O fim da caminhada é o início da aventura

"A receção deverá ser essa festa que nos diz: agora conheces-te melhor, e todo o campo se conhece melhor; agora estamos prontos para começar a construir o campo juntos. Agora estamos prontos para começar a fazer futuro."

A Quaresma termina no Domingo de Ramos, inauguração da Semana Santa. Este ano, à Quaresma impôs-se uma quarentena, e o nosso espaço encolheu até caber dentro da casa de cada um. Fomos forçados a minguar, qual peça de roupa que foi lavada em água demasiado quente. E, sem grandes considerações, no momento seguinte estavam a esticar-nos por todos os lados, alargando o campo de possibilidades que a nossa casa tinha: aulas, trabalhos e reuniões por videoconferência tornaram-se o novo normal; a lista de compras passou a ser antecedida de uma reunião estratégica, como quem prepara uma operação de resgate; começamos a jantar com outros à frente do computador; reatámos contato com pessoas com quem já não falávamos há algum tempo. Nunca tantas pessoas entraram no meu quarto como agora em que não posso sair de casa.

De certa forma, a Quaresma foi a caminhada que o Carlos Miranda (aqui) nos prometeu: “forçaram-nos” a descobrir forças em lugares que nem sabíamos que existiam, a ser criativos com o pouco que temos, a arriscar lugares novos sem sair do caminho. Mas agora chega o momento do fim da caminhada: chega a receção de campo. O que se pede de uma receção de campo? Imagina o campo como dois cones na horizontal, um com a base à esquerda e outro com a base à direita. O ponto de encontro entre os dois cones é a receção: nós entramos no campo com muito mundo, com muito “eu”, e pouco a pouco, à medida que o mundo de cada um se afunila, vamo-nos conhecendo melhor. A receção deverá ser essa festa que nos diz: agora conheces-te melhor, e todo o campo se conhece melhor; agora estamos prontos para começar a construir o campo juntos. Agora estamos prontos para começar a fazer futuro.

Na Igreja, o Domingo de Ramos marca o momento em que parece que todos em Jerusalém reconhecem Jesus como profeta. Recebem-no como se fosse um rei messiânico, com gritos de hossana. Para os discípulos, que fizeram caminho com Jesus, é uma confirmação; para aqueles que se juntam à festa sem caminho, é apenas o frenesim do momento, antecâmara do momento seguinte: a traição. Na Quaresma de cada um dos que faz caminho com Jesus, está presente a possibilidade da traição, está presente a sombra da cruz, do fracasso. Mas porque fazemos caminho com Cristo, também com Ele queremos arriscar fazer o bem juntos.

A Quaresma termina, a Pascoa chegará, mas a quarentena ainda estará connosco uns tempos. E dentro de nós há divisões que ainda não conhecemos, lugares que ainda não habitamos, salas que não desempoeirámos. Nós estamos agora no segundo cone, em que o mundo se vai, lentamente, abrindo e ganhando outras dimensões e texturas. E isto traz um desafio que deve ser enfrentado com esperança: o futuro próximo será sempre um lugar estranho, um lugar outro, imprevisível, inquietante talvez, e fascinante. Não moldemos os nossos olhos à medida das nossas expetativas, como se de barro se fizessem; arriscamos deformá-los e, contrariados por uma realidade que não se adequa à expectativa, podemos encontrar-nos a sós com a desilusão.

Preparemos os nossos olhos para a surpresa. O futuro é sempre uma surpresa, é sempre página nova, é sempre um “a estrear”, é sempre aventura a viver … e a vida encontrará forma de se manifestar. Rezemos com Daniel Faria, o seu «Diário»:

«Seja o que for, será bom. É tudo.»

Nelson Faria sj