Conheceu a experiência da Comunidade de Vida Cristã antes de sonhar ser jesuíta. O padre Hermínio Rico, sj, tem presente o sonho e a memória dos fundadores para o estilo de vida CVX. Hoje, assistindo a Equipa Regional Sul, quer apontar para o carisma e para o contributo que ser CVX pode prestar à Igreja e à sociedade.
Conhecer a linguagem do Papa Francisco é uma oportunidade, não para a arrogância, mas sim como estímulo ao serviço e a levar outros a perceber qual a sua vocação na Igreja.
Conheceu a CVX primeiro e só depois surgiu a vocação de jesuíta?
Estive quatro anos na CVX antes de entrar na Companhia de Jesus. Novo ainda, nos anos finais do ensino secundário e nos primeiros anos da Universidade. Foi na CVX que comecei a fazer Exercícios Espirituais e depois acabei por entrar nos Jesuítas.
O que o chamou a atenção nesta forma de estar à Igreja?
Foi por inserção paroquial, nessa altura a CVX era sobretudo uma forma de viver em grupo, de aprofundamento de fé, de partilha. Eu não tinha ainda conhecimento nem capacidade de situar o alcance da CVX, nem a própria CVX tinha essa perceção.
Anos 80?
Estamos a falar de 1977/78, uma fase incipiente do próprio desenvolvimento da CVX constituída, essencialmente por grupos que iam fazendo, de forma ligeira, os EE na vida corrente.
Na paróquia, onde estava, formou-se um grupo. Não houve uma decisão de entrar; houve, depois, uma decisão de não sair.
Percebe-se uma sintonia e um estilo que agrada e com o qual nos identificamos. Depois, foi a dinâmica de reflexão pessoal, de autoconhecimento, a proposta do exame regular, que me atraiu mais.
Foi acompanhando o crescimento da CVX em Portugal. Que caminhos iniciais foram feitos? Como a CVX foi-se moldando e percebendo-se instrumento de pertença à Igreja?
Podemos dizer que a CVX tem vários começos.
Começou com o interesse do padre António Lopes, que era assistente da Congregação Mariana dos alunos mais velhos no Colégio em Santo Tirso por estes novos grupos que nasceram em França.
A CVX decorreu de uma transformação das Congregações Marianas, oficialmente em 1967. Inspirou-se nos grupos de vida cristã que já estavam a funcionar em França há alguns anos
O padre António Lopes, com o padre José Manuel Rocha e Melo, que estava no Colégio São João de Brito, e a Manuela Trigo da Roza, em 1974, foram a França aprender e lançaram um grupo CVX em Lisboa.
Em 1976/77, na sequência da Assembleia Mundial de Manila, nas Filipinas, onde o padre Vasco Pinto Magalhães foi enviado pelo provincial, regressou a Coimbra para o Centro Universitário Manuel da Nóbrega (CUMN), e com a equipa da altura, com o padre Alberto Brito e o padre António Vaz Pinto, começaram a experimentar a dinâmica da CVX com grupos de universitários.
Comparando com o que a CVX é hoje, é uma dinâmica muito limitada. Basicamente eram grupos a quem era proposto, em ritmo quinzenal, uma introdução à espiritualidade inaciana, à prática da paragem diária e seguindo a dinâmica dos EE num ciclo anual.
Os grupos acabaram por se expandir muito rapidamente.
No seu entender, porquê?
Respondiam bem a um certo tipo de população universitária: pessoas com preocupações críticas, com desejo de aprofundamento e uma vontade séria, estavam associados a um «ecossistema» que o CUMN propunha, uma forma de estar em Igreja diferente, de celebrar, de discutir os assuntos, uma formação teológica e catequética numa linguagem próxima da vida das pessoas.
Tudo confluiu para as pessoas se sentirem à vontade e entre pessoas que estavam à procura: muitos começaram com uma posição de questionamento, de resistência. Havia católicos que eram praticantes mas não tinham encontrado, até aqui, uma proposta de vivência de fé que acompanhasse o nível de desenvolvimento do seu próprio crescimento cultural e académico.
Também no espírito do Concilio do Vaticano II?
Também. Os grupos cresceram muito em Coimbra, à volta do CUMN, em algumas residências femininas com estudantes universitárias, um ou outro em paróquias – no caso do grupo onde eu entrei. Depois, passado pouco tempo, estudantes universitários de Lisboa começaram a pedir para formar grupos em Lisboa, com o apoio de padres. Começou a crescer.
Em Lisboa os grupos tinham pessoas de uma geração diferente, com 20 anos mais. No início da década de 80 começaram os cursos de formação de animadores para os grupos, em Soutelo. No início eram 15 dias; o primeiro foi um mês – faziam EE de oito dias, depois tinham uma semana de formação de animadores. Estes cursos funcionaram durante 10 anos.
E assim foi crescendo: primeiro Coimbra e Lisboa, depois Porto, Braga. Alguns estudantes que terminaram o curso em Coimbra foram para a Covilhã e assim começou lá também. Aveiro, depois.
Évora começou consigo?
Já havia antes, começou nos anos 80. A partir do momento em que os cursos de animadores começaram a acontecer, jesuítas de vários locais começaram a fazer. Na altura eram os jesuítas que levavam os grupos CVX.
Tendo, na altura, nascido entre universitários, a proposta da CVX-U, é posterior?
É muito posterior. É uma resposta de 2005 a um pedido de filhos de uma geração de universitários dos anos 80 que andavam à volta do Centro Universitário Padre António Vieira (CUPAV) e sentiam um desejo de encontrar, no final da sua vida universitária e início da vida adulta, uma pertença que identificavam nos pais. Mas sentiam-se constrangidos em entrar nos grupos dos pais e a sua geração.
Procuravam algo que lhes desse o mesmo tipo de resposta, uma possibilidade formativa, crescimento pessoal e com a mesma espiritualidade.
A CVX, até 2002/2003, foi essencialmente os grupos que tinham começado no âmbito universitário. A CVX foi uma geração que cresceu muito rapidamente, nos anos 80, e depois continuou. Nessa altura a comunidade nacional estaria estabilizada nas 300 pessoas.
Foram os anos de uma progressiva, e não fácil, institucionalização, porque no início eram grupos independentes. Havia uma referência comum, os cursos de animadores mas não a estrutura dada pela assembleia nacional, constituição de uma equipa, de estatutos…
Foram passos dados, no início com resistência, porque as pessoas tinham a referência da sua comunidade e isso bastava. Passar para uma comunidade organizada criou resistência.
A partir de 2002, deu-se um novo impulso. Refizeram-se os cursos de animadores, os 15 dias em Soutelo tinham já terminado há muito, e a formação de animadores vinha-se diluindo cada vez mais. O centro mais forte passou a ser Lisboa e começaram-se a fazer as sessões de apresentação da CVX, a iniciar grupos a cada ano, e assim foi desde o início de 2000, até que, em Lisboa, se deu um grande «boom».
Ajude-me a situá-lo: até 2000 em que é guia de grupos em Lisboa e dá apoio à equipa regional, anda por onde?
Desde 1981, quando me tornei jesuíta, até 2000 não tive contacto com a CVX. Apenas durante os anos em que estive no CUPAV, antes de ir para Teologia, mantive um grupo onde fui animador, entre 1987 e 1990.
Eu estive ausente durante os anos da estruturação e consolidação da comunidade em Portugal.
Regressa depois, em 2000, para ser guia de grupos em Lisboa?
Sim, e em 2003/2004, passei a ser o assistente nacional.
Em 2000, quando chega a esta estrutura já criada, que mais-valia encontra nestes leigos e nesta forma de estar em Igreja?
No ano 2000 havia um grupo muito estável de gente muito bem formada, com enorme experiência de EE, com um pequeno núcleo conhecedor do que era a CVX, mas havia uma certa cristalização.
Em que sentido?
Não havia novos membros, não havia dinâmica de crescimento, a maioria dos grupos seguia o mesmo modelo de há 20 anos, ou seja, fazer propostas de oração sobre os EE anualmente e partilha em grupo.
Assistia-se a um desvio, em alguns grupos, para serem de amigos e de discussão. Estava-se num momento em que era preciso um impulso novo.
Tinham saído, entretanto, documentos da CVX mundial, tinha havido várias assembleias mundiais que tinham feito evoluir a própria compreensão da comunidade e dos seus fins, algo que não tinha sido acompanhado por Portugal, até por questões financeiras que dificultavam a participação nas assembleias mundiais.
Portugal estava, portanto, de fora, e, por isso, tratou-se de publicar os documentos, disponibilizar a todos os princípios gerais da CVX.
Ajudando a perceber que a CVX não era a sua comunidade mas uma comunidade mundial…
Exatamente. A sensação de pertencer a algo maior, a dimensão mais apostólica, a dimensão mais comunitária. Com os anos criou-se o desejo de renovar o curso de animadores e foi a partir de uma renovação posterior, em 2005, que começou uma nova fase, com novos grupos e novas pessoas a animar grupo. Deu-se um novo impulso.
Um salto muito grande…
Se nessa altura estaríamos entre 300/350 membros, hoje estamos com mais de 1500. Houve um «boom», até certo ponto bem acompanhado, ou seja, os animadores formados a cada ano eram suficientes para os grupos; a certa altura sentiu-se a necessidade de se formarem guias.
Há pouco tempo, em Lisboa, atingiu-se o limite da capacidade de responder com gente formada aos que vinham à procura de entrar na CVX. Nos últimos dois/três anos eram mais os pedidos do que a capacidade de resposta.
Com pessoas menos formadas corre-se o risco de perder o carisma?
É isso mesmo que está em avaliação. É preciso fazer bem a distinção entre os que vêm à procura de alguma coisa na CVX, mas não vêm à procura da CVX e da sua proposta de vocação pessoal na Igreja e compromisso laical.
Essa distinção é um processo de discernimento que precisa ser acompanhado por gente muito bem formada e com uma visão clara do que é ou não a CVX.
Durante 40 anos a resposta foi a tradicional: a quem vinha com algum interesse de aprofundamento espiritual, de rezar, um grupo de partilha, desejo de dar sentido à sua vida e ao trabalho apostólico a resposta era uma – entrar para um grupo de CVX.
Hoje esta resposta já não é viável. Há pessoas que sim, que estão numa fase de busca e abertura e faz sentido que entrem e façam o seu percurso de discernimento para entrar na Igreja; há algumas pessoas que podem vir à procura de algumas coisas que a CVX pode oferecer: ajuda para aprender a rezar, aprender a discernir, grupos de partilha sem necessariamente fazer parte da comunidade.
A CVX tem o desafio de ser uma proposta integradora geral, multidimensional, é prismática. As pessoas podem vir atraídas por um aspeto – e bem, somos atraídos por diferentes aspetos e ninguém conhece globalmente sem entrar – mas o risco é ficar dentro por um aspeto só e esquecer os outros.
Os grupos da CVX podem, para muitos, ser o primeiro anúncio; importa perceber que lugar tem o primeiro anúncio?
A CVX, como comunidade, está na altura madura de se perceber como um núcleo de presença de Igreja que tem a missão de ser catalisador dessa atração. Tem uma responsabilidade apostólica de serviço que vai para além da absorção de pessoas.
Há outros serviços que se podem prestar de partilha de espiritualidade e presença que não tem necessariamente de ser a inclusão. Isso permite manter um certo rigor e exigência no viver da CVX, caso contrário isso dilui-se.
A CVX é uma associação de leigos, horizontal, não tem uma hierarquia ou magistério que vigia o rigor e fidelidade. O que a comunidade for é o que a CVX é. Se a comunidade se diluir, a CVX vai diluir-se.
Mas é preciso que esse núcleo crie a consciência de que o ser CVX é uma responsabilidade de colocar o que se experimenta ao serviço da Igreja. Há um contributo único e específico, na disponibilização de ferramentas de espiritualidade inaciana a pessoas que andam à procura dessas ferramentas, não necessariamente à procura da espiritualidade inaciana globalmente ou da vocação CVX.
Pode ser este o desafio onde estamos: formar gente para ser animador nos grupos CVX mas também formar gente CVX para ser animador em outros grupos.
Que se descubram na vocação de ser Igreja?
Com outros carismas, precisamente.
Que papel pode a CVX prestar hoje à Igreja, internamente, como também para a visão que a sociedade tem sobre a Igreja?
Com o Papa Francisco a CVX vive um tempo de grande oportunidade. Temos um Papa que fala a mesma linguagem: ler a exortação apostólica «Alegrai-vos e exultai» é quase ler um documento da CVX, em termos de linguagem, da visão do mundo, da espiritualidade.
Esse é um desafio grande porque, não se trata de dizer que a Igreja está do nosso lado, mas de encontrar uma sintonia grande entre o que é a linguagem do Papa Francisco e a sua referência de espiritualidade.
Visto de fora, eu diria que a CVX tem a responsabilidade de, nos tempos atuais, ser o laboratório do modelo de Igreja do Papa Francisco.
É algo que confirma a CVX como um caminho na Igreja e a desafia a sair de um certo anonimato, não na arrogância mas no serviço, para ajudar as pessoas a perceber, até na Igreja mais vasta, o que é que o Papa Francisco fala: o discernimento, de vocação, de relação pessoal com Jesus, de contemplação, de rezar e ler os Evangelhos…
De periferias?
Sim, sem dúvida. As quatro grandes prioridades definidas pela CVX na Assembleia de Beirute, no Líbano, em 2013, cobrem as opções do Papa Francisco: globalização e pobreza, a família, a ecologia e a juventude. Está lá tudo.
Ao comungar da linguagem do Papa Francisco pode cair-se na arrogância de considerar a CVX o caminho para estar em Igreja?
A CVX é normalmente invisível. As pessoas encontram a sua vivência e pertença à comunidade nos grupos, mas aparecem como pessoas. Não há bandeira e isso é importante manter.
Mas temos algo a oferecer, e talvez seja sinal dos tempos, esta confluência entre o que o Papa Francisco fala e o grande número de pessoas que procura a CVX.
É importantíssimo evitar a todo o custo uma identificação com este ou aquele Papa – não é isso. O Papa Francisco é o Papa da Igreja, e a CVX tem uma espiritualidade que partilha com o Papa Francisco. Temos a vantagem de o perceber mais rapidamente. Por isso, se a CVX não responde de forma pronta aos desafios que ele lança, quem vai responder? Há uma responsabilidade grande.
Os instrumentos de oração que os membros da CVX são convidados a usar, nomeadamente os EE e o exame diário, de que forma pode isso estar ao serviço hoje da sociedade portuguesa? Que serviço os membros da CVX podem prestar à sociedade?
O âmbito primeiro da responsabilidade dos membros da CVX é o que a «Lumen Gentium» do Vaticano II descreve como a vida laical: a vivência no mundo, na profissão, na família.
O estilo de vida que a CVX oferece, em termos genéricos, para além da especificidade religiosa, é o espírito crítico, o desafio de profundidade e valorização do que é característico da pessoa em cada situação. São dimensões com uma importância cívica enorme.
Vivemos hoje num tempo bombardeados de informação, solicitações, daí a importância do espírito crítico: saber não se deixar levar pela onda, distinguir entre a propaganda e o que é importante. Distinguir as tentativas de manipulação.
A questão da profundidade: perceber os populismos, as armadilhas de alguém que indica a solução para tudo…
A valorização de cada pessoa, do contributo de cada um, perceber que não há receitas gerais e uniformes, mas que cada situação pede respostas adaptadas.
Isto faz parte do ADN da CVX, de um estilo de vida inaciano. Isto, facilmente, pode ser transposto para um ambiente profissional, de equipas de trabalho, para a discussão, diálogo e cultura pública que muito ganharia com este contributo.
Recuemos ao tempo em que esteve em Évora, entre 2009/2016, no ressurgimento da CVX…
Quando fui para Évora já havia alguns grupos, da primeira vaga dos anos 80, depois alguns mais recentes com alguma dificuldade de regularidade.
A minha estratégia foi não começar pelos grupos CVX: os grupos são um ponto de chegada, não de partida. São pontos de chegada depois de criar uma apetência e abertura para um estilo.
Os primeiros dois anos foram para criar, através do espaço das missas, essa apetência, que começou a atrair um grupo de pessoas que se identificaram com o estilo.
«Estilo» é uma palavra típica da CVX: não é conteúdos, não é fazer isto ou aquilo, não é ter rotinas ou regras. É encontrar um estilo.
Quer definir esse estilo?
É um estilo inaciano: de abertura, de discernimento, de profundidade, de uma nova maneira de rezar, de olhar as coisas de outra perspetiva. Isso começou a atrair as pessoas.
No segundo momento propus um conjunto de conversas a que chamei «Introdução à experiência espiritual»: com muita liberdade, uma hora à noite as pessoas vinham e falava-se do exame, da relação pessoal com Jesus a partir dos textos do Evangelho, fazia-se a leitura da história pessoal…
Aos participantes mais regulares nestas conversas propus iniciar um grupo CVX. Esse grupo começou, alguns vingaram, e, a partir dai, as pessoas que iniciaram essa experiência, convidaram outros.
Um ano depois fez-se uma sessão de apresentação sobre a CVX, que se repetiu anualmente, dando origem a um novo grupo.
Pessoalmente, que valorização encontrou ao ajudar outros a crescer com esta proposta?
Os sete anos em Évora foram um teste e prova do grande potencial da proposta inaciana.
É aquilo que muitos andam à procura: se se consegue um equilíbrio de uma referência regular e institucional, numa ligação a um espaço de culto regular, cria um sentido de comunidade e uma abertura para se procurar mais.
É possível, com paciência, mas é possível. Levar as pessoas a fazer as perguntas e não levá-las a respostas para as quais ainda não tinham perguntas.
Foi um exercício de paciência: houve dois anos em que nada aconteceu.
Estava a ouvi-lo e a pensar na ideia de crise no caminho espiritual, «a crise do ser e do pertencer».
A experiência eclesial precisa sempre de equilibrar duas dimensões: a comunitária e a vocação pessoal.
Ser Igreja é ser membro de uma comunidade, não é ser sócio de algo que presta serviços individualmente. O sentido de pertencer a uma comunidade de laços.
O que foi acontecendo em Évora, aconteceu no adro da igreja depois da missa. No final da celebração ficava para cumprimentar as pessoas e isto foi criando laços, conhecimento, amizade e sentido de pertença.
E a dimensão de vocação pessoal: não sou mais um, há um apelo para mim. Quando se encontram as duas dimensões, torna-se forte.
É benéfico começar por algumas das dimensões? Pode o corpo eclesial ser tão forte e pesado que abafe a experiência pessoal…
Eu diria que, se olharmos para as pessoas que vão à missa, ao domingo, o grande desafio é provavelmente a densidade e profundidade pessoal, a vivência da fé: passar do ir à missa, do ser cristão, do cumprir os mínimos para passar a ter uma relação pessoal com Jesus Cristo, com o meu crescimento, a minha identidade, as minhas opções e sentido de questionamento.
Se olharmos para grupos e movimentos, também na CVX, o desafio pode ser não cair no risco da capelinha: «gosto muito do meu grupo mas não me identifico com a missa de domingo». Há algo que não está bem… trata-se de desenvolver o sentido de pertença.
Obviamente que o sentido de pertença não pode ser a qualquer comunidade. Em âmbitos urbanos percebe-se a consequência de, paulatinamente se criarem missas que são de diferentes estilos, que no fundo traduzem a riqueza da Igreja.
Vamos até 2016, quando é chamado a Roma para ser vice assistente mundial da CVX. Depara-se com que trabalho?
O trabalho era muito aberto. Podia ser não fazer nada ou fazer tudo.
A experiência e tradição pediam que fosse a pessoa que representava a Comunidade mundial, ou seja, era pedido que tivesse a disponibilidade de ser embaixador e, contrariamente e paradoxalmente não sendo membro da Comunidade, viajar, estar presente nas Assembleias regionais, Assembleia nacionais e visitar as respetivas comunidades.
Essa era fundamentadamente a minha tarefa. E estar no Secretariado.
Tomando o pulso ao que era a CVX mundialmente?
Este papel tem o reverso de ser a pessoa do Conselho mundial que mais e melhor conhece a variedade das comunidades locais. É um papel paradoxal e talvez desequilibrado, porque confere o poder do conhecimento de uma forma desproporcional ao elemento da Comunidade que não é leigo. Isto cria algumas dificuldades.
Sentiu-as?
Sim, porque ou se leva de forma fácil, ou seja, viaja-se, visita-se e celebra-se, ou se leva muito a sério a tarefa e responsabilidade, de alerta e denuncia.
O desafio era chamar a atenção para a fidelidade aos princípios da CVX?
O desafio era fazer notar ao Conselho executivo mundial, que tem a responsabilidade como um todo, sobre o que se está a passar.
Uma coisa é acompanhar as notícias, outra é estar no terreno e perceber o que se passa quando se fala com as pessoas. Há uma responsabilidade grande de alertar e propor, mas aqui entra o problema, porque o alerta vem de alguém que é suposto estar fora, porque não é membro da comunidade. Causa tensões.
Mais cedo ou mais tarde a Comunidade vai ter de pensar nesta questão. Se este papel fosse desempenhado por um presidente mundial que está a tempo inteiro e que pode fazer este serviço de visitar, conhecer e propor, tem uma autoridade maior. Mas isso tem implicações financeiras grande e a Comunidade não está ainda nesse ponto.
Exemplos da diversidade da CVX? Trazidas também pela inculturação e diversidade?
Na maior parte dos casos a CVX, a nível mundial, fez-me lembrar a CVX em Portugal nos anos 2002-2003: comunidades, no geral, envelhecidas e cristalizadas, com grande dificuldade em atrair novos membros, em se renovar.
Muitas comunidades sem gente jovem, e isto quer dizer abaixo dos 40 anos – na Alemanha pediram para se referirem a jovens até aos 45 anos porque assim podiam enviar alguém a reuniões de jovens.
Um certo risco de alguma desagregação pela falta de novos membros. A falta de novos membros traz a consequência de se deixar de dar formação aos novos e, retomar a formação, permite voltar ao essencial. Quando deixa de existir essa formação, cada grupo segue o seu caminho, às vezes atraídos por modos, por ativismos, envolvimentos em obras apostólicas absorventes… São riscos. Mas outros casos de grande dinâmica, organização e rigor, vivência. O exemplo mais impressionante é da Comunidade em França.
Por ter lá nascido a CVX?
Talvez, não sei. É a comunidade maior, tem mais de sete mil membros. Portugal é a segunda com 1500 membros. E tem uma estrutura e organização impressionante. Outras comunidades com grandes exemplos de generosidade, em África e na América Latina – comunidades pontuais mas prometedoras.
No geral a Comunidade Mundial não está em tempos áureos, não está num grande dinamismo. Precisa de atenção e cuidado, porque a geração dos fundadores, quem tem a memória e a identidade sonhada para a CVX, que foi muito importante, está a desaparecer; há novas gerações que chegam e estão pouco ligadas às experiências fundadoras e facilmente divergem para outra coisa.
Há uma geração que procura? Sem saber o que realmente quer…?
Liga-se ao que falávamos há puco sobre as muitas dimensões da CVX. As pessoas chegam à CVX movidas por muito interesses. Se depois não se dá a conversão à globalidade da proposta CVX, corre-se o risco de um grupo vir com um interesse e fazer da CVX o serviço a esse interesse.
Quando esta realidade chega a nível mundial, e está a chegar, é um risco grande. Ativismos, militantismo na linha ecológica, ou da pobreza, ou de espiritualistas…
O equilíbrio dos três pilares da CVX – a comunidade, a missão e a espiritualidade, não é tanto do fazer muito, acentua mais a dimensão do Ser, a importância de viver na massa. Se isto se perde, a CVX pode ficar dependente do interesse desta ou daquela pessoa, isso é um risco.
Nesse quadro geral que traça, onde situaria a CVX regional e até a nacional?
A CVX Portugal tem quase um caracter único porque tem gente nova permanentemente a entrar. Em França há pessoas novas mas, na proporção da comunidade, não se estende à renovação das gerações.
Em Portugal temos uma pirâmide. Isso é algo que caracteriza.
Outra marca tem sido a aposta na formação dos seus membros: exigente, reiterada, isto traz a vantagem, grande, de manter uma certa coesão.
Terá falhas maiores em termos de ênfase apostólica, fazer propostas e pôr-se ao serviço da Igreja de forma mais explícita, talvez alguma debilidade ainda em termos institucionais e organizativos.
Mas Portugal é, num certo sentido, um oásis. Talvez a única comunidade com que nos possamos confrontar será França, mas a escala é muito diferente.
A renovação das gerações deve-se na aposta nos Centros Universitários?
Portugal é, em geral, na Europa, uma exceção em pastoral juvenil e de presença dos jovens na Igreja. Em números é comparável com a Polónia, mas a Polónia está no plano descendente, e nós estamos no ascendente, tendo passado uma crise no século passado.
Temos um caso único. Apesar de muitas paróquias onde não se vê jovens, há muitas missas dominicais com gente nova. Qualquer visitante estrangeiro fica espantado. E há um «ecossistema» inaciano, que se foi desenvolvendo organicamente sem estratégia propriamente, nos últimos 40 anos: os centros universitários, os campos de férias, a própria CVX, as comunidades inacianas, que criaram uma rede onde os jovens se sentem bem, atraem outros, encontraram espaços para os filhos na sua vivência religiosa. Isso é um grande ponto de partida.
Noutros contextos é a «pesca à linha» e isso é complicado para a CVX porque facilmente se encontram as pessoas mais disponíveis para experimentar mas são as que menos condições têm para se identificar e vingar nesta escolha vocacional da CVX.
Que sonho para estes dois anos na equipa regional?
Não me cabe falar em nome da equipa regional nem fazer planos; estou ao serviço da equipa regional.
Penso que há uma consciencialização que é um tempo de pausa para consolidação, avaliação do que se estava a fazer; as coisas estavam a seguir em velocidade de cruzeiro mas isso pode ser algo bom ou mau.
A ilusão da avaliação pelos frutos exteriores, do que se está a fazer, pelo número de pessoas que chegam, é uma ilusão perigosa que pode levar à destruição da CVX.
Chegou-se a um ponto de rutura: já não havia capacidade para responder às solicitações. Houve uma opção por um tempo de consolidação, aprofundamento, para lançar as bases indispensáveis para a sustentabilidade da CVX com gente bem identificada com o carisma, a viver e a ser o que ser CVX significa.
Lígia Silveira