Há uns tempos, o meu pai enviou-me uma imagem em que um homem toca uma espécie de guitarra na qual as cordas unem o cérebro ao coração, dando a ideia de uma harmonia sonora de quem tem estes dois órgãos vitais bem afinados.
Esta imagem deu-me que pensar e fez-me levantar algumas questões: qual a relação entre a mente e coração? Porque falamos do coração no que concerne a questões racionais e afectivas, quando sabemos perfeitamente que o coração apresenta funções meramente fisiológicas? O que queria dizer Pascal quando disse que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”? Vivemos num tempo absolutamente racional? Onde fica o nosso coração e para que serve?
Acabei por abandonar estas perguntas até que um dia a nossa professora de Literatura Clássica nos propôs que lêssemos a Odisseia de Homero. Quando comecei a leitura não procurei qualquer questão, mas estas fizeram questão de me saltar ao coração e ao pensamento.
Homero, naquela que é considerada a obra mais fundante da cultura ocidental, não faz distinção entre coração e mente. Na Odisseia, a guitarra é substituída pela lira que, não tendo um braço que una o cérebro ao coração, é formada por um corpo único, que constitui uma só harmonia – o coração.
Mas que papel tinha o coração para os Antigos? Nos dias de hoje, em que a racionalidade parece escondê-lo, olhemos para Homero, e espreitemos a Odisseia, na esperança de encontrar espaço para devolvermos o coração ao seu lugar inicial – não só por detrás das barras da nossa parede costal, mas na harmonia lírica dos afectos com o racional.
Ao ler a obra, fui registando os momentos em que aparecia a palavra “coração”. Depois, procurando interpretar o sentido com que era utilizada, atribuí uma legenda e reuni todos os dados em vários gráficos. Não procurarei expor uma apresentação detalhada dos resultados obtidos. Deixo-os aqui para os mais curiosos, mas fixar-me-ei naquele que me parece ser o mais significativo. Das 336 vezes que aparece escrita a palavra “coração”, apenas por 3 ocasiões Homero se refere a este como sendo o órgão anatómico. Ou seja, 99,1% das vezes, o coração traz consigo um sentido mais profundo e transcendente.
Se perguntássemos a Homero o que significa “coração”, muito provavelmente não obteríamos uma resposta rápida. O poeta demorar-se-ia a buscar as diferentes formas de o definir e, com 99,1% de probabilidade, escolheria uma definição que não fosse médico-científica. Isto é o que a Odisseia transparece – um elogio da cultura do coração.
Na Odisseia, é-nos apresentado um coração que ama, odeia, come, bebe, vê, toca, chora, se alegra, ri, pensa, pondera, guarda o que é digno de guardar e rejeita o que não interessa, deseja e decide, espera e desespera, que é paciente ou teimoso… Enfim, um coração que é! Um coração humano que é humano, um humano que é todo ele coração.
A Odisseia é, pois, um desvelar do conhecimento mais profundo que os antigos tinham acerca do coração, órgão olhado pelos gregos como centro vital não só do homem, mas de toda a sua existência. Percebendo a sua importância anatómica e fisiológica, estenderam essa vitalidade para os vários dinamismos interiores do homem – do desejo à decisão, dos sentidos à razão, das emoções às virtudes.
Actualmente, não seria sensato acreditar que o coração tivesse total responsabilidade sobre estes dinamismos internos. A ciência não o permite! Na verdade, com a evolução do conhecimento médico, o coração foi sendo encostado ao seu lugar anatómico e substituído pelo nobre cérebro. O amor, os afectos, os desejos, a alegria e a tristeza não são mais que um ligar e desligar de terminações nervosas que o homem pode, ou não, controlar. Num mundo cada vez mais técnico, esta linguagem do coração ficou relegada para a sorte dos poetas e dos “artistas” que vagueiam por entre as nuvens. Neste mundo vence quem for inteligente, rápido de pensamento, prático e quem conseguir resistir aos afectos que confundem a razão.
Há um certo objectificar do homem que se tornou necessário. Os estímulos são muitos e a vida corre depressa. Não há tempo para permitir que o coração filtre a realidade, a saboreie e responda, uma vez que esta via é lenta. Preferimos a razão, mais rápida e capaz de armazenar respostas automáticas, pré-formatadas pela experiência ou pelas circunstâncias, que indicam com celeridade o que se deve fazer, pensar e até sentir. O mundo exige-nos esta celeridade e nós respondemos-lhe com a primazia da razão.
Mas com a pressa vem a precipitação e com a formatação a superficialidade.
O coração, por sua vez, abre portas a uma maior profundidade, mas isso exige um tempo lento.
Tendo-o como filtro da realidade, ganhamos tempo para saborear o que “comemos”, o que “vemos” e o que “ouvimos”. “Guardando tudo no coração”, temos tempo de ponderar “no espírito e no coração”. E é atentos ao que se passa dentro deste que podemos contemplar todos os seus movimentos, tristezas e alegrias, desejos e afectos – é no coração que o íntimo mais vital da nossa vida parece acontecer e há que dar tempo para lhe prestar a devida atenção.
Se o mundo parece defender que as afeições distraem o homem das suas obrigações, eu dou o braço a torcer e confirmo. Contudo, não acredito que a solução passe por fechar as portas do coração e canalizar tudo para a razão, mas sim por escancarar o coração, deixá-lo exercer, de novo, a sua função vital e primordial e, com os olhos do coração, repassar tudo aquilo que lá guardo de forma a “vencer a mim mesmo e ordenar a minha vida sem me determinar por afeição alguma que seja desordenada”[1]. O perigo está nas afeições desordenadas, não nas afeições em si.
Um homem que reprime o que lhe vai no coração finge que o controla. Mas aquele que lhe presta atenção, que o cuida e ordena, esse torna-se mais humano.
É urgente voltar ao tempo grego, é urgente dar espaço e tempo ao coração! Por isso, apanhemos a boleia da Odisseia para o fazer.
[1] Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, nº 21