da identidade. A descoberta de mim mesmo situado no mundo passa por assumir o meu limite; sem isto, a vida não se torna verdadeiramente humana, apenas uma abstracção quotidiana (4).

Tudo isto parece um bocado pesado e carregado – e é. Não seria honesto falar do limite sem admitir a sua dimensão privativa, limitativa. Todavia, esta é a privação própria da definição, da descoberta da identidade concreta! Nestes tempos correntes, em que assistimos ao desflorar de uma guerra entre megapotências, a custo de muitas vidas inocentes, é imperioso que voltemos ao nosso limite. O nosso limite, o que nos confere beleza, é a margem que polariza a nossa vida e lhe confere, pela sua crescente delimitação, uma beleza mais concreta, mais consistente, mais palpável na existência comum. A actualização do memento mori, enquanto experiência em que nos descobrirmos situados num contexto social, histórico, cultural, é um apelo contra-cultural, contra a indefinição optimizadora. Se nos deixarmos provocar por esta experiência-limite, atravessando a sua agrura, talvez possamos descobrir o rosto do nosso Outro – longínquo ou próximo – na sua beleza particular, além da indiferença ou da reclusão

 


(1) Luciano Manicardi, Memória do limite (Prior Velho: Paulinas Editora, 2017).

(2) Lúcio Aneu Séneca, Cartas a Lucílio, trad. J.A. Segurado Campos, 7a (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2021), 218.

(3) Martin Heidegger, Being and Time, trad. John Macquarrie e Robinson (Oxford, UK: Blackwell Publishers, 1962), §6–7.

(4) Ibid., §48–51.

Imagem: Markus Spiske