15 de Março foi o 10º aniversário da guerra na Síria. Bem sei já se fala pouco da Síria e até pode parecer que a guerra já terminou. Verdade que a maioria dos combates – e sobretudo os grandes centros – terminaram ainda que haja sempre um sentimento de ameaça de um possível re-início de combates. Mas também é verdade que há ainda muitos pequenos focos sobretudo no norte da Síria, junto das fronteiras com a Turquia e Iraque; e também é verdade que não tão pouco frequente um país vizinho continua a lembrar (com uns mísseis “ocasionais”) de que há alí uma outra guerra que também não terminou. Enfim, nada que já não me tenha habituado!
Ainda que os conflictos tenham terminado o rasto de devastação é imenso como a fotografia em anexo de uma das ruas de Ghouta, não mais de 5km de onde me movo diariamente. Mas, por incrível que pareça, também já me habituei a essas paisagens. Como não ?…se é parte dos meus dias! Já nem sei quantas recordações de sofrimento tenho guardado algures na minha memória, e que um dia terei que ter a coragem de desempacotar e cuidar.
Mas há uma realidade que não me consigo habituar por muito que seja parte dos meus dias! A extrema pobreza (a tantos níveis e às vezes até mesmo na Esperança) resultado de dez anos de guerra, dos traumas, das feridas e dos medos desses dez anos de guerra; da falta de liberdade, duma forte opressão, das sanções à Síria por parte da comunidade internacional (que afecta mais a população, sobretudo os mais pobres, do que o regime); da débil situação económica do vizinho Líbano, a única fronteira ainda aberta, de uma população reduzida a quase metade (muitos caídos na guerra e tantos por “aí” com rótulos de refugiados e de crise), de uma incontrolável e incontornável corrupção, de uma espiral desvalorização da moeda, da falta de petróleo, de gas, electricidade, água e até mesmo de pão; etc. etc. O Covid19 (que sim, também faz grandes mazelas por aqui) não chega se quer a ter dimensão de problema!
Nos meus dias, algumas vezes sem sequer me levantar da secretaria, do computador ou do telefone, a administrar milhares de euros num orçamento que não é suficiente para responder a todas as necessidades que nos batem á porta; a gerir 300 pessoas também em necessidades que colaboram connosco; a programar horas de actividades e ajuda a centenas de crianças e outras tantas centenas de adultos; a coordenar serviços de saúde que cuidam de mais de 5 mill pessoas; tenho sempre o meu coração dilatado para caber sempre mais uma pessoa, uma historia, uma necessidade e um futuro. E ao mesmo tempo o coração tão pequeno, mínimo mesmo, contraído de dor por não poder fazer mais!
Apesar de tudo nunca me cheguei a colocar a questão: “Onde está Deus?!”. A resposta já me tinha sido dada no memorável discurso do santo padre Bento XVI durante a visita ao campo de concentração de auschwitz em 2006.
“Num lugar como este faltam as palavras, no fundo pode permanecer apenas um silêncio aterrorizado um silêncio que é um grito interior a Deus: Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto? É nesta atitude de silêncio que nos inclinamos profundamente no nosso coração face à numerosa multidão de quantos sofreram e foram condenados à morte; todavia, este silêncio torna-se depois pedido em voz alta de perdão e de reconciliação, um grito ao Deus vivo para que jamais permita uma coisa semelhante.” (ref)
É esse silêncio aterrorizado e ao mesmo tempo de pedido de perdão e reconciliação, na certeza de que o amor e a vida terão a última palavra que me fortalece cada dia. Também tantos sorrisos e olhares de esperança nas pessoas com quem me Encontro me fortalecem e me conduzem a esse Silêncio onde Deus me fala.
P. Gonçalo Castro Fonseca, sj