Recuperar As causas da decadência dos povos peninsulares
Um dos textos sobre a História de Portugal que mais impacto teve, talvez justamente por nunca ter chegado a ser proferido, foi As causas da decadência dos povos peninsulares, da autoria de Antero de Quental e destinado à abertura das Conferências do Casino, em 1871. Interpretado por muitos como o momento clímax da Geração de 70 – posteriormente resignada a ser o grupo dos “vencidos da vida” –, tais causas podem-se resumir a três: “Ora esses fenómenos capitais são três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do Catolicismo, pelo Concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do Absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das Conquistas longínquas” (Quental, 15).
Quanto à primeira causa, é salientado o papel dos Jesuítas como soldados do centralismo de Roma, inimigo da colegialidade e da autoridade local e nacional das Igrejas, e assim favorecedor do poder absoluto dos monarcas. Não deixa de ser curiosa a referência às Constituições da Companhia de Jesus, para legitimar esta obediência fervorosa ao papado sobre a definição do pecado original no Concílio de Trento: “De então para cá, ficou dogmaticamente estabelecido no mundo católico que o homem deve ser um corpo sem alma, que a vontade individual é uma sugestão diabólica, e que para nos dirigir basta o Papa em Roma e o confessor à cabeceira. Perinde ac cadaver, dizem os estatutos da Companhia de Jesus” (Quental, 20).
Sobre o Absolutismo, Antero condena o absolutismo próprio dos séculos XVI e seguintes, sobretudo pelo suspender de séculos de convocações sucessivas das Cortes – quais “freios e contrapesos” do poder real, mitigado pelas reivindicações de Nobreza, Clero e Povo – e de uma maior independência dos poderes locais. Sem estes mecanismos e liberdade política, estava aberto o caminho para os maiores caprichos absolutistas: “Se Filipe II não fosse absoluto, jamais teria podido tentar o seu absurdo projeto de conquistar a Inglaterra, não teria feito sepultar nas águas do oceano, com a invencível armada, milhares de vidas e um capital prodigioso inteiramente perdido” (Quental, 27).
No que concerne às conquistas, critica-se a epopeia guerreira que embala os sonhos da nação e pouco contribui para que domine efetivamente. Mais, no entender de Antero, nada pode haver ser mais desfasado do espírito da idade moderna do que a “guerra esterilizadora” que prescinde da atividade produtiva em nome de um ideal inconsequente: “O proprietário, o agricultor, deixam a charrua e fazem-se soldados, aventureiros: atravessam o oceano, à procura de glória, de posição mais brilhante ou mais rendosa. Atraída pelas riquezas acumuladas nos grandes centros, a população rural aflui para ali, abandona os campos, e vem aumentar nas capitais o contingente da miséria, da domesticidade ou do vício” (Quental, 30).
Repensar As Causas do Atraso Português
Já na atualidade, com cinco décadas de Democracia para analisar, Nuno Palma propõe-se repensar as causas do atraso português que teima em nos acompanhar através dos séculos e que persistem hoje. Homenageando o movimento de Antero, sobretudo por se sujeitar também a eventuais críticas sobre a sua análise, Palma acaba por discordar de alguns dos postulados de Antero, recorrendo a evidência empírica e estatística para fundamentar os seus argumentos e “triturar” uma série de “mitos” que se acumularam ao entendimento dos portugueses sobre a nossa História e as causas do nosso – já crónico – atraso. Seguindo a sequência introduzida pelas causas de Antero, será contraposta a perspetiva de Palma às Causas de Antero.
Nuno Palma argumenta que é errado culpar a cultura e a religião pelo atraso português. Na verdade, é desmistificado o papel que a Inquisição terá tido nas causas do nosso atraso, seja porque era um mecanismo cujas penas seguiam motivações mais “pessoais e comerciais” do que propriamente religiosas, mesmo que as acusações usassem essa roupagem (Palma, 106); seja pela existência de mecanismos semelhantes nos países protestantes, à época. É dito que a Inquisição “estava normalmente mais preocupada com questões de defesa da fé, pureza de sangue, e ofensas à moral, do que com censurar questões científicas”, pelo que nunca consistiu um entrave ao progresso económico (Palma, 107).
A principal tese do autor sobre os efeitos negativos associados à religião católica é a de descortinar por de trás dela a preponderância e a interferência dos regimes políticos na sua ação, em particular do Absolutismo do século XVIII, protagonizado pela figura de Pombal e ilustrado em duas decisões-chave. Por um lado, na nomeação do seu irmão para inquisidor geral, instrumentalizando politicamente a religião. Por outro lado, na expulsão dos jesuítas do país, o que dinamitou todo um sistema educativo implantado no nosso território – “cerca de 20.000 alunos naquilo que poderíamos considerar o ensino pré-universitário, distribuídos por todo o país. Muitas destas escolas tinham mais de 1000 alunos, tendo tido o Colégio de Santo Antão em Lisboa entre 2500 e 3000” (Palma, 162). Incapaz de cumprir a promessa de substituir este sistema por um mais moderno, Palma critica Pombal por não ter aproveitado a infraestrutura existente e ter substituído o maior colégio pelo Colégio dos Nobres, mais elitista, cujo número de alunos caiu para menos de 4% que o anterior.
Contrariando – não sem polémica – a “história escrita pelo vencedores”, para quem a existência de uma Constituição era condição sine qua non para termos instituições parlamentares, é referida a centralidade participativa e negocial da convocação das Cortes, desde o século XVI, a ponto de só podermos falar de “Absolutismo” no século XVIII. Efetivamente, só neste período é que as Cortes nem por uma vez se reuniram, tal era a afluência de ouro do Brasil, a ponto de não ser necessário alterar o sistema tributário para satisfazer os interesses das diversas classes lá representadas (Palma, 59).
Quanto ao papel do Império como causa do atraso português, a argumentação de Nuno Palma foca-se mais na “Maldição dos recursos”, como resultado da afluência de ouro do Brasil consistiu, do que propriamente na dimensão extrativa das conquistas do Ultramar (que era semelhante, senão mesmo menor, à dos nossos concorrentes). Podemos encontrar neste fenómeno a principal causa do atraso português, sendo inclusivamente extensível à contemporaneidade. Com a chegada do ouro, “os rendimentos pessoais, agora aumentados, eram depois gastos tanto em bens domésticos, não transacionáveis, como em bens importados. O aumento da procura dos bens importados não tinha um efeito notório no seu preço, dado o tamanho pequeno do nosso país já à época” (Palma, 119). Já o preço dos bens não transacionáveis, produzidos e consumidos internamente, disparou, o que desincentivou a produção industrial e gerou um grande desequilíbrio na balança comercial (aumento das importações e diminuição das exportações).
Estava aberto o caminho para a desindustrialização e a manutenção da economia portuguesa como essencialmente agrária (“[no final do século XVIII,] a percentagem de pessoas a trabalhar fora da agricultura chegou a um máximo histórico para o período anterior ao século XX: quase metade estavam nesta categoria”) e opulenta pelas dependência das importações estrangeiras (“[um] visitante mostrou-se espantado por grande parte dos objetos que existiam nas casas lisboetas serem importados, afirmando que «até os sapatos que usam vêm de Inglaterra ou de França»”; Palma, 142-146).
Ao legado do Marquês de Pombal seguiram-se configurações políticas que pouco ou nada contribuíram para o desenvolvimento do país no que toca ao crescimento económico, à superação do seu contexto agrário e à aposta civilizadora na educação. Mudaram os regimes, mas o atraso persistiu. Seja pela instabilidade governativa, por golpes militares ou por incapacidade dos executivos, tanto a Monarquia (dita) Liberal como a Primeira República representaram autênticos fracassos, pelo facto de “muitas das reformas se terem feito apenas por decreto – ou seja, de jure“, faltando a sua implementação de facto (Palma, 43). Na ótica do autor, foi o Estado Novo – sem esquecer o carácter repressivo de muitas das suas instituições – que deu passos estruturais no sentido de uma maior prosperidade económica do país, ao contrário do que muitos historiadores têm afirmado: “a partir de 1950, iniciou-se em Portugal a maior descontinuidade da nossa História. O país entrou, nessa altura, num processo de crescimento acelerado que iria aproximar o país da Europa Ocidental” (Palma, 218).
Esta convergência que permitiu que o PIB per capita português passasse de 37% da média europeia em 1940 para 55% em 1973 é explicada, resumidamente, pelo muito bem sucedido combate ao analfabetismo, mais preocupado em ensinar a ler, a escrever e a contar do que em abrir guerras culturais (em 1930, a taxa de analfabetismo no grupo etário dos 10-14 anos era de 58%, enquanto em 1960 era de apenas 3%, e em 1970 era só de 1%); pela abertura da Economia ao exterior com a adesão à EFTA (1960); pela industrialização crescente e a consequente diminuição da proporção de população a trabalhar no setor da agricultura (desceu de 57% para 25% durante o Estado Novo). Ainda que seja contraintuitivo e tenha gerado uma onda de indignação, na perspetiva deste autor, foi residual para o bom desempenho da Economia portuguesa o contributo da presença extrativa dos portugueses no Ultramar, entre o que se gerava do comércio e o que se dispendia em custos administrativos e de infraestruturas, valores que dispararam com a Guerra Colonial.
O novo ouro do Brasil
Uma das grandes novidades do best-seller de Nuno Palma – a mais pertinente para o nosso estudo -, não é tanto o desmistificar o olhar histórico para o Estado Novo, mas sim a transposição da lógica da “Maldição Dourada” do ouro do Brasil do século XVIII para os Fundos Europeus da contemporaneidade. Depois da convergência em termos de crescimento económico a que assistimos durante o período do Estado Novo, a Democracia que Abril instaurou veio inverter este rumo, à exceção dos anos 1990 que registaram algum crescimento e desenvolvimento. No entanto, desde o ano 2000, o PIB per capita português desceu de 90% da média da Europa Ocidental para perto dos 70% na atualidade, valores que tendem a agravar-se, sem que isso implique, em contrapartida, bons desempenhos ao nível da justiça social, igualdade de oportunidades, carga fiscal atrativa, confiança na justiça ou mobilidade social (Palma, 254). Além dos – já crónicos – baixos níveis de capital humano e produtividade, o autor foca-se na dependência nociva e permanente da nossa economia face aos Fundos Europeus: “até ao alargamento da UE a Leste, Portugal foi o país da UE que mais sistematicamente «beneficiou» de financiamento estrutural, relativamente ao PIB.(…) Em termos aproximados, estes valores atingem, em termos anuais, cerca de 3% do PIB. Ou seja, a UE continua a dar-nos todos os anos dinheiro que equivale ao peso de duas «Autoeuropas» na economia, sem grandes contrapartidas práticas” (Palma, 258).
Não deixa de ser curiosa a comparação feita entre o peso destes fundos na nossa Economia e o peso das chegadas do ouro do Brasil no séc. XVIII (4 a 6% do PIB nominal por ano, entre 1720 e 1760). Ao invés de estarem a contribuir para a tão desejada convergência de capacidade produtiva e desenvolvimento económico e social, os fundos têm-se perpetuado como uma espécie de “abono de família” constante que tem adormecido a nossa capacidade de criação de riqueza, a nossa competitividade exportadora e tem potenciado a falta de prestação de contas das instituições e políticas públicas. Eis-nos diante de um dilema democrático: se os executivos “fecham a torneira”, deixando de encaminhar parte dos fundos para sustentar as bases do seu apoio político, vão ser substituídos por outros que o façam, “escondendo do público a extensão dos problemas e protegendo, com uma cortina de fumo, a inércia e incompetência dos governantes” (Palma, 261). Resta, na opinião do autor, à UE a impopular decisão de cortar o fluxo de “ouro”, cujas “consequências (…) serão dolorosas, mas esse será o primeiro dia do nosso confronto e acerto de contas com a realidade. Apenas então poderá acontecer uma verdadeira autoavaliação das más escolhas que, coletivamente, temos feito” (Palma, 266).
Superada a anestesia e assumidos os seus custos, estaria aberto o caminho sem retorno para repensar e refazer Portugal na sua dimensão económica e estratégica – mais do que prometendo reformas estruturais (de jure), pondo-as em prática (de facto). Este movimento audaz implicaria certamente desafiar: os interesses instalados, os preconceitos ideológicos contra a iniciativa privada na Educação ou na Saúde e a “reforma do Estado”, as “leis laborais rígidas e inadequadas ao mundo globalizado do presente”, “os impostos altos relativamente à qualidade dos bens públicos”, a cultura de compadrio que teima em imperar, a prevalência da lógica das “portas giratórias” – própria de um país “pequeno” na dimensão e na mentalidade -, o espírito corporativista de favorecer os mesmos grupos, a abordagem sindicalista de desregular a economia para manter as representatividades lobistas, o peso e a inércia de “um Estado Social incapaz de dar às pessoas o que necessitam” (Palma, 262).
Diante deste diagnóstico exigente e lúcido que Nuno Palma nos traz, ainda que com traços exagerados e simplistas, é fácil compreender em que medida a abordagem portuguesa ao Projeto Europeu, pelo menos no plano económico, tem desvirtuado o sonho dos seus pais fundadores e a ambição de desenvolvimento que a Democracia nos prometeu. Reformar as instituições (questionando os interesses instalados e os circuitos de sempre) e reformar a nossa mentalidade face à Europa (pondo em causa a ideia imobilizadora de que só nos cabe receber e não contribuir) são dois movimentos imprescindíveis e indissociáveis para um Portugal que queira sair da “cepa torta”. Sem essas duas reformas primeiras, nenhuma outra reforma poderá ser “estrutural”: seja no apostar do fortalecimento de um setor estratégico da economia nacional, seja na alocação racional dos recursos do Estado, seja numa reforma séria do sistema da Segurança Social, seja num qualquer “salto tecnológico” propulsor da produtividade, seja num choque fiscal favorável aos jovens, aos investidores externos ou às empresas.
Porém, esta “libertação” – em primeiro lugar de nós próprios – não se pode ficar pela ambição de crescer sem limites. Antes, tem de se abrir à justiça de redistribuir a riqueza gerada de forma equitativa, com intencionalidade, eficiência e não somente como consequência esperada do processo. Crescer sem gerar justiça social não é crescer com esperança: é caminhar para o abismo.
O próximo (e penúltimo) artigo deste ciclo “Repensar Portugal” procurará contribuir para encontrar este difícil equilíbrio entre a promoção do crescimento e o combate às desigualdades, no contexto de uma Europa integrada tanto quanto possível e de um mundo tão fragmentado como talvez nunca ousámos pensar.
Bibliografia
PALMA, Nuno. As Causas do Atraso Português. Dom Quixote, Lisboa, 2024
QUENTAL, Antero de. As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. Ebook, 2015
Fotografia: Marquês de Pombal expulsa os Jesuítas, BBC