Um animal que conta histórias

Os contos de Torga versam sobre episódios corriqueiros da vida das aldeias montanhosas da região de Trás-os-Montes. Ainda mais do que à beleza monumental das paisagens, a escrita de Torga conduz-nos ao epicentro da experiência humana, no que ela pode ter de mais supersticioso ou virtuoso, rude ou nobre, animalesco ou grandioso. Penetramos naquilo que de mais essencial pode o homem viver naquelas circunstâncias aparentemente fechadas ao mundo, mas efetivamente abertas à riqueza do mundo interior, do ecossistema da vizinhança, do infinito que brota da terra. 

Alasdair MacIntyre, filósofo britânico com contributos assinaláveis na moral e na política, é o autor da expressão que dá título a esta monografia. “O ser humano, nas suas ações e práticas, é essencialmente um animal que conta histórias. Sou capaz de dar sentido às minhas ações na medida em que sou capaz de identificar a história ou histórias de que faço parte.” (After virtue, p. 266)

Foi justamente reconhecendo essa capacidade de descrever o fenómeno humano, não por meio de descrições científicas, tratados filosóficos ou sermões teológicos, mas através das histórias que, despretensiosamente, escreveu que Miguel Torga.

Tanto os Contos da Montanha como os Novos Contos da Montanha representam retratos indiretos da complexidade da experiência humana. Se não têm a pretensão direta de o descrever, os episódios nas aldeias montanhosas do interior de Portugal, oferecem a obliquidade própria da Literatura para penetrar nessa insondável riqueza.

Publicados, respetivamente, em 1941 e 1944, os Contos da Montanha e os Novos Contos da Montanha dão bem conta do “Desespero Humanista” de Torga, como lhe chamou um dos seus maiores críticos, Eduardo Lourenço. Este Humanismo está intimamente ligado ao apelo da transcendência a partir da imanência, ao fascínio telúrico e à sede de liberdade que emanam das suas produções literárias, não só no domínio do conto, mas também no romance e na poesia. Os contos versam sobre episódios corriqueiros da vida das aldeias montanhosas da região de Trás-os-Montes. Ainda mais do que à beleza monumental das paisagens, a escrita de Torga conduz-nos ao epicentro da experiência humana, no que ela pode ter de mais supersticioso ou virtuoso, rude ou nobre, animalesco ou grandioso. Por entre prostitutas e mães sacrificadas, contrabandistas e pastores, moças casadeiras ou jovens imberbes, festas e rituais, penetramos naquilo que de mais essencial pode o homem viver naquelas circunstâncias aparentemente fechadas ao mundo, mas efetivamente abertas à riqueza do mundo interior, do ecossistema da vizinhança, do infinito que brota da terra. 

Casta, orvalhada da mesma frescura que humedecia a fruta nos seus pomares, Leiró acordava de uma grande noite de sono e de sonho. O primeiro fio de fumo subia já da lareira do João Rã, o madrugador da povoação. Erguia-se branco, preguiçoso, tímido da aragem fria da manhã. Mas, logo que chegava a céu aberto, tomava respiração, alargava os braços e diluía-se voluptuoso no éter perfumado do ar. Dos quinteiros nasciam vozes confusas da Babel animal. E da esquadria honesta dos portais, larga e franca, iam surgindo caras humanas e cristãs, levedadas para nova romaria de suor.
À distância de um tiro de espingarda, a medida que agora melhor conhecia, Ivo olhava e analisava aquele despertar. Sentado numa fraga de granito, a trouxa de roupa pousada ao lado, com o olho que lhe restava ia fotografando as fases sucessivas por que passava o casario e a vida da terra onde nascera.
(
Início do conto “Destinos”, em Novos Contos da Montanha, p. 145)

Na sua escrita sobressai uma revolta contra a divindade transcendente a favor da imanência, uma fúria em afirmar que a “existência precede a essência”, a consciência de que o Homem – cada homem, e não uma qualquer natureza humana declinada de heranças teológicas ou edifícios metafísicos – é a medida de todas as coisas. Não obstante a negação do Deus da Revelação, das Religiões e da Filosofia, a imanência que é exaltada (de uma certa forma transcendente), não prescinde, mas antes sublinha a centralidade da interioridade e a sede de “mais” que habita todo o homem e a humanidade inteira. Se Deus – assim nomeado – não tem espaço nestas paisagens, em cada recanto destas páginas espreita obcessivamente a transcendência.

Para contar esta história acerca do animal cuja atividade distintiva é contar histórias, faremos uso de alguns marcos antropológicos, tomando-os sequencialmente como pretexto para promover ambas as obras de Torga. Começaremos com René Girard, a sua teoria do desejo mimético e a hipótese do bode expiatório; passaremos por Martin Buber e a dualidade das relações de tipo “eu-tu” e “eu-isso”; seguiremos com Emmanuel Levinas a propósito da responsabilidade infinita diante do “rosto” da alteridade; e concluiremos com Paul Ricoeur e a superação do dualismo cartesiano, pelo reconhecimento do “espírito”.  

Esta empreitada literário-antropológica confessa-se propositadamente desproporcional. Na dúvida entre o privilegiar das contextualizações filosóficas e o dar voz à Literatura no seu estado puro, optou-se por favorecer o génio de Torga, sem pudor quanto à extensão dos excertos selecionados para dar luz às perspetivas antropológicas enunciadas. Justamente para privilegiar o contacto com as obras literárias originais, toda a reflexão que lhes diga respeito será apresentada posteriormente aos excertos.

1. Girard e o mecanismo do bode expiatório

    Para René Girard, o desejo mimético está no centro dos comportamentos propriamente humanos. Tanto o desejo como a violência – expressões originárias do ser humano – são motivados por uma força de imitação cujos efeitos podem conduzir a consequências imprevisíveis: “coesão e desagregação”, “inclusão e exclusão” (Pensar as origens com Girard, p. 184). Aplicando este racional ao comportamento social das sociedades primitivas, podemos perguntar-nos como terão elas sobrevivido ao risco iminente da auto-destruição. Aliás, é provável que algumas espécies de hominídeos além do homo-sapiens possam ter desaparecido por esta ordem de causas. 

    A hipótese levantada por Girard denomina-se “bode expiatório” e permite passar do esquema “todos contra todos” – em que consiste a “crise mimética” (As origens da Cultura, p. 124) para o “todos contra um”, mediante um mecanismo coletivo que, segundo o autor, está na origem de todo o ato cultural. Pela canalização da violência na direção de um único alvo, os antes potenciais agressores transformam-se em aliados na luta contra o inimigo comum, superando desavenças ou diferenças antes inultrapassáveis. Símbolo emblemático desta união de forças é o cadáver da primeira vítima que possibilita, por um lado, a consciência do mal feito, e por outro, a sensação de paz que tal morte originou (As origens da Cultura, p. 120). O fenómeno religioso, para Girard, parte justamente deste mecanismo, já que os rituais levados a cabo pelas diferentes religiões primitivas mais não são do que um fazer memória – e uma comemoração – de um “sacrifício ou emulação” originária, “uma primeira vez fundadora, que aconteceu por todo o lado à superfície da terra (…) [que é, pelas religiões,] continuamente reativada” (Pensar as origens com Girard, p. 188).

    Foi no Doiro, numa cava. Ao meio-dia, a Margarida veio trazer o jantar (…)
    Era nova, sadia, alegre e de resposta sempre na ponta da língua. Por isso sabia bem dar-lhe um apertão, passar-lhe sornamente o braço pela cintura, e ouvir lhe depois os protestos vivos e desembaraçados.
    – Ó seu alma do diabo, você cuida que isto é comida de cães?
    Todo o eito se ria, a moça continuava a distribuir as tigelas, e a fome, a fadiga, a injustiça, e as demais inclemências da natureza e dos homens, ficavam esquecidas por um momento.
    – Toma lá tu, meu pinga-amor! Era a vez do Julião, e o rapaz, que de facto olhava a Margarida com olhos de carneiro mal morto., não resistiu à tentação de lhe tocar no seio com as costas da mão.
    – Ó meu leproso dos infernos! Olha que eu atiro-te e o cesto ao focinho!
    Houve um largo riso de galhofa, mas houve também um estalo na consciência do Julião. Leproso!
    A sua íntima inquietação, a sua desconfiança contínua e já velha, ouviam pela primeira vez uma resposta, trágica como uma sentença de condenação: leproso! (…)
    – Que direcção levava? – Ia pela rua acima – gritava a cachopa, ainda a tremer.
    Farejavam desvairados pelos soutos, pelas vinhas, como quem procura um lobo culpado de mil crimes. Armados de forquilhas e de enxadas, batiam maciços, procuravam nas minas, numa excitação raivosa de cães de caça. (…)
    – Está cercado! exclamou por fim o Ambrósio, seguro do êxito, ao ver a roda de lume a apertar a encosta. 
    Pode correr e saltar, que já não foge.
    Alguém, na aldeia, sem ordem do prior, tocava os sinos a rebate. 
    Um alarido de festa circundava o incêndio, que até no céu refulgia abrasador.
    – Agora que encomende a alma a Deus… Exausto, sem uma aberta de esperança, sufocado, o Julião lutava sempre. Células aparentemente mortas acordavam, os nervos destruídos pareciam sentir e reagir, e os olhos, quase cegos, abriam-se num esforço derradeiro para descortinarem um caminho de salvação. O mar de labaredas, porém, era redondo. E quando a fogueira lhe apertou o garrote, deixou-se finalmente cair.
    (Conto “O Leproso”, in Novos Contos da Montanha, p. 65-81)

    Se nos abeirarmos do conto “O Leproso”, de Miguel Torga, facilmente nos apercebemos da prevalência do desejo mimético na diversidade de povos e culturas da caminhada humana. Não foi só nos alvores das sociedades primitivas que as forças sociais de replicar o comportamento dos outros marcaram decisivamente as histórias das comunidades humanas. Nesta aldeia montanhosa do Doiro, foi justamente numa interação mimética entre camponeses na pausa da lavoura que se acendeu o rastilho daquilo que viria a ser a união de uma comunidade em prol da eliminação de um bode expiatório, responsável pelas desgraças de todos. Julião, um camponês que desejava como os seus companheiros obter prazer do vigor corpóreo de Margarida, acabou cercado e pelos seus conterrâneos condenado a arder, em benefício da paz da sua aldeia. O “todos contra todos” na disputa por Margarida deu lugar ao “todos contra um” na eliminação de Julião. 

    2. Buber e as relações eu-tu e eu-isso

      Martin Buber, na sua obra Eu e Tu, diferencia dois tipos de relações essenciais que o homem estabelece com o mundo que o rodeia. Efetivamente, a sua antropologia aponta para o homem como um ser relacional (“No princípio é a relação”, Eu e Tu, p. 31). Por um lado, a relação “eu-tu” é caracterizada pela reciprocidade que se origina por via do encontro, da entrega, do diálogo e da disponibilidade. “O mundo como relação” dá-se em três dimensões: a vida com a natureza, com os homens e com os seres espirituais (Eu e Tu, p. 6). Por outro lado, a interação “eu-isso” pauta-se pela utilização, a objetivação, a causalidade, seja por via da experiência ou pelo próprio ato de conhecer. Falamos de uma coisificação através de verbos transitivos.

      Se no primeiro tipo de relação domina a intersubjetividade gratuita, no segundo estamos no âmbito da objetividade com um fim em vista. A relação eu-tu presta-se a “aparições” que remetem para uma atualidade presente – menos de instante e mais de presença -, no limite, a um “amor [que] é responsabilidade de um Eu para com um Tu”. Pelo contrário, a interação eu-isso caracteriza-se por uma “estagnação”, desprovida de “relação” e de “presença” (Eu e Tu, p. 14). Por incrível que pareça, o ódio é preferido à indiferença, já que o primeiro é passível de transformação na relação enquanto a indiferença representa uma capitulação à “coisidade” (Eu e Tu, p. 20). 

      Como cúmulo de perversidade da interação “eu-isso”, podemos conceber circunstâncias em que o eu “não vê os entes que estão à sua volta, senão como máquinas capazes de diversas realizações (…) [dispostas] para o bem de sua causa” (Eu e Tu, p. 80). Neste servir-se dos outros que a si desumaniza, “ele próprio usa a si mesmo como um Isso”, inaugurando um tipo de interação que arriscaria de apelidar de “isso-isso”. Personagens da História como Hitler ou Estaline encarnaram esta categoria desumanizada e desumanizadora. Por oposição, é sugerido Jesus e a sua relação com o Pai como protótipo da “relação absoluta”, na qual o homem atribui a seu Tu o nome de Pai, de tal modo que, ele mesmo, não é senão o Filho” (Eu e Tu, p. 78). Ambos “subsistem” no seio da relação presente, dependendo ontologicamente do outro para serem quem são. Todo o pai só o é diante do filho, e um filho só o chega a ser por causa do pai.

      Da igreja, no cimo do povo, saía já o padre Gusmão debaixo do pálio, com um rebanho de gente à volta, que devia ser engrossado pela rua abaixo.
      – sacramento… da eucaristia…
      O luar, agora mais claro, reluzia na capa do prior, e cobria a multidão de uma beleza fantástica e desumana. (…)
      É a tua mulher? – perguntou o prior, à frente do acompanhamento subitamente acordado.
      – É, sim senhor. Fez-se um silêncio penoso, que repôs o céu na sua altura e roubou a cada um o íntimo sentimento de comparticipação divina. Todos sabiam que chegaria esse momento triste. E temiam-no secretamente. Agora o Senhor já lhes não pertencia. Ia morrer na boca da agonizante, e deixá-lo sozinhos, terrosos, derreados de cansaço, com a légua e meia do regresso a palmilhar. (…)
      – Há quanto tempo adoeceu ela?
      – Foi só agora, do parto… (…)
      – O menino… Quer sair e não pode…. Há bocado pôs a mãozinha de fora…
      Da caminhada, do calor do quarto e das palavras que ouvia, o prior ofegava no forro dos paramentos. Grossas bagadas de suor corriam-lhe das têmporas congestionadas. Ao esforço dispendido e ao peso do ambiente, juntava-se a inesperada urgência daquele apelo terreno, a opor-se à intemporalidade consubstanciada que sustinha nas mãos indignas e mortais. Inopinadamente, os valores mudavam de sinal, o transitório sobrepunha-se e ao eterno, e só uma coisa se mantinha firme diante dos seus olhos de homem: a moleira estendida no leito, com um filho dentro dela a pedir mundo. (…)
      A cara branca e pálida de Filomena parecia polvilhada da farinha que cobria tudo. Enternecido, o prior olhou-a com uma simpatia humana que só em menino tivera. E, naquela comunhão, depôs o sagrado viático sobre a tampa da caixa, ao lado da vela, tirou a estola do braço, despiu a capa, e disse, ao mesmo tempo que levantava a roupa da cama:
      – Mostra lá! – Era a primeira vez que via uma mulher naquele abandono, e uma vergastada do instinto alterou-lhe o ritmo do coração. Filomena, do seu lado, embora já quase despedida deste mundo, também sentiu no corpo a brisa de um pudor violado. Mas a força da realidade quase logo os serenou a ambos. (…)
      – Pronto, já cá está! – Na exclamação de triunfo do padre Gusmão, havia qualquer coisa de herético que feria os sentimentos do moleiro. Mas., por outro lado, nada o poderia comover mais do que ver o filho a espernear naquelas mãos poderosas, humanas, que acabavam de o roubar à escuridão do nada.
      (Conto “Senhor”, em Novos Contos da Montanha, p. 225-237)

      Não parece difícil compassar o andar ao ritmo desta procissão eucarística, meticulosamente descrita por Torga, um ateu mais espiritual do que muitos religiosos. Depois de um dia de trabalho árduo nos campos, ao encontro da agonizante Filomena, a quase-morta e quase-mãe, estava pronta para receber o viático, antes de partir. Aquilo que poderia ser uma mera formalidade, quase mecânica, à maneira de uma liturgia sem margem para criatividades, revelou ser um hino à figura do “Pastor que dá a vida pelas suas ovelhas”. O Padre virou parteiro, as mãos abençoadas sujeitaram-se à mácula do sangue materno, o operário da messe fabricou com as próprias mãos a Encarnação, o Corpo de Cristo deu a vez ao corpo da criança, presença real que pedia tanta ou mais Fé que a outra para vir ao mundo. Eis a prova de que o Ministério Sagrado pode e deve ser concebido segundo uma lógica de relação “eu-tu” de doação desmedida, de presença inteira, de abraço cego; e não sucumbindo à tentação tarefeira do “eu isso” que objetifica o fiel, petrifica o rito, cobra o pecado, cronometra o sermão, acumula o estipêndio. Gusmão cumpre o desígnio de, na relação com Filomena, atualizar a relação “eu-tu” por excelência: a do Pai diante do Filho muito amado.

      3. Lévinas e a responsabilidade infinita

        Para Lévinas, o Outro assume um papel central na experiência humana, já que é o “desejo do Outro” que dá “o movimento fundamental, o elã puro, a orientação absoluta, o sentido” à existência humana (Humanismo do Outro Homem, p. 57). Este movimento representa uma renúncia a mim próprio no sentido de me responsabilizar pelo outro, quem quer que seja: conhecido ou desconhecido, amigo ou inimigo, aliado ou perseguidor. Poderíamos apelidar este modo de proceder de uma “ética da responsabilidade infinita”. Dos atributos do Outro, o autor destaca o “rosto” como “fenómeno [de] aparição”, como expressão pura da sua alteridade (Humanismo do Outro Homem, p. 58). De facto, reconhece-se que ele traz em si o vestígio do Infinito. Esta transposição do discurso teológico, atribuindo ao outro aquilo que outrora estava referido a Deus, é muito significativa na antropologia de Lévinas.

        Diante desta “aparição”, “epifania”, “visitação”, o “eu” é necessariamente desinstalado do seu egoísmo já que “o rosto [se] impõe a mim”, convertendo toda a minha existência no sentido desta responsabilidade inevitável que me é revelada. Tal responsabilidade compreende um elemento “crítico” – de pôr em causa, estrutural e asceticamente, a autoconfiança do eu – mas também “espontâneo” – já que o chamamento do Outro sempre nos supera e transcende (Humanismo do Outro Homem, p. 69). Por fim, é afirmada a universalidade desta responsabilidade infinita, o que nos permitiria inferir da perspetiva de Lévinas uma certa noção de natureza humana, já que as “normas da moral não são embarcadas na história e na cultura”, antes “permitem julgar as [próprias] culturas” (Humanismo do Outro Homem, p. 70). 

        (…) Maria Lionça. Fala-se nela e paira logo no ar um respeito silencioso, uma emoção contida, como quando se ouve tocar a Senhor fora. E nem ler sabia! Bens – os seus dons naturais. Mais nada. Nasceu pobre, viveu pobre, morreu pobre, [mas possuidora da] riqueza duma existência que ia ser a legenda de Galafura. (…)
        Quando o Pedro nasceu, gordo, caladão, rosado, [o marido] em vez de tirar daquela presença ânimo para se atirar às leiras, acovardou-se de uma boca a mais na casa, empenhou-se e partiu para o Brasil.
        A Maria Lionça, essa, ficou. Como todas as mulheres da montanha, que no meio do gosto do amor enviuvam com os homens vivos do outro lado do mar, também ela teria de sofrer a mesma separação expiatória.(…)
        Até que um dia o Ruivo deu finalmente notícias. Regressava. E Galafura solidária com a grandeza humana da Maria Lionça, dispôs-se a esquecer todas as ofensas e a receber festivamente a ovelha desgarrada. (…)
        Vinha doente e desenganado. Males ruins… Já lhe custava engolir. E aquela abafação a apertar, a apertar… Mas nada de aflições. Voltava só para morrer.(…)
        O filho, o Pedro, é que não resistiu ao desencanto. Envergonhado dum pai que lhe passara apenas pelos olhos como um fantasma de podridão, e sem poder abarcar a grandeza daquela mãe que fazia do absurdo o pão da boca, abalou para Lisboa, sem Galafura saber a quê(…)
        No dia seguinte [à receção de um telegrama], a aldeia viu com espanto e comoção que trouxera nos braços de sessenta anos o filho morto. Deram-lho no hospital, a exalar o último suspiro. Meteu-se então no comboio com ele ao colo, já a arrefecer, embrulhado numa manta, a pedir licença a todos, que levava ali uma pessoa muito doente. (…)
        Galafura quase que não compreendia como pudera com ele, embora fosse meão e magro. O que é certo é que pudera, e sem lágrimas nos olhos lhe falava ternamente mal o revisor aparecia no compartimento.
        – Dói-te, filho? Dói-te muito? Pois dói… Dói…
        Encostava-o ao ombro, enrolava-lhe a manta nas pernas hirtas e mostrava os bilhetes.
        Em Gouvinhas apeou-se. À porta da estação, o guarda arregalou muito os olhos, mas deixou passar. E daí a pouco, no macho do Preguiças, o Pedro subia a serra para dormir o derradeiro sono em Galafura, que era ao mesmo tempo a terra onde nascera e o regaço eterno de sua mãe.
        (Conto “A Maria Lionça”, in Contos da Montanha, p. 13-23)

        Maria Lionça encarna aquela “santidade de ao pé da porta” que é reconhecida em vida, não pelos decretos de qualquer autoridade governativa ou religiosa, mas no mais íntimo das consciências daqueles com quem vive. Haverá maior sofrimento do que ver morrer um filho? E quem suportaria estoicamente essa provação anos depois de ser abandonada pelo marido, sujeita à humilhação de o sustentar na sua ausência, levada a assisti-lo num regresso de morte anunciada? Maria Lionça de Galafura “é a síntese de todas as Marias Lionças que há em Trás-os-Montes, e que há em Portugal e que há no Brasil, e que há no mundo” – disse Torga numa entrevista -, a legenda da aldeia, o protótipo de mulher-de-armas, a verdadeira mãe-coragem. Em dádiva infinita, é dotada de uma responsabilidade que não pestaneja, que não sabe acumular ofensas, que nem se lembra de pensar em si, face a um Outro que fatalmente se converte de próximo em distante, de pródigo em doente, de fruto das entranhas em cadáver enregelado. Contemplar a pobre mulher que ainda paga as dívidas do falecido marido é contemplar a pobre mãe que se empenha em carregar o corpo morto do filho, montanha acima, a fim de o deitar uma última vez. No dia da sua morte, mais do que um monumento à virtude, o seu corpo jaz dilacerado depois de uma vida entregue. O seu corpo jaz, assim, glorioso.

        4. Ricoeur e o espírito que define o humano

          Paul Ricouer, na conversa que estabeleceu com Jean-Pierre Changeux – O que nos faz pensar? -, parte de uma crítica ao dualismo antropológico cartesiano para afirmar a noção de espírito como elemento unificador do ser humano, além do corpo e do sistema nervoso. De facto, é o espírito que permite abarcar categorias intrinsecamente humanas como a arte, a estética e a religião. Por outro lado, o seu interlocutor descarta o espírito, centrando o seu discurso além corpóreo na mente ou psiquismo, mesmo que este contenha elementos não observáveis.

          Se ambos pretendem superar a hipótese simplista da “glândula pineal”, como partícula (ingenuamente) unitiva entre os sistemas do corpo e da alma, não deixam de reconhecer o valor da proposta de Descartes, propondo uma resolução divergente entre si (O que nos faz pensar?, p. 44). Por um lado, Changeux elogia a organização cerebral cartesiana em termos de “estruturas” e “funções”, que é um “princípio teórico essencial” da pesquisa atual. Por outro lado, Ricoeur valoriza a conceção do “psíquico” como a “experiência vivida” (O que nos faz pensar?, p. 49).

          Mas a diferença substancial de ambas as conceções está na motivação que move os autores: se Changeux, confiando progresso da ciência e da neurologia, procura no cérebro uma justificação legitimadora para definir o humano; por seu lado, Ricoeur, destaca a centralidade do questionar filosófico como expressão do espírito, dimensão propriamente humana e garante da sua unidade múltipla. Sem descurar a investigação científica sobre corpo e alma, é o espírito o elemento definidor da humanidade.

          Em Urros, ao lado da instrução da escola e da igreja, a primeira dada a palmatoadas pelo mestre e a segunda a bofetões pelo prior, havia a do Raul, gratuita e pacifica, ministrada numa voz quente e húmida, que ao sair da boca lhe deixava cantarinhas no bigode.
          “- Abre-te, Sésamo! E o antro, com seu deslumbrante recheio, escancarou-se e em sedutor convite… “
          As crianças arregalavam os olhos de espanto. Os homens estavam indecisos entre acreditar e sorrir. As mulheres sentiam todas o que a Lamega exprimiu num comentário:
          – O mundo tem cousas!… Urros, em plena montanha, é uma terra de ovelhas (…)
          Daquela feita tratava-se de uma história bonita, que metia uma grande fortuna escondida na barriga de um monte. E o rapazio, principalmente, abria a boca de deslumbramento. Todos guardavam gado na serra. E a todos ocorrera já que bem podia qualquer penedo dos que pisavam estar prenhe de tesouros imensos. 
          Mas que uma simples palavra os pudesse abrir isso é que não lembrara a nenhum.
          Da gente miúda que escutava, o mais pequeno era o Rodrigo [que] (…) contra o costume, esgueirou-se sozinho para a serra da Forca atrás do rebanho (…) [decidido a] quebrar o encanto. (…)
          De alma tranquila, mas a tremer de emoção, solenemente, o pequeno feiticeiro ergueu a mão e gritou:
          – Abre-te, Monte da Forca!
          A sua imaginação ardente acreditava em todos os impossíveis. Tinha a certeza de que o Sésamo da história do Raul existira realmente. Por isso ouviu com serenidade e confiança o eco da própria voz a regressar ferido das encostas.
          Tudo requeria o seu tempo.
          Irreais, os horizontes perdiam-se a o longe, esfumados e frios. Vago, o rebanho, à volta, tosava a erva mansamente. Impreciso, o gemido da ovelha queixosa não conseguia transpor o limiar da consciência do pastor. Transfigurado, o Rodrigo estava entregue ao milagre. Ordenara-o e esperava por ele.
          – Abre-te, Monte da Forca! – gritou de novo, já enfadado de uma espera que não cabia na ilusão.
          Qualquer coisa à volta pareceu tremer, e o coração do pequeno saltou.
          – Abre-te! – reforçou, angustiado. Mas os horizontes começaram a tomar crueza e sentido, o rebanho avolumou-se , e o balido da ovelha aflita subiu mais.
          – Era mentira! – e pelo seu rosto infantil e desiludido uma lágrima desceu desesperada. (…)
          Valeu-lhe a feliz condição de criança. Ele ainda a chorar e já a mão do esquecimento a enxugar-lhe os olhos. Breve como vem, breve se vai o pranto dos dez anos. A ovelha chamava sempre. E o balido insistente acabou por acordá-lo para a realidade simples da sua vida de pastor. 
          Ergueu-se, desceu da alta fraga enganadora, e, de ouvido atento, foi direito ao queixume.
          – Olha, era a Rola… Um cordeiro acabara de nascer e a mãe lambia-o. O outro estava ainda lá dentro, no mistério do ventre fechado.
          (Conto “O Sésamo”, em Novos Contos da Montanha, p. 101-108)

          Em Urros, vemos o alcance de conceber o homem como “um animal que conta histórias”. O que seria da infância de Rodrigo, sem a fantasia de Raúl? O que seria da profissão de Raúl sem a escuta benigna de Rodrigo? Se o contar histórias é um fenómeno eminentemente recíproco, é porque o próprio do humano é este viver comunicando-se e fiando-se no outro. Podemos imaginar o processo de amadurecimento de uma criança como Rodrigo, delimitando as fases da consciência de si que foi aprimorando. Se, por via dos sentidos, terá começado por experienciar a materialidade do seu próprio corpo e dos objetos da realidade envolvente; por via da linguagem, da capacidade de raciocínio e associação de ideias, foi desenvolvendo o seu psiquismo, a ponto de poder conceber, imaginar e desejar que a história misteriosa de um tesouro escondido na montanha, pronto a ser descoberto, fosse por si vivida depois de escutada. Mas o terceiro princípio próprio e unificador do humano implica um despertar para o “espírito”, para essa realidade insondável da interioridade, que floresce em abertura à transcendência, que se expande na dimensão mística de quem chega a ver o dentro das coisas, o além do material, o depois do racional. E, não raro, esse “nascer do alto” alcança-nos no meio do pranto, da mais funda desilusão, convocando de nós a mais originária condição de criança, capaz de se lançar ao mistério. Quantos “Sésamos” já se abriram na história da humanidade? E que misteriosos e vitais tesouros estão ainda reservados – interiormente ocultos – para os audazes?

          5. Jesus Cristo, Aquele que revela o homem a si mesmo

            Como nota conclusiva e pessoal, sugere-se um quinto elemento descritivo do fenómeno humano. Elemento este que se propõe como agregador dos traços antropológicos propostos pelos quatro autores referidos e ilustrados – mesmo que insuspeitamente – por Miguel Torga e Vergílio Ferreira nas suas obras aqui destrinçadas. 

            Se existiu alguém cuja vida incluiu ser vítima injusta do mecanismo do bode expiatório a partir da iniquidade das autoridades religiosas do seu tempo, estabelecer com Deus e com os homens relações de desinteressada reciprocidade, olhar o Rosto do outro com a misericórdia que o resgata da maior miséria em que se pudesse encontrar, e entregar-se de corpo e alma por uma vida no Espírito oferecida a toda a Humanidade, então esse alguém é Jesus Cristo. 

            A Constituição Pastoral Guadium et Spes, sobre a Igreja no mundo atual, afirma rotundamente que “o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente”. Aplicando os conceitos antropológicos acima desenvolvidos, não será difícil encontrar em Cristo uma síntese esperançadora para o homem, como ser em processo de divinização, pondo-as em diálogo com a sabedoria do número 22 deste documento do Concílio Vaticano II:

            Ao bode expiatório das sociedades primitivas facilmente justapomos o “Cordeiro inocente, [que nos] mereceu a vida com a livre efusão do seu sangue”.
            À relação “eu-tu” de gratuita entrega e reciprocidade aproximamos a filiação e fraternidade inauguradas pelo “Filho de Deus  [que me] «amou e [se] entregou por mim».
            À infinita responsabilidade diante do rosto do outro, apomos aquele que pela sua missão misericordiosa e redentora “nos reconciliou [com] Deus e uns com os outros e nos arrancou da escravidão do demónio e do pecado”
            À dimensão espiritual da nossa vida – cristã ou não – associamos a renovação interior dos corpos mortais “de todos os homens de boa vontade, em cujos corações a graça opera ocultamente (…)  já que por todos morreu Cristo e a vocação última de todos os homens é realmente uma só, a saber, a divina”. De facto, sem fechar portas à ação misteriosa de Deus, afirma-se mesmo que “o Espírito Santo a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal por um modo só de Deus conhecido”.

            Em suma, propõe-se Cristo como síntese deste excurso literário sobre o fenómeno humano. N’Ele encontramos o contador de histórias por excelência, enviado ao mundo para anunciar e viver o Evangelho do Reino de Deus – essa história decisiva e definidora que nos aponta a direção última da nossa existência: “Cristo, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime (…): a plenitude.” (GS, 22)

            Bibliografia

            – MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: A Study in Moral Theory. Notre Dame: Notre Dame University Press, 1981
            – TORGA, Miguel. Contos da Montanha. Coimbra: Coimbra Editora, 1987 (7ª edição)
            – TORGA, Miguel. Novos Contos da Montanha. Coimbra: Coimbra Editora, 1984 (12ª edição)  
            – LOURENÇO, Eduardo. O Desespero Humanista de Miguel Torga e o das Novas Gerações, Coimbra: Coimbra Editora, 1955
            – GIRARD, René. Les origines de la culture. Paris: Desclée de Brouwer, 2004.
            – BUBER, Martin. Eu e Tu; trad. Artur Mourão, Sofia Favila. – Prior Velho : Paulinas, 2014.
            – LEVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 2012.
            – RICOEUR, Paul e CHANGEUX, Jean-Pierre. O que nos faz pensar? trad., Lisboa, Edições 70, 2011
            – CONSTITUIÇÃO PASTORAL GAUDIUM ET SPES. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997.