Quando falamos de Ética ou Bioética, somos levados intuitivamente a pensar as grandes questões éticas, sobretudo as mais fraturantes (aborto, eutanásia, gestação de substituição, etc.).
Ainda assim, há todo um terreno entre princípio e fim de vida, todo um entretanto que pede não só reflexão, mas especial atenção. Na verdade, é deste entretanto que nasce uma boa cultura do cuidado que prepara o caminho para a discussão das grandes questões fraturantes. E é neste entretanto, feito de relações, que se dá o mais fundamental de toda a Medicina e dos de cuidados de saúde, em geral – a relação médico-doente (ou profissional de saúde-pessoa doente) [1]. Fundamental, não só no sentido da sua importância, mas sobretudo pelo caráter fundacional que assume na Medicina. Sem esta relação, não podemos conhecer as queixas do doente, o diagnóstico e a proposta terapêutica.
Contudo, é neste entretanto que, diariamente, ouvimos dizer da parte dos profissionais de saúde “não há nada mais a oferecer a este doente”. As questões fraturantes jogam-se, afinal, no quotidiano de um profissional de saúde.
Para ajudar a refrear o nosso impulso a saltar para “as questões que interessam”, mantendo-nos naquilo que é basilar e fundamental, interessa, primeiro, sublinhar dois aspetos: 1) é necessário perceber a importância da definição de conceitos, isto é, a exposição e esclarecimento daquilo que é o nosso possível terreno comum, sem o qual não poderia haver discussão; e 2) a própria clarificação generalícia dos conceitos fundamentais – o que é a Ética e a Moral? O que é a Bioética? De que são feitas?
Somente com estes dois pressupostos bem assentes, podemos entregarmo-nos com verdade ao entretanto dos cuidados de saúde, buscando sempre o que mais podemos oferecer a qualquer doente.
[Terreno comum]
A tentação comum de desejar o imediatismo, a resolução e a resposta rápida transforma o mundo numa trama de problemas para os quais temos de ter soluções à mão, onde a reflexão profunda não tem espaço. Demitindo-nos de pensar profundamente nos nossos atos, entramos naquilo que Hannah Arendt define como “banalidade do mal” – uma sucessão de hábitos irrefletidos, sem nunca olhar à raiz profunda da sua realização, nem ao fim desejado (ou intenção). O mal radical não surge de uma dimensão demoníaca do humano que deseja intencionalmente o mal, mas surge da pessoa que, irrefletidamente, apenas faz o que tem para fazer, não olhando a fundo para aquilo que faz. (Foi assim que Eichmann, general nazi responsável pela rede de transporte ferroviário de mercadoria, durante a Segunda Guerra Mundial, se defendeu: “apenas cumpri ordens, e cumpri-as eximiamente”. No entanto, deliberadamente fez por ignorar que a mercadoria que transportava eram pessoas humanas a caminho dos campos de extermínio).
Portanto, quem dá o salto para as respostas imediatas e ideológicas, sem se lançar a uma reflexão aprofundada, corre o risco que correu Eichmann. E, como avisa S. Agostinho nas suas Confissões, as pessoas «amam somente o próprio parecer, não por ser o verdadeiro, mas por ser o deles» [2]. Por este motivo, são necessárias a reflexão e a discussão nos domínios da Ética. Mas para o fazer não de forma irrefletida, garantindo uma discussão cuidada e rica, é necessário estabelecer um terreno comum e discutir a partir do princípio. Há conceitos que são da Biologia e da Medicina, segundo os quais podemos ter cientificamente certeza do que falamos. Por outro lado, temos conceitos éticos e filosóficos, onde a abstração e a “incerteza científica” têm o seu espaço. À Biologia o que é da Biologia e à Filosofia o que é da Filosofia.
Tome-se o exemplo da discussão sobre o início da vida (muitas vezes abordada nas questões como o aborto, inseminação artificial, ou embriões excedentários): a Biologia define claramente o início da vida quando dois gâmetas (potência de vida) se unem – num processo de fecundação. Ora, não se pode dizer que não se trata de vida, aliás, é errado dizê-lo do ponto de vista biológico, médico, científico. E sendo produto de duas vidas humanas, então com certeza que é uma vida humana, pois um ser de uma espécie não pode nascer senão como produto da sua espécie. Por outro lado, surge o conceito de pessoa. Sobre este conceito, a Biologia não consegue dizer nada, uma vez que a pessoa, definida nas suas dimensões psico-socio-bio-espiritual, é um conceito puramente filosófico.
Portanto, não esquecer, à Biologia o que é da Biologia e à Filosofia o que é da Filosofia. Assim, partindo de um terreno comum de conceitos clarificados, temos a alegria de concordar em algo e a possibilidade de partir livremente para uma discussão onde as dissidências são bem-vindas.
[O que é a Ética, Moral e Bioética?]
Conceitos
De forma simples, sob o risco de ser simplista, a distinção entre Ética e Moral mais comummente aceite é a seguinte: a Ética é a área do pensar que se debruça sobre o agir humano, enquanto a Moral prende-se mais com a concretização desse pensar. Assim, a Ética reflete o conhecimento do bem e do mal, como base estruturante para toda a discussão subsequente. Da Moral, surge a discussão de todos os conceitos que estão presentes dentro daquilo que diz respeito à ação humana, a saber:
–Valores: aquilo que tem valor e que se estima (de forma corriqueira, é aquilo que se gosta de gostar e perante o qual se exige coerência e honestidade intelectual). É, por isso, aquilo que me obriga. São as nossas “estimações” e “motivações”, muitas vezes influenciados pelo contexto social, religioso, educacional, etc. A discussão ética é sobre valores;
–Princípios: não têm caráter normativo, sendo orientadores da ação a priori, como ferramentas que nos ajudam a optar pelo curso de ação ótimo. Por isso, eles orientam na deliberação e decisão éticas;
–Normas: apresentam caráter prescritivo, exercendo a sua ação a partir do exterior. Enquanto os valores obrigam moralmente, as normas são regras que, após deliberação dos valores e princípios, são estabelecidas para regular a ação da pessoa singular e coletiva;
–Deveres: naturalmente, de uma norma surge a necessidade de a cumprir. Não se trata de deveres arbitrários, mas de deveres que nasceram de um percurso de discussão ética que “desceu” dos valores aos princípios e, por fim, às normas. Ganham a sua concretude nos códigos deontológicos profissionais.
[a título de exemplo]
Para se ter chegado ao conceito e prática do Consentimento Informado, em qualquer ação médica, houve um caminho a partir do terreno comum. Do valor indiscutível da liberdade, que nos obriga moralmente a ser e a permitir que outros sejam livres, surge o Princípio do Respeito pela Autonomia. Este princípio orienta o médico na escolha do seu curso de ação ético, sabendo que é necessário o respeito pela liberdade do doente para decidir sobre o curso da sua doença (do diagnóstico ao tratamento e seguimento). A necessidade de respeitar este princípio, em confronto com outros (não-maleficência, beneficência ou justiça, por exemplo), levou à sua concretização numa norma que, protegendo a liberdade da pessoa humana, demonstra o respeito do médico pela autonomia do doente nas suas decisões – esta norma é o Consentimento Informado, que carece do dever do médico em cumpri-la, não como proforma, mas enraizada no seu propósito inicial.
Deliberação Ética
Como se vê na discussão precedente, todos estes conceitos são fundamentais para discutir se, por exemplo, a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) respeita a autonomia do doente (mãe que pede a IVG), ou se vai contra o princípio da não-maleficência. Mas, mais importante, tais valores e princípios são a base fundacional para toda a deliberação ética no dia-a-dia de um profissional de saúde. Perante esses valores e princípios, encaramos um dilema ético quando estamos perante cursos de ação que opõem entre si dois princípios, ou valores éticos. Estamos perante um problema ético, quando não são dois, mas vários valores ou princípios em conflito, o que é mais habitual.
Identificado o problema ético, inicia-se um processo de deliberação ética que se inicia por identificar os valores e princípios em confronto, para depois estabelecer os cursos de ação extremos, ou seja, aqueles que absolutizariam um princípio negligenciando o outro.
No caso da IVG, seria 1) permitir que qualquer pessoa, em qualquer momento da sua vida e injustificavelmente, pedisse a IVG como expressão da sua autonomia e 2) proibir inegociavelmente a IVG, independentemente do contexto e da situação do caso concreto, sob o chapéu do princípio da não-maleficência para o embrião. Depois, entre estes dois cursos de ação extrema, existe uma variedade imensa de cursos de ação, que contrapõem os vários valores e princípios em causa.
O objetivo da deliberação ética é a decisão por um curso de ação ótimo, que não é necessariamente o curso de ação médio entre os dois extremos. Diríamos que a deliberação ética é boa filha da Ética Aristotélica, procurando o justo meio pelo qual se pode atingir o fim – no caso de Aristóteles, o Bem supremo da felicidade (como bem explicou o Vasco Lucas Pires SJ no seu artigo https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/a-coragem-e-a-temperanca-aristotelicas/); no caso da saúde – «o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não só a mera ausência de doença ou enfermidade» [3].
Bioética enquanto ética aplicada às ciências da vida
Por fim, a Bioética enquanto ética aplicada, é a área do saber que pensa a ética aplicada à vida em geral, e humana em particular. É a concretização dos princípios éticos gerais ao concreto das questões sobre a vida. Dentro desta podemos ainda encontrar a Ética Médica, enquanto ética aplicada à prática médica e, só depois, o código deontológico dos médicos, enfermeiros, farmacêuticos, e outros grupos profissionais, que não é mais que uma ética profissional que comporta em si as normas e deveres dos profissionais de saúde. Também neste percurso do geral para o particular, podemos observar a presença do raciocínio em ética, demonstrado anteriormente [valores – princípios – normas – deveres].
A importância do entretanto
Todo o percurso realizado até aqui, permite perceber vastamente por que meandros andará a discussão ética de qualquer tema. E, como dizia inicialmente, é natural que a nossa atenção se prenda com as grandes questões fraturantes. Mas nesta atração humana pelo desastre e o fatal, podemos cair no risco da banalidade do mal, em que, concentrando toda a atenção no grande, esqueçamos a grandiosidade do pequeno. Contudo, se não sabemos ser fiéis no pequeno, não o conseguiremos ser no grande.
É aqui que nasce a minha preocupação especial pelo entretanto. Diariamente, o profissional de saúde toma decisões que envolvem um outro ser humano, das mais ridículas – um simples bom dia aos doentes, antes de começar a ver os seus processos clínicos no computador -, ao mais importante – a decisão de manutenção, redução ou suspensão de tratamento num doente terminal. Efetivamente, em cada decisão, existem valores e princípios que regem a nossa ação.
A total ausência de reflexão sobre os nossos atos, por mais banais que sejam, pode levar ao mimetismo barato de outros médicos, ou ao “porque sim” que não cura. Por outro lado, entender o processo de cura como meramente clínico e farmacológico coisifica a pessoa, pois debruçamo-nos sobre o seu corpo lesado e não sobre a pessoa por ele constituído. Na verdade, o corpo sente dor, mas não sofre – é a pessoa que sofre. O fatalismo do “não há nada mais a oferecer a este doente” é a fuga rápida da irreflexão profunda sobre aquilo que fazemos.
Por isso, é-nos requerida uma atenção de cuidado à pessoa toda. Um cuidado que envolve a escuta atenta; a reflexão lenta e demorada sobre o que ouvimos e consequente tradução e assimilação, isto é, representação; e uma vinculação médico-doente que potencia a relação diagnóstica, terapêutica e de seguimento – tudo se resume a uma busca incessante do “mais” que há para oferecer ao doente, diaria e consistentemente.
Expostas as bases fundamentais da discussão (bio)ética, e como o texto já vai longo, convido o leitor a voltar aqui, semanalmente, para perceber como a atenção ao entretanto da saúde pode ser fecundo e curador. Farei este convite à cultura de cuidado ético e diário através da Medicina Narrativa, uma corrente das humanidades médicas que procura potenciar no profissional de saúde as qualidades de um bom leitor, ouvinte e cinéfilo – as mesmas qualidades de um bom ser humano, capaz da empatia que anima a procura do sempre mais a oferecer a qualquer doente.
[1] Sob o risco de ser redutora, usarei a expressão “relação médico-doente” para me referir à relação entre qualquer profissional de saúde e a pessoa doente que se dirige aos serviços de cuidados de saúde.
[2] S. Agostinho, Confissões (Braga, Portugal: Apostolado da Oração, 2014), liv. XII.
[3] Constituição da Organização Mundial de Saúde – https://www.who.int/about/accountability/governance/constitution