A pessoa doente, um livro entre mãos

Na prática médica, tudo se trata de histórias e a missão do profissional de saúde é saber ler, interpretar e responder a cada história. Portanto, é-nos sugerido que, tal como um livro entre mãos, cultivemos uma cultura de cuidado assente na atenção, representação e vinculação, rumo a uma empatia, que é fonte de cura.

Preâmbulo – da banalidade à profundidade

Como escrito no artigo anterior, a despersonalização em medicina advém, maioritariamente, da mecanização do ato repetitivo: abrir a porta, deixar entrar, convidar a sentar, questionar, escrever, diagnosticar, tratar, despedir. Nos passos normais e ideais de uma consulta médica, pode residir, radicalmente, uma banalidade que não abala nem questiona. Num instante, todo o bem feito durante a consulta torna-se mal, não pelo ato em si, mas pela sua banalidade e mecanização.

Num instante, todo o bem feito durante a consulta torna-se mal, não pelo ato em si, mas pela sua banalidade e mecanização

O mal tem origem não exclusivamente na execução de algo evidentemente lesivo, mas também na ausência de questionamento e de reflexão sobre os atos realizados. Portanto, o maior mal em medicina não são os erros deliberados ou negligenciados, mas a ausência de pensamento reflexivo do médico sobre si, sobre os seus atos, sobre a pessoa doente que entra no gabinete médico, sobre a integralidade da pessoa e a história que carrega consigo. Não se trata, por isso, de “onde está o mal?”, mas sim de “onde está o bem por fazer?”

Hannah Arendt, filósofa do século XX, defendia que Eichmann, oficial alemão responsável pelo transporte de judeus para os campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, não possuía em si nenhuma dimensão demoníaca, malícia, patologia ou convicção ideológica peculiar, mas sim uma extraordinária superficialidade, aliada à genuína incapacidade de pensar[1]. Da mesma forma, podemos afirmar que o grande mal em medicina se prende com a superficialidade com que podemos abordar cada pessoa doente.

Na abordagem protocolar da medicina, que pode ser eximiamente executada, há espaço para um “não temos mais nada para oferecer ao doente”, enquanto a nossa perspetiva é exclusivamente clínica. Se a doença e a morte são a derrota médica e a saúde a sua vitória, então é compreensível que, a dado momento, nada possamos fazer para evitar a nossa derrota – efetivamente, “não há nada mais a oferecer ao doente” de um ponto de vista clínico. Contudo, na abordagem narrativa da pessoa doente, somos convidados à atenção do que ainda há para desvelar na sua história e na própria pessoa. Somos exigidos a um cuidado que procura responder a esta história, procurando sempre este mais a oferecer à pessoa doente, não só na perspetiva médica, mas sobretudo, na perspetiva do doente.

Se nos fecharmos na certeza de que estes comportamentos são inevitavelmente dependentes da personalidade do médico, então afirmamos com maior certeza que “não há nada mais a oferecer a este médico”. Contudo, esta leitura próxima e atenta do outro aprende-se e cultiva-se.

A resposta da Medicina Narrativa

Aqui entra a maravilha das potencialidades da Medicina Narrativa, como foi adiantado brevemente no artigo precedente. Esta corrente das Humanidades Médicas, enquadrada na Ética Médica, foi introduzida por Rita Charon em 2000, referindo-se à «prática clínica fortalecida pelas competências narrativas – a capacidade para reconhecer, absorver, metabolizar, interpretar e ser movido por histórias de doença». De forma simples, Charon resume a Medicina Narrativa como «medicina praticada por alguém que sabe o que fazer com as histórias»[2]. Na verdade, uma história clínica é, primeiramente, uma história contada na primeira pessoa. O centro não é a história, mas a pessoa que a conta.

Charon resume a Medicina Narrativa como «medicina praticada por alguém que sabe o que fazer com as histórias»

Segundo a autora, uma abordagem médica competente, sozinha, não consegue ajudar a pessoa doente a lidar com a perda de saúde e a encontrar um sentido na doença e na morte. Juntamente com o crescimento científico e clínico, os profissionais de saúde têm a necessidade de desenvolver a sua capacidade de escuta, para melhor perceber as dificuldades da doença, para respeitar o sentido das narrativas dos doentes e para se deixarem mover por aquilo que testemunham, de modo a que possam agir inteiramente (e eticamente) em prol da pessoa doente[3].

Para o fazer, a Medicina Narrativa, faz o paralelismo entre as humanidades e a prática da medicina. No fundo, tudo se trata de histórias e a missão do profissional de saúde é saber ler, interpretar e responder a cada história. Portanto, é-nos sugerido que, tal como um livro entre mãos, cultivemos uma cultura de cuidado assente na atenção, representação e vinculação[4].

Em primeiro lugar, atenção significa etimologicamente, estar inteiramente inclinado em direção a algo. Ora, a nossa escuta deverá ser desta forma: atenta, inclinada, interessada. Tal como fazemos quando não queremos perder o fio à meada, na leitura das árvores genealógicas de Dostoievski. Desta segue-se a representação, enquanto tentativa do médico de traduzir aquilo que experienciou ou testemunhou. Somente através da representação, o médico pode apropriar-se da informação recebida e, muitas vezes, compadecer-se com ela. Sem a representação, a atenção resulta vã. Na prática, Charon propõe um “registo paralelo” ao registo clínico, no qual o médico procura apropriar-se da história da pessoa, tomando-a como sua, através das próprias palavras do médico. Inevitavelmente, destas primeiras surge a vinculação. Ora esta não significa uma melhor compreensão ou clarividência sobre a história contada. Uma pessoa pode ler e escrever sobre um conto russo vezes e vezes sem conta, sem nunca perceber realmente tudo. Contudo, essa tentativa repetida cria um vínculo, uma relação forte com aquilo que leu, uma relação que pode ser mais informativa para o leitor que a própria compreensão do texto e da intenção do autor. No fundo, não procuramos somente uma compreensão da história, mas sim uma empatia verdadeira com esta, ou seja, uma relação que nos move e nos implica a partir da sua leitura, levando-nos a uma resposta forçosamente ética.

Ao escutar atentamente uma pessoa, inclino-me profundamente sobre essa pessoa, interesso-me. Ao representar, registando o que testemunhei atentamente, sou lançado integralmente para a presença da pessoa doente, numa relação que se torna bilateralmente forte e fecunda de cura

Ao escutar atentamente uma pessoa, inclino-me profundamente sobre essa pessoa, e interesso-me por ela. Ao representar, registando o que testemunhei atentamente, sou lançado integralmente para a presença da pessoa doente, numa relação que se torna bilateralmente forte e fecunda de cura – a empatia que não se resigna enquanto não perceber o mais que sempre existe para oferecer ao doente.

Posto isto, uma das ferramentas das humanidades médicas de que a Medicina Narrativa se serve é a Literatura, enquanto verdadeiro exercício da abstração e imaginação, que nos obriga a colocarmos no lugar do personagem, tomando a sua história sobre os nossos ombros, e refletindo como espelho na nossa própria história.

A título de exemplo, partilho um exercício feito a partir de um livro de José Cardoso Pires, no qual o autor relata a experiência na primeira pessoa enquanto doente que sofreu de um Acidente Vascular Cerebral (AVC).

De Profundis, Valsa Lenta, de José Cardoso Pires

Acreditando na metodologia da Medicina Narrativa, entreguei-me à leitura atenta do livro de José Cardoso Pires – De Profundis, Valsa Lenta –, aceitando o convite implícito do autor a fazê-lo com a K 465 de Mozart, Dissonance, como banda sonora.

Este livro, verdadeiro ensaio de perspetiva, conduz o leitor a fazer o exercício que o próprio autor faz ao escrevê-lo – isto é, tomar a perspetiva daquele Outro que vagueia na sua «morte branca»[5]. Alternando entre focalização externa, interna e omnisciente, somos introduzidos na mente desse Outro – o próprio escritor. Uma alternância esquizofrénica que implica uma sintonia com aquele que luta pela memória.

«Ali o tenho, anulado e discreto. Ali me tenho, com a Edite à cabeceira. O quarto onde o arrumaram há os tais dois vultos a comunicarem de cama para cama, duas sombras falantes, se bem que as sombras mesmo que falem nunca têm voz»[6].

Numa frase coexistem o conhecimento externo de um “Outro” que lhe é alheio, o conhecimento de si próprio reconhecido nesse “Outro” e o conhecimento íntimo das personagens que o rodeiam (personagens que falam a partir dos «seus lençóis de medo»[7]). Ao leitor, cabe a tarefa de acompanhar estes saltos entre o “eu”, o “outro” que vê, e os “outros” cujo interior conhece ou adivinha. Também ao médico cabe a tarefa de alterar a sua perspetiva continuadamente, para mais e melhor conhecer a história da pessoa doente e, assim, mais e melhor se compadecer.

Ao médico cabe a tarefa de alterar a sua perspetiva continuadamente, para mais e melhor conhecer a história da pessoa doente e, assim, mais e melhor se compadecer.

A “morte branca” de José Cardoso Pires transporta-me inesperadamente para um limbo entre As Intermitências da Morte e Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago – um limbo que José Cardoso Pires viveu na primeira pessoa, relendo-a agora na terceira pessoa, entre a morte que o espreita e os seus olhos que não veem, não reconhecem, nem recordam.

Já tive um doente com AVC a fugir-me entre os dedos das mãos. «Incomunicabilidade, pois. Incomunicabilidade total».[8] Do João Carlos, pois. Minha também, total. Comuniquei ao pai dele que muito provavelmente o filho morreria em breve. Acolhi as suas lágrimas. Vi-as escorrer na face do João Carlos. Cedo me apercebi que, medicamente, nada mais havia a oferecer. Estava longe de compreender a morte branca que o habitava, ou a amplitude da sua angústia. Seriam lágrimas de corpo paralisado e de olhos secos, ou lágrimas que provêm da angústia de uma incomunicabilidade total?

Paro, procuro uma nova perspetiva, a do João Carlos, ligo novamente a Dissonance de Mozart, procuro no caos inicial alguma ordem, imagino a morte branca, inimaginável, esforço-me mais, que mais há para oferecer a este doente?


[1] Richard Bernstein, «Arendt: El mal radical y la banalidade del mal», em El mal radical: una indagación filosófica, trad. nossa, 1.a ed. (Buenos Aires: Ediciones Lilmod, 2004), 304–6.

[2] Charon R. What to do with stories: the sciences of narrative medicine. Can Fam Physician. 2007 Aug;53(8):1265-7. PMID: 17872831; PMCID: PMC1949238. Trad. minha

[3] Rita Charon, Narrative Medicine: Honoring the Stories of Illness (New York: Oxford Univ. Pr, 2006), 3.

[4] Ibid., 150–72.

[5] José Cardoso Pires, De profundis, valsa lenta, 1a. ed (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997), 29.

[6] Ibid., 38.

[7] Ibid., 45.

[8] Ibid., 29.