Só sei que nada sei – Parte 5

Da «Crença Justificada» à Fé Viva. O que é que tudo isto pode ter a ver com a Fé Cristã?

Este artigo é o quinto de uma série de cinco artigos de divulgação sobre o problema do Conhecimento. Pode perfeitamente ser lido em separado, mas, para um aproveitamento mais completo, aconselho o leitor a ler também os artigos de 26 de Fevereiro, ­de 5 de Março, de 12 de Março e de 19 Março.

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Como prometido no primeiro artigo desta pequena série, esta quinta parte será dedicada à relação entre as temáticas da Epistemologia – ramo filosófico que estuda o Conhecimento – e a nossa Fé. Nas palavras com que encerrei o último artigo, a nossa demanda de hoje será procurar compreender como pode esta área da Filosofia servir-nos e mover-nos enquanto cristãos.

Ao analisar a Teoria Clássica do Conhecimento, chegámos à seguinte formulação.

As condições necessárias e suficientes para que «S conhece P» seja verdade são:

(i)   S crê em P;
(ii)  P é verdade;
(iii) S está justificado a crer em P.

Aplicando a teoria à nossa Fé, então, para que «Eu conheço P» (sendo P qualquer dado de Fé: «Deus é bom», «Deus é Pai», «Deus é amor», «Os milagres são possíveis», «O Papa é infalível», etc.) seja verdade, existem três condições necessárias e suficientes.

 

(i) Eu creio em P

Ninguém pode saber que «Deus é bom» sem acreditar que assim seja. Por muito que seja verdade, por muito que haja boas razões para acreditar nisso… se não creio que «Deus é bom», não o posso saber. Se não nos quisermos deixar enganar pela palavra «crença», que tendemos a usar já com conotações religiosas, usemos, como preferiria Platão, «opinião». Para saber que «Deus é bom», temos que ter essa opinião.

Olhando ao lado mais pragmático da teoria, esta diz-nos que, para saber se uma determinada pessoa é, ou não, de uma determinada opinião, devemos observar e analisar os seus comportamentos. Isto, de facto, é-nos ensinado por São Tiago: «A Fé, sem obras, é morta» (cf. Tg 2, 17). Algo só se torna uma crença – uma verdadeira convicção – quando se manifesta nos nossos comportamentos. Por muito que eu diga acreditar que «Jesus Cristo é verdadeiro Deus», se depois não actuo conformemente, não se trata de uma verdadeira convicção.

 

(ii) P é verdade

O que esta segunda condição nos pode dizer é, claro, que existem crenças verdadeiras e crenças falsas, mas que as únicas em que vale a pena acreditar são as verdadeiras. Quanto ao «como é que eu sei se alguma crença é verdade», essa é toda outra discussão. Não estamos a discutir o que é a verdade, mas o seu papel no conhecimento – e, através do conhecimento, na fé. O que a teoria nos diz é que esta condição incorpora uma dimensão objectiva: se a crença/opinião é uma dimensão que depende do sujeito, a verdade é objectiva. Não depende da minha experiência pessoal ou da minha vontade que «Deus existe» ou «Deus é bom» sejam afirmações verdadeiras. Mais uma vez, não há aqui novidade nenhuma: «Eu sou Aquele que sou», disse o Senhor a Moisés (cf. Ex 3, 14).

 

(iii) Eu estou justificado a acreditar em P

Por fim, a terceira condição diz-me que, para que a minha opinião verdadeira de que «Deus é bom» seja conhecimento, então eu devo estar justificado a suster essa opinião. Não basta, portanto, «crer porque sim» – são-nos exigidas boas razões. Continuamos sem novidades, já que São Pedro é absolutamente claro: «No íntimo do vosso coração, confessai Cristo como Senhor, sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça» (1 Pe 3, 15). Uma fé adulta é uma fé justificada.

«Mas então e as nossas avós, não têm fé que chegue?» é uma pergunta legítima. Estaríamos, claro, a reduzir «razões» à razão, como se fossemos uma espécie de cabeçudos. Há razões que não são da razão. Ainda assim, convém recordar que a justificação concretiza, segundo a teoria, a dimensão intersubjectiva do conhecimento. O que é que isso significa? Significa que a definição de «boas razões» é dada pela comunidade. E não me parece sensato negar que hoje, ao contrário do tempo das nossas avós, alguma comunidade valide um conjunto de razões que não têm dentro de si nenhuma racionalidade. Assim, não sendo de forma alguma tudo, é inevitável que hoje uma fé adulta passe por uma compreensão racional do conteúdo da nossa fé. Nessa linha, escrevia o Papa Bento XVI aos jovens: «Por isso vos exorto: estudai o catecismo! É este o desejo do meu coração. (…) Estudai o catecismo com paixão e perseverança! Sacrificai o vosso tempo por ele! Estudai-o no silêncio do vosso quarto, lede-o em dois, se sois amigos, formai grupos e redes de estudo, trocai ideias na internet. Permanecei de qualquer modo em diálogo sobre a vossa fé»!

 

Para abordar bem o nosso tema, falta-nos ainda fazer um salto radical. É que, ainda que tenhamos dito palavras muito bonitas sobre a fé, não tocámos o essencial. A «Fé Viva» não é uma «crença justificada». Porquê? Porque a Teoria Clássica do Conhecimento é uma teoria de conhecimento proposicional. A Fé Viva, porém, é conhecimento pessoal. A nossa Fé contém «artigos», mas, se é Fé Viva, não é a crença num conjunto de artigos, mas o conhecimento do Deus Vivo. Atrevamo-nos, então, a reinterpretar a Teoria Clássica do Conhecimento. A minha proposta, em poucas palavras, é como se segue.

 

(1) Crença. A crença, em boa verdade, é um género de relação entre o sujeito e a proposição. A minha primeira sugestão, portanto, é que passemos de um paradigma de «crença proposicional» a uma lógica de «relação apropriada». Qual é a relação apropriada com Deus? «Como um amigo a um amigo, como um servo ao seu Senhor», diria S. Inácio de Loiola. Em termos gerais, diria eu, uma relação amorosa. Em relação a isto, não vá o leitor pensar que chegámos ao fim da secção de Filosofia e entrámos na secção de “espiritualismos baratos” e “afagos do coração”, venha Jacques Maritain, filósofo tomista francês do século XX, em nosso auxílio: «Enfim, o amor destrói a impossibilidade de conhecer os outros exclusivamente como objecto (…). Na medida em que nós verdadeiramente o amamos, isto é, em que o amamos não por nós mas por ele, e na medida em que – o que nem sempre acontece – a nossa inteligência, fazendo-se passiva em relação ao amor e deixando dormir os seus conceitos, torna, por esse mesmo facto, o amor um meio formal de conhecimento, (…) nós conhecemos [o nosso amado] na sua própria subjectividade».

 

(2) Verdade. A verdade é a propriedade da proposição, segundo a qual concretiza, ou não, uma correcta descrição da realidade. A minha segunda sugestão, como tal, é que passemos de um paradigma de «verdade proposicional» a «verdade ontológica». O que é que isto significa? Que Deus não é uma proposição que corresponde à realidade e por isso é verdadeira, mas, como cremos nós, é a própria Verdade revelada (cf. Jo 14, 6). Deus «é Verdade», não na medida em que corresponde à realidade, mas na medida em que d’Ele a realidade é emanada. Assim, eu não «creio em P», que é uma proposição verdadeira, mas eu «amo Deus», que é a própria Verdade. Se quisermos retomar as dimensões subjectiva e objectiva da teoria, é subjectivo que eu (o sujeito) ame; mas é totalmente objectivo que aquele que eu amo seja, ou não, Deus. Por outras palavras, uma Fé Viva é uma relação amorosa com o Deus Verdadeiro, e não com uma falsa imagem ou um ídolo. Qual é o Deus Verdadeiro? O Deus que é amor.

 

(3) Justificação. Entendendo a crença como a relação entre o sujeito e a proposição, a justificação aparece como a motivação, ou causa, dessa relação. A minha terceira sugestão, então, é que façamos a apropriada transição das «boas razões» proposicionais às «boas razões» relacionais. Aplicando a reformulação de Goldman, o nosso amor por Deus deve ser apropriadamente causado pela Sua Verdade, que é a de ser amor. Atrevo-me, então, a declarar a afirmação de S. João uma frase plenamente filosófica: «Nós amámos porque Ele nos amou primeiro» (1 Jo 4, 19). É essa, creio, a única relação causal apropriada, é essa a única «boa razão» para amar o Senhor e O meter em primeiro lugar: que Ele, sendo eu pecador, me ame até ao fim (cf. Rm 5, 8).

 

Se me permitem o desvio pessoal, é este o ponto central do discernimento. Aliás, depois de «Como posso conhecer o Senhor?», que ponto é mais relevante para nós cristãos, que toque a pergunta «O que é o Conhecimento?», senão «Como posso saber o que quer Deus para mim»? Se há coisa que a vida me tem mostrado, é que de discernimento sei muito pouco; mas, o pouco que sei, aqui o partilho. Que boas razões procuramos nós, para esta ou aquela decisão? Não se trata de razões «proposicionais», de um conjunto de motivos suficientemente grande… Trata-se, isso sim, do conhecimento pessoal de Jesus Cristo, Deus e Senhor, Tesouro Escondido e Pérola Preciosa que, procurando e encontrando, tudo deixamos e com Ele seguimos (cf. Mt 13, 44-46) – seja onde for, seja como for.

Discernir, então, não é primariamente o resultado de um raciocínio em que pesamos prós e contras, mas sim o espaço de encontro com o Senhor (chamamos-lhe «oração») em que O conhecemos, não como «objecto» ou «proposições», mas como um verdadeiro «sujeito», o Deus verdadeiro. Por outras palavras, o discernimento, como sabiam os antigos, não é tanto uma acção da cabeça como é do coração.

 

Para terminar, faço minha a síntese de Maritain: «Deus conhece-nos abertamente na nossa subjectividade e conhece as nossas feridas, as nossas dores secretas, e, ao mesmo tempo, a secreta beleza daquela natureza que Ele nos deu (…). O conhecimento exaustivo de Deus é conhecimento amoroso. Sabermo-nos conhecidos por Deus não é apenas uma experiência de justiça: é também uma experiência de misericórdia». E, retomando o ensinamento de São Tiago, retomemos o ensinamento de Cristo, para que a nossa relação seja uma relação verdadeira e a nossa fé seja Fé Viva: «A Fé, sem obras, é morta» (cf. Tg 2, 17); «É este o Meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12). A uma semana da Páscoa da Ressurreição… eu conheço o meu irmão?


Parte 1: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-1/

Parte 2: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-2/

Parte 3: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-3/

Parte 4: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-4/

Parte 5: https://pontosj.pt/companhia-dos-filosofos/so-sei-que-nada-sei-parte-5/

 

Foto: Michael Matlon, Unsplash