Ao longo dos últimos meses foi-me dada a oportunidade de investigar a presença dos jesuítas na antiga chama «Rússia Branca», uma lata faixa territorial que corresponde hoje aos lugares compreendidos entre a actual Letónia e Odessa (Ucrânia). Um dado curioso é que tinha começado há não pouco mais de quinze dias o meu estudo quando se iniciou a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Mais actual não podia haver! Embora tais acontecimentos fossem fruto do acaso, a verdade é que estudar a história daqueles lugares me ajudou a compreender um pouco melhor a complexidade dos povos e culturas do Leste Europeu e as relações difíceis dos Estados da antiga URSS com a actual Federação Russa.
O tema que me envolvia era o das intituladas Congregações Gerais da Companhia de Jesus no Império Russo. Congregações Gerais? Companhia de Jesus? E Império Russo? O que é que uma coisa tem a ver com outra? Pois, foram estas mesmas interrogações que me levaram a investigar sobre o tema. As já referidas Congregações decorreram entre os anos de 1782 e 1805, num total de cinco, as quais são um marco importante dos 41 anos em que a Companhia de Jesus esteve oficialmente suprimida em todo o orbe católico. Como é sabido o papa Clemente XIV, por inúmeras razões que aqui não podemos explorar, pressionado pelas potências europeias como Portugal, Espanha e França que já anteriormente tinham expulsado os jesuítas dos seus domínios, suprimisse a Companhia a 21 de julho de 1773 com a breve apostólico Dominus ac Redemptor. A mesma viria a ser restaurada a 7 de agosto de 1814 pelo papa Pio VII com o breve apostólico Sollicitudo omnium Ecclesiarum.
A Companhia, no entanto, manter-se-ia, não nos Estados católicos, mas, sim, nos protestantes (de Frederico II da Prússia até 1776 e 1780) e sobretudo no grande Estado ortodoxo da czarina Catarina II (até 1820). A existência da Companhia de Jesus foi possível, apesar da luta espiritual e de consciência de muitos jesuítas da Rússia Branca, primeiro porque o breve de supressão exigia, para a sua validade, que o respectivo ordinário local (o bispo diocesano), ou um seu delegado, lesse o decreto em cada uma das residências onde a Companhia detinha uma comunidade, em segundo, porque para os governantes não-católicos um breve pontifício era uma grave usurpação de poderes de um soberano estrangeiro no seu território. A este ponto convém dizer que Catarina II tinha, em 1769, emitido um ucasse (um decreto imperial) que proibia que fosse publicado ou acatado qual regulamento de um documento emitido pela Santa Sé romana sem o seu conhecimento e aprovação.
Catarina II, ao manter a Companhia de Jesus nos seus territórios da Rússia Branca afirmava e impunha seu poder no contexto geopolítico das potências europeias de final de setecentos – aqui é importante referir que a presença da Companhia no que é o actual território polaco remonta a 1564; tinham passado, somente, 24 anos desde a fundação da Ordem Religiosa dos jesuítas pelo papa Paulo III e 8 anos do falecimento de Santo Inácio de Loyola. O Império Russo afirmava-se paulatinamente, juntamente com os emergentes Estados Unidos da América, como uma grande potência mundial – por onde circulava grande parte dos cereais que alimentavam a Europa; Odessa foi desde tempos remotos um preponderante porto de exportação cerealífera. Ao mesmo tempo, Catarina, pretendia modernizar a Rússia e aproximar-se dos movimentos científicos e culturais do seu tempo. A própria correspondia-se com eruditos iluministas e liberais da época como Voltaire.
Mas para mim, ainda mais como jesuíta, estudar a presença dos jesuítas neste território; tratar com os dilemas com que estes companheiros tiveram que se deparar e lidar; compreender a presença da Companhia neste contexto e espaço geográfico a partir das Congregações Gerais foi uma experiência de me centrar âmago da essência do jesuitismo e, ao mesmo tempo, um mergulhar no fundo do coração da Companhia. As Congregações Gerais são desde o tempo de Santo Inácio de Loyola e dos primeiros companheiros a essência da Companhia. As próprias Constituições da Companhia de Jesus definem que uma Congregação Geral validamente reunida juntamente com o seu Prepósito-Geral (o Padre Geral) representam toda a Companhia Universal. Olhar para os jesuítas da Rússia Branca é olhar para um tempo de incerteza onde, mesmo assim, as Congregações não se deixaram de realizar. Foi somente por este processo, qual sustentáculo da Companhia num momento de «trevas», que o carisma inicial de Santo Inácio se pode manter e prosperar.
As cinco Congregações Gerais dos jesuítas no Império Russo realizaram-se no colégio jesuíta de Polotsk (na actual Bielorrússia), que se tornou no principal ponto de referência da Companhia, chegando este colégio a ser a «casa» da Cúria Geral da Companhia de Jesus entre 1782 e 1802 (passando deste então e até 1814 para a capital do império em S. Petersburgo).
No decorrer da minha investigação havia uma pergunta à qual era importante responder, a qual resume toda a minha análise: «poderemos considerar as Congregações Gerais realizadas na Província da Rússia Branca como tal (ou seja, como verdadeiras Congregações Gerais) ou estamos perante um novo paradigma, ou seja, as congregações da Rússia Branca demonstram o carácter de uma companhia universal ou de uma realidade provincial? Este, que há partida pode parecer um tema secundário é, na verdade, um ponto fundamental, visto que, como afirmou o jesuíta americano John Padberg estas Congregações foram «congregações extraordinárias em tempos extraordinários» da vida da Companhia. Daí se justifique que as mesmas não apareçam contabilizadas no número oficial das Congregações Gerais da Companhia, que desde 1558 já ocorreram 36, tendo a última decorrido em 2016 onde foi eleito o actual Padre Geral Arturo Sosa, sj.
O estudo que levei a cabo permitiu-me melhor compreender os processos decorrentes de um «mundo» em profunda transformação social e política entre os finais da modernidade e os augúrios da contemporaneidade. Processos como o iluminismo, o jansenismo, o despotismo esclarecido, associados à consolidação dos Estado-Nação, às revoltas sociais, ao surgimento de novas e autoproclamadas nações do «Novo Mundo», ao ressurgimento dos ideais imperiais com Napoleão Bonaparte; tudo isso permitiu uma visão rica e abrangente deste período, no qual não podemos deixar de contar a importância das mudanças das mentalidades, das inovações tecnológicas e a crescente importância das relações diplomáticas entre os Estados, no qual os jesuítas funcionaram como uma peça fundamental da engrenagem nas «relações-mundo» entre as potências mundiais deste tempo.
As Congregações Gerais da Companhia da Rússia Branca realizadas em Polotsk revelam um Corpo unido, que caminha confiante para o futuro. Revelam, também, um corpo que se auto-examina, define e estabelece metas a desempenhar e a não ultrapassar, no momento crítico em que viviam. Deste modo, encontramos na Rússia Branca, uma Companhia, talvez mais moderada do que no passado na sua acção junto da esfera do poder civil e mais dependente deste do que alguma vez fora, mas que pôde, graças ao mesmo e à tolerância de Roma manter-se e prosperar.
Findo o meu estudo compreendi que muitas outras questões ficavam por resolver: Como viviam e se estruturavam os Jesuítas que, aquando da divisão da Polónia e da supressão da Companhia, habitavam naquele que era então território russo e quais eram as suas principais áreas de actividade apostólica? Quem eram os propriamente ditos 150 jesuítas que à data da 1ª Congregação Geral de Polotsk habitavam na Província da Rússia Branca? Como encarar a continuidade e presença dos jesuítas num «mundo», e sobretudo numa Europa, em convulsão política e social? Como encarar o carácter restauracionista da Companhia de Jesus a partir dos finais do primeiro quartel do século XIX?
Espero que estas questões suscitem a curiosidade! Muito mais haveria para dizer sobre os jesuítas da Rússia Branca. O que escrevo aqui é só uma pontinha do tanto que ainda há para contar.
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Fotografia da fachada da igreja do colégio de Polotsk sob a invocação da Visitação da Bem-Aventurada Virgem Maria e de S.
Estevão. Imagem retirada de Kałamajska-Saaed, Maria. 2021. Rosyjskie pomiary klaztorów skasowanych w roku 1832. Vol. II. II vols. Varsóvia: Polonika, 763-4.