Chapotera é uma aldeia a cerca de seis quilómetros da missão de Lifidzi. Era bem conhecida dos missionários, sobretudo do P. Domingos Isaac que por lá passava frequentemente.
A nacionalização do ensino e da saúde, por parte do Governo de Moçambique, no dia 24 de Julho de 1975, um mês depois da independência, levou os missionários a pensar numa alternativa à missão de Lifidzi, que acabara de ser ocupada. Desalojados da sua casa e deixando para trás as infraestruturas da missão (escolas, oficinas, hospital, etc.) foram recebidos pelo P. Domingos da Silva na residência da sua missão no Dómwe. Entretanto o P. Domingos Isaac começou a pensar na construção de uma residência perto da aldeia de Chapotera para dar continuidade à recém-fechada missão de Lifidzi. Primeiro construiu um alpendre onde celebrava missa e, pouco depois, deu início à residência. Tinha, também, nos seus planos, a construção de um centro de saúde e dois internatos, um masculino e um feminino.
Os jesuítas instalaram-se em 1978 nesta nova residência, também chamada, por alguns, “Lifidzi a nova”. Em 1983 foi viver para a residência de Chapotera o P. João de Deus Kamtedza e um ano depois, em 1984, o P. Sílvio Moreira. Foi aqui que, na noite de 30 de outubro de 1985, acordados por um grupo de pessoas, foram obrigados a sair de casa, acabando por ser barbaramente assassinados.
Quem eram estes dois padres jesuítas que sofreram este suplício e as razões que o motivaram?
O P. João de Deus nasceu em Moçambique, em Nkau, no planalto da Angónia (Tete) no dia 08 de março de 1930 e o P. Sílvio em Portugal, no dia 16 de Abril de 1941 em Rio Meão, Vila da Feira. Ambos fizeram os estudos secundários na Escola Apostólica de Macieira de Cambra: o P. João de 1948 a 1951 e o P. Sílvio de 1952 a 1957. Entraram no Noviciado da Companhia de Jesus, o P. João no dia 01 de setembro de 1951, nas Caldas da Saúde, onde se instalou o Noviciado, provisoriamente, depois do incêndio do convento de Santa Marinha da Costa, em Guimarães e o P. Sílvio no dia 24 de outubro de 1957, em Soutelo. Tiraram os dois a licenciatura em Filosofia na Pontifícia Faculdade de Filosofia de Braga: o P. João em 1958, partindo nesse ano para Moçambique, para ali fazer a etapa do magistério e o P. Sílvio em 1965, partindo, ele também, para Moçambique e aí fazer o magistério. Fizeram, depois, o Curso de Teologia: em Espanha, na Faculdade de Teologia de San Cugat del Vallés, Barcelona, de 1961 a 1965, o P. João, e o P. Sílvio em Portugal, na Faculdade de Teologia da Universidade Católica, em Lisboa, de 1968 a 1972. Foram ordenados sacerdotes: o P. João em Lifidzi, Moçambique, no dia 15 de agosto de 1964 e o P. Sílvio na Covilhã, no dia 30 de julho de 1972. O P. Sílvio, ao mesmo tempo que estudava Teologia, frequentava o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU) que preparava quadros para a Administração Ultramarina. O P. Sílvio interessou-se por este curso para ficar o par da legislação e orientação da política de Portugal no Ultramar.
Regressados a Moçambique, trabalharam: o P. João, sempre na Angónia, e o P. Sílvio como professor no Seminário Diocesano no Zobuè (Tete), na cidade de Tete e no Maputo. Em 1984 estavam os dois em Chapotera e a partir daqui irradiavam a sua actividade missionária por todo o território da antiga missão de Lifidzi, totalmente comprometidos no trabalho da construção do Reino de Deus que tantas vezes exige, para além do anúncio, a renúncia e a denuncia. Foi por isto mesmo, como pessoas incómodas, que foram eliminados.
Foram assassinados no dia 30 de outubro de 1985. A primeira notícia, dada pelos “homens corajosos”, como diz o P. Domingos Isaac, num pequeno relatório enviado ao P. Provincial, que foram à Residência dos padres no dia seguinte de manhã (31 de outubro), por terem ouvido, já noite serrada, o barulho de um carro e tiros, não vendo sinais de violência concluíram que tinham sido raptados. Foi essa a notícia que chegou ao meio dia, desse dia 31, a Vila Ulóngwe. No dia 01 de novembro, um homem da aldeia de Chapotera, dirigindo-se à sua machamba, passando junto a um sisal, viu os dois padres estendidos e mortos. Foi avisar o chefe da comunidade que, assustado e pesaroso, guardou silêncio, como diz o P. Domingos Isaac. O P. Luís Gonçalves diz, no seu relatório ao P. Provincial: “consta que no dia 01 de novembro já se sabia, no Malawi, que os padres estavam mortos”. Os jesuítas, em Ulóngwe, nada sabiam. Só no dia 04 de novembro, depois de uma reunião com outros chefes de comunidades, foi enviado um homem a Kalómwe, na fronteira com Dedza, para falar com o Chefe da Alfândega que encaminhou uma mensagem para a Polícia de Vila Ulóngwe.
O P. António dos Reis no dia 31 de outubro foi informado do rapto e tentou arranjar proteção militar, pois não se podia circular, para ir a Chapotera recolher o recheio da Residência, o que só conseguiu no dia 04 de Novembro. Chegado a Chapotera foi-lhe segredado, por um homem, que os padres estavam mortos, a pouca distância dali. O P. Reis, sem lá ir, partiu imediatamente, com o P. Barata e o Ir. Simeão que o acompanhavam, para Vila Ulóngwe, para avisar o Administrador e o Comandante Militar. Ao aproximar-se da sua casa, em Ulóngwe, estranhou a multidão de gente que ali estava para manifestar os seus sentimentos de pesar aos padres. Entretanto, com a mesma escolta militar, nesse mesmo dia 04, voltou a Chapotera, para recolher os cadáveres dos padres e levá-los para o cemitério da Vila. Eram mais ou menos 18 horas e quando chegou ao cemitério, seriam umas 19 horas. Rezaram e ouviram-se testemunhos sobre os padres. Eram iluminados pelos faróis dos carros e só celebraram missas no dia seguinte, 05 de novembro.
O que fizeram para merecer fim tão violento?
O P. João de Deus era um homem que irradiava alegria pela sua simplicidade e espontaneidade. Dava-se bem com toda a gente. Amava Moçambique e o seu povo. Apreciado por todos parecia difícil imaginar a Angónia sem o P. João. A todos evangelizava com respeito e amor. O seu zelo apostólico levou-o, tanto quanto a situação o permitia, mesmo em risco de vida, a lugares isolados e difíceis. A todos tentava animar e encorajar. Sofria com o seu povo o temor e o pânico naquele ambiente de instabilidade, desencadeado por arbitrariedades, injustiças e atropelos à dignidade da pessoa.
O P. Sílvio era um homem ativo e sempre disponível para servir. Era reto, verdadeiro e frontal, por vezes duro, mas sem ofender ninguém. Homem de coragem, consciente do perigo, mas ousado, como quem nada teme. Virtudes alimentadas pela fé e confiança. Era naturalmente inteligente e lúcido, muito claro na comunicação trazendo exemplos da vida da comunidade para ilustrar e exortar.
Estes dois jesuítas que Deus juntou em 1984, em Chapotera, eram amigos e partilhavam o que viviam. Ajudavam-se e animavam-se num mesmo ideal convencidos que o Reino de Deus exige denúncia de estruturas injustas e opressoras. Foi por isso que deram a vida, não lha tiraram. Podem ser considerados mártires da luta pela justiça. Eram testemunhas incómodas. Tinham conhecimento das atrocidades cometidas naquela região e começaram a protestar e a denunciar. Podendo sair e sendo mesmo convidados a fazer um discernimento sobre a situação em que se encontravam, sentiram que deviam optar por ficar. E assim foi. Permaneceram no seu posto, junto do seu povo perseguido, até ao derramamento de sangue.
A devoção a estes dois mártires foi imediata. Desde logo começaram a juntar-se pessoas para rezar no lugar do seu martírio e, de forma espontânea, surgiram celebrações e orações a pedir a sua intercessão. Assim, no dia 20 de novembro de 2021, por iniciativa do Sr. D. Diamantino Antunes, Bispo de Tete, vai celebrar o início do processo de Beatificação e Canonização dos servos de Deus P. João de Deus Kamtedza e P. Sílvio Moreira.
P. José Augusto de Sousa, sj
P. Francisco Correia, sj