“Para que serve isto tudo? Para quê tantas teorias e modelos?” Estas perguntas têm-me surgido algumas vezes, à medida que vou contactando com mais e mais áreas e correntes da Filosofia. Nem sempre aparecem alimentadas das motivações mais puras – aqueles momentos aborrecidos de estudo são um campo fértil! – mas acho que pode fazer bem dar-lhes alguma atenção.
Um dos grandes deveres do filósofo é fazer boas perguntas. Não têm de ser questões enormes, cheias de termos rocambolescos que ninguém percebe, isso não é Filosofia. As boas perguntas são portas que permitem compreender a realidade com mais profundidade, num horizonte mais amplo, ou então estabelecem uma ligação entre pontos de vista que, até então, tínhamos por incompatíveis.
Mas não chega fazer boas perguntas! Há-que levá-las até ao fim, isto é, há-que encontrar respostas que nos ajudem a viver melhor, mais integrados no nosso contexto concreto. Arrisco-me a dizer que uma Filosofia que não seja da vida e para a vida não é, na verdade, Filosofia: é fantasia.
Neste sentido, é bastante natural que as questões da Ética sejam tão badaladas e ruidosas nos vários fóruns sociais. A Ética debruça-se sobre o agir humano concreto; queremos ser felizes, queremos viver bem e saber como podemos caminhar nesse sentido. Mas as abordagens clássicas, de Aristóteles a Kant, parecem ter uma linguagem tão complexa ou pressupostos tão abstratos que, na vida de todos os dias, se tornam impraticáveis. Haverá algo mais concreto que nos possa ajudar?
Sim há! O jesuíta americano Harry Gensler desenvolveu um sistema ético muito prático, que me parece um bom estímulo para (re)visitarmos a forma como tomamos decisões no dia-a-dia. A sua abordagem baseia-se na Regra de Ouro: “Trata os outros como tu, na mesma situação, desejarias ser tratado”. Este princípio, presente em tantas culturas e religiões, pode ser um bom ponto de partida para a reflexão ética por ser facilmente entendido e aplicado.
Para Gensler, a moralidade está muito associada à reciprocidade, que nos torna capazes de reconhecer a dignidade do outro independentemente de outras condicionantes. O ser humano racional procura crenças consistentes entre si, que formem um sistema coeso e capaz de explicar e prever a realidade. Também nos seus juízos éticos procura meios de chegar consistentemente ao bem. A consistência torna-se extremamente importante como critério de moralidade.
A Regra de Ouro assegura a consistência das ações em quatro domínios fundamentais:
- Crenças de base que uso e suas consequências lógicas (consistência lógica)
Todos temos crenças de base, que usamos como guias de ação. Estas crenças têm consequências lógicas: se sou vegetariano, não posso comer um bife. A consistência lógica obriga-me a aceitar as consequências das minhas crenças e a recusar crenças que sejam, de alguma forma, incompatíveis com as minhas. - Meios que escolho para alcançar um fim (consistência de vontade)
Assumindo uma determinada crença, com as suas consequências, posso definir um fim a alcançar. Por exemplo, quero perder peso e acredito que comer menos ou fazer exercício é uma boa forma de o conseguir. A consistência obriga-me a aplicar a minha vontade em ordem ao que pretendo, a pôr os meios – comer menos ou fazer exercício – para alcançar esse fim – perder peso. Se o não faço, não estou a ser consequente, não ajo bem. - Articulação entre o que digo/acredito ser bom e o que vivo realmente (consciência)
A relação entre o que digo e o que faço resulta da conjugação dos princípios anteriores. A minha consciência diz-me o que julgo como bom e não erra, mesmo que nem sempre seja “simpático” o que me diz. Violar este princípio de consistência é cair numa contradição na forma como me percebo diante de mim mesmo e do mundo: não posso ser um pacifista que anda ao murro! - Avaliação que faço de situações semelhantes (imparcialidade)
A imparcialidade é uma consistência do olhar quando sou deparado com situações semelhantes à minha. Um olhar consistente faz um juízo independentemente das pessoas envolvidas, procurando apenas o que é bom para o outro. Sem esta imparcialidade, não me sujeito à crítica. A imaginação é muito necessária neste âmbito, porque me permite colocar-me na posição do outro.
Mas, afinal, como é que isto não é tão teórico como o Imperativo Categórico? É que Harry Gensler formulou uma mnemónica para ajudar a assimilar esta forma de agir: CITA (no original inglês é KITA)
Conhece: Como é que a minha ação vai afetar os outros?
Imagina: Como é que seria se agissem assim comigo, estando eu na mesma situação?
Testa a consistência: Estou disposto a que, na mesma situação, ajam assim comigo?
Age apenas como estás disposto a ser tratado em circunstâncias semelhantes.
Este algoritmo simples concretiza o princípio de consistência. As crenças-base, ajustadas à situação concreta do outro, são articuladas pela imaginação numa decisão concreta. E não serve só para grandes decisões, mas para o pequeno: como organizo o meu tempo, como gasto o meu dinheiro, como trato a minha família e amigos… É desafiante descer ao real!
Esta visão ética, muito operativa, tem-me estimulado muito a ser mais coerente e mais consciente das decisões que tomo. Espero que ajude o leitor a formar um critério de decisão mais consistente e mais recíproco, saindo dos meandros labirínticos da Ética para a vida concreta!
PS: Deixo aqui uma conferência de Harry Gensler que explica um bocadinho melhor esta ética. São 20 minutos que valem a pena!