Aliar a uma economia que cresce com esperança (tema do último artigo) mecanismos e valores que a permitam redistribuir com justiça a riqueza gerada não é tarefa fácil, mas nem por isso irrelevante.
Nuno Palma, não só pelo teor das suas opiniões, mas sobretudo pela forma desempoeirada de as expressar com que vai habituando a sociedade portuguesa, teria provavelmente bastantes dificuldades em discutir com Thomas Piketty, economista francês especializado no tema das desigualdades, conotado com o socialismo democrático francês, embora europeísta convicto. Quando questionado sobre uma possível ponte entre os trabalhos de ambos, que o presente texto procura estabelecer, Nuno Palma apenas confessou: “Parece um projeto interessante”, tendo ficado a dúvida se considerava esta uma tentativa pertinente, ou sequer possível.
Tal dúvida é corroborada nesta passagem da obra atrás trabalhada: “O resultado [do rumo dos acontecimentos descrito] é um país com expetativas irrealistas sobre o Estado Social e com uma ênfase política quase exclusiva nas questões da desigualdade, mesmo quando essa ênfase é feita à custa de um debate sério à volta da criação de riqueza. Isto é irónico, porque apenas essa pode pagar o Estado Social de qualidade que as pessoas tanto desejam e merecem. Nivelar por baixo apenas pode levar a um país em que quase todos são pobres” (Palma, 270).
A proposta deste artigo, mais do que absolutizar a proposta de Nuno Palma ou diabolizar alguma que se lhe oponha passa por, reconhecendo a leitura que Palma faz da nossa situação como ponto de partida a ter em conta, procurar mitigar alguns dos seus excessos com uma teoria económica alternativa (proposta pelo economista Thomas Piketty), mas não totalmente incompatível. Tendo o debate sobre a criação de riqueza sido já aflorado, resta perceber como seria possível conjugar a necessidade da convergência económica com a evidência candente das desigualdades, não só entre países – do Norte face ao Sul, dos antigos impérios face às ex-colónias –, mas sobretudo dentro dos próprios países, onde se assiste a um aumento dos níveis de concentração de riqueza nas mãos de uma elite. Na verdade, métricas macroeconómicas bastante utilizadas por Nuno Palma, como o PIB per capita, correm o risco de não revelar o grau de distribuição da riqueza dentro da mesma população, nivelando os muito ricos e os muito pobres numa medida imaginária e representativa, conveniente para comparações temporais e internacionais, mas pouco relevante para quem quer promover a igualdade no seio de uma sociedade.
Sobre a questão dos indicadores, Piketty afirma que “nenhum indicador deve ser sacralizado e a natureza dos indicadores selecionados deve estar no cerne do debate público e do confronto democrático” (Piketty, 37), pelo que devemos preferir uma abordagem multidimensional que combine vários indicadores que valorizem a evolução do acesso a bens concretos como a educação, a saúde, a alimentação, a cultura.
O autor chega a saudar a criação do “indicador de progresso global”, pelo ecólogo e economista Tim Jackson que combina em si dados ambientais, dados do rendimento nacional e dados sobre a distribuição deste no conjunto da sociedade (Piketty, 47). Isto porque, no seu entender, muito do crescimento das economias mais potentes do mundo está alicerçado na “sobre-exploração” dos recursos naturais do planeta e inflige danos às populações mais expostas ao aquecimento global: a concentração de riqueza e as emissões de carbono são variáveis que crescem em conjunto, deixando “para trás” os países que estão mais atrasados e que são os “primeiros a ser atingidos por esse aquecimento” (Piketty, 43).
Reescrever Uma Breve História da Igualdade
Segundo Piketty, “existe um movimento de longo prazo que caminha para mais igualdade social, económica e política ao longo da história” (Piketty, 13). Na obra Uma Breve História da Igualdade, o autor reconhece uma tendência que teve nos anos 80 do séc. XX o seu ponto mais positivo, antes de as desigualdades se terem de novo agravado: por exemplo, em França, a parte do 1 por cento mais rico da população detinha 45% do total das propriedades, em 1810; passando a deter 55% em 1914; chegando a ter menos de 20%, no início dos anos 1980, antes de iniciar uma subida lenta para perto dos 25% em 2010 (Pikett, 51).
Efetivamente, apesar da tendência geral para a igualdade, regista-se recentemente um agravar das desigualdades – entre países e dentro dos países – que continuam a estabelecer-se ao nível do estatuto, propriedade, poder, rendimento, género, origem, o que muitas vezes significa um multiplicar dos seus efeitos que urge ser combatido. Por outro lado, conceitos fundamentais como os regimes de propriedade e os sistemas fiscais são constantemente chamados à discussão, partindo do pressuposto de que a diversidade das “relações de força entre os diferentes grupos sociais e das visões do mundo em presença, (…) conduzem a níveis e estruturas desigualitários extremamente variáveis” (Piketty, 22). Na verdade, para o mesmo nível de desenvolvimento económico, o panorama da igualdade pode variar muitíssimo.
Uma das teses centrais do livro prende-se com o poder reivindicativo que movimentos pela igualdade protagonizaram ao longo da História, enriquecendo as instituições, através de lutas e revoltas que se deram ao longo da história contra instituições injustas, extrativas ou geradoras de desigualdade. Exemplos disso encontramos no fim dos privilégios à nobreza aquando da Revolução Francesa, na revolta dos escravos em São Domingos (1791) que deu início à abolição da escravatura no Atlântico ou mesmo as guerras da independência que puseram fim ao colonialismo europeu na segunda metade do século XX.
Se já é muito significativo a capacidade de reivindicação, o autor sublinha a dificuldade acrescida de, posteriormente, criar instituições alternativas, o que implica a capacidade de debate, o confronto construtivo com a diferença e a necessidade de cedências tendo em vista os compromissos a estabelecer. A título ilustrativo, o autor recorda um conjunto de instituições que se foram consolidando ao longo da marcha pela Igualdade ao longo da História, e que estarão constantemente sujeitos a melhoria: “a igualdade jurídica; o sufrágio universal e a democracia parlamentar; a educação gratuita e obrigatória; o seguro de saúde universal; o imposto progressivo sobre o rendimento, as sucessões e os imóveis; a cogestão e o direito sindical; a liberdade de imprensa; o direito internacional” (Piketty, 25).
Neste sentido, se os movimentos populares se reúnem mais facilmente em torno de reivindicações do que na defesa de instituições, o autor confessa a tensão que é necessário habitar entre a valorização das relações de força na defesa dos direitos e a deliberação acerca das instituições justas. Em ambas as fronteiras desta polarização, é valorizado o papel das ideologias: quando bem fundamentadas e dotadas de capacidade de diálogo permitem evitar o “maniqueísmo” destrutivo das ruas bem como “o egoísmo” utilitário gabinete, próprio das classes dominantes (Piketty, 28).
Uma das grandes consequências da interação fecunda entre reivindicações e instituições alternativas foi a criação do Estado Social, amplamente potenciado pelas duas guerras mundiais e a crise de 1929, e muito alimentado pela criação de um imposto dotado de grande progressividade sobre o rendimento e as heranças (que chegou a representar uma média de 81% de taxa superior do imposto nos EUA, entre 1932-1980). Este fenómeno permitiu uma “redução maciça da concentração das riquezas e do poder económico no cume da hierarquia social, favorecendo em simultâneo uma mobilidade [social] mais forte e uma maior prosperidade” (Piketty, 163).
O autor refere os efeitos positivos das receitas fiscais não só na redução das desigualdades, mas no próprio potenciar do crescimento económico através de uma aposta pública na saúde, na educação, nos transportes e em mecanismos de apoio à velhice ou ao desemprego. Por mais contraintuitivo que pareça, o crescimento do imposto progressivo não impediu a inovação e o aumento da produtividade: “nos Estados Unidos, o rendimento nacional por habitante progredia ao ritmo de 1,8% por ano entre 1870 e 1910, na ausência de um imposto sobre o rendimento, depois crescendo depois 2,1% entre 1910 e 1950 após a sua introdução, e até mesmo 2,2% entre 1950 e 1990, quando a taxa superior atingia em média 77%. Em seguida, a taxa sobre os rendimentos superiores foi reduzida a metade, com o objetivo anunciado de impulsionar o crescimento.” No entanto, no período entre 1990 e 2020, o crescimento reduziu-se também a metade, fixando-se nos 1,1% por ano (Piketty, 185). Esta análise pode-nos levar a concluir que, para certos níveis de desigualdade (e de concentração de riqueza), os benefícios fiscais não surtiram maior efeito do que a redistribuição dos rendimentos.
Ao contrário do que afirma Nuno Palma sobre a influência do Império Colonial no desempenho da Economia Nacional, a investigação de Piketty leva a crer que as potências estrangeiras extraíram sucessivamente vantagens económicas das suas posses, abrindo um fosso colonial e esclavagista difícil de suprir: “a partir de 1685, o Parlamento britânico introduziu direitos alfandegários de 20 por cento, e depois de 30 por cento em 1690, antes de proibir completamente a importação de têxteis [indianos] estampados e coloridos em 1700. A partir desta data, só os tecidos virgens eram importados da Índia, o que permitiu que os produtores britânicos avançassem no fabrico de peças de cor e de estampados” (Piketty, 85). Raciocínios desta natureza levam o economista francês a propor mecanismos de indemnização às colónias tendo em vista mitigar o fosso criado não só entre os países, mas também presentes nas profundas feridas e discrepâncias sociais internas herdadas pelas ex-colónias.
Repensando o capitalismo vigente, o autor sugere implantar “um socialismo democrático, autogestionário e descentralizado” que se situa na continuidade da marcha para a Igualdade e que se opõe ao socialismo “estatal, centralizado e autoritário” de tipo soviético (Piketty, 223). Algumas das propostas ousadas do autor que visam mitigar o fosso entre os mais ricos e os mais pobres que o capitalismo tem aberto passam por:
– debater a imposição de quotas sociais ou raciais no combate às discriminações, sem que isso signifique, “cristalizar as identidades” (Piketty, 251);
– mitigar o “neocolonialismo”, que escapa à redistribuição através da livre circulação de capitais, com a criação de um “imposto mundial de 2% sobre a fortunas superiores a 10 milhões de euros” (Piketty, 284);
– aproveitar o imposto sucessório para “redistribuir a herança em benefício de todos aqueles que não herdam quase nada”, criando uma herança mínima para todos (Piketty, 184);
– considerar, na atribuição e contabilização de fundos comunitários e de ajudas internacionais, a “dimensão dos fluxos privados” que saem sob a forma de dividendos ou o impacto ambiental nocivo de certas atividades económicas (Piketty, 283)
– repensar os tratados de livre comércio e circulação em prol de uma autoridade transnacional com poder para decidir em matéria de “decisões orçamentais, fiscais e sociais[-ambientais]” de maneira a compatibilizar a realidade legislativa (ainda nacional) à prática económica (já global) (Piketty, 292).
Repensar Portugal no sentido de uma maior justiça social e ambiental, longe de passar por adotar liminarmente a visão de Piketty e todas as suas propostas, só pode ser feito no contexto de integração política e económica no qual vivemos, seja na Europa, seja à escala global. Como defendeu Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo, só uma “política-mundo” pode responder aos desafios de uma “economia-mundo”. Se reconhecemos como os principais desafios da globalização a “subida das desigualdades” e a “fuga para a frente em direção ao aquecimento global”, cabe-nos exercer uma cidadania ativa no sentido de lutar pelos nossos direitos e de fortalecer as instituições que melhor possam responder por esses direitos – local, nacional e universalmente (Piketty, 288-295).
A Construção da Europa, entre a esperança e a justiça
Com o objetivo de compatibilizar as posições maioritariamente antagónicas de Nuno Palma (apresentada no artigo anterior) e Thomas Piketty, recorreremos à reflexão do ex-primeiro-ministro português Pedro Passos Coelho num artigo da revista Brotéria de Maio/Junho de 2024, onde apresenta um estudo sobre a situação portuguesa no contexto da construção europeia. Citando a frase de Jean Monnet segundo a qual “a Europa far-se-á nas crises e será a soma das soluções encontradas para essas crises”, é sugerido a intenção originária do Projeto Europeu de, a partir das imperfeições da integração iniciais, se ir caminhando para uma integração cada vez maior (Passos Coelho, 469).
Uma das limitações europeias que é descrita neste artigo prende-se com a imperfeição da união monetária. Por um lado, não existe uma união orçamental que “disponha de um orçamento comum para fazer face à estabilização macroeconómico agregada”, isto é, para reagir a perturbações económicas, transferindo recursos intencionalmente para zonas mais afetadas por certas crises, como acontece com o orçamento federal dos EUA. Por outro lado, não existe um Banco Central com o poder de “emitir moeda para garantir a dívida emitida pelos Estados”, ou seja, ao serviço de fins manifestamente políticos. Esta duplicidade corrobora as teses de Piketty – a favor dos poderes orçamentais transnacionais e pelos contornos políticos que a ação do Banco Central Europeu poderia assumir –, mas não deixa de relembrar os riscos associados a uma transferência discricionária e sujeita a fraca fiscalização de Fundos Europeus, cuja existência e funcionamento são ampliamento postos em causa por Nuno Palma (Passos Coelho, 470).
Na verdade, foi na reação a crises como a das dívidas soberanas de 2010 que se criaram mecanismos de gestão de crises (como o Mecanismo Europeu de Estabilidade) que à época revelaram lacunas existentes no quadro institucional europeu, mas que entretanto motivaram progressos assinaláveis. O mesmo se diga da centralidade da política monetária do BCE – sem que tivesse um mandato explícito para tal – na defesa “custe o que custar” do euro, “mesmo que isso obrigasse a defender a dívida soberana de qualquer um dos seus membros”. Mais recentemente, o choque pandémico “trouxe soluções inovadoras no domínio orçamental, para as quais não havia antes qualquer precedente equiparável”: o PRR ou a mutualização e emissão de dívida europeia para suportar com mais agilidade os apoios aos países mais afetados (Passos Coelho, 471).
Se, por um lado, não devemos ficar excessivamente dependentes da transferência dos fundos europeus para “vivermos dos rendimentos”, prescindindo de efetivar reformas estruturais na nossa Economia, seria inocente no contexto internacional contemporâneo não valorizarmos a importância da integração europeia – monetária, fiscal, política, social e ambiental – para respondermos aos desafios já referidos da globalização (desigualdades e aquecimento global) e aos novos desafios da “desglobalização” (a ameaça protecionista da China e de Trump, as guerras às portas da Europa, e o crescimento dos nacionalismos, tipicamente avessos a aprofundar a integração europeia).
Passos Coelho, em jeito de conclusão pergunta-se se “estaremos realmente condenados a escolher” entre, por um lado, “acelerar para uma opção federalista” ou, por outro lado, a “ficarmos «anões» globais, numa União demasiado imperfeita que nos impõe um custo excessivo para manter algum equilíbrio entre as identidades nacionais?” Segundo o economista e ex-primeiro-ministro, este é um falso dilema, já que, sem alarmismos e com a prudência que um projeto com esta história exige, “continuará a haver espaço para explorar melhoramentos na nossa arquitetura institucional sem cair naqueles extremos”( Passos Coelho, 473). É tempo de habitar aquela “zona temperada” de, sem diluirmos excessivamente as identidades fortes e antigas que nos constituem, não esquecermos o valor do todo mais forte que somos enquanto Europa, se quisermos ter uma palavra a dizer sobre os destinos da Humanidade.
Bibliografia
PIKETTY, Thomas. Uma Breve História da Igualdade. Círculo de Leitores, Lisboa, 2022
PASSOS COELHO, Pedro. “Portugal e a construção da União Europeia” em Brotéria 198, 463-473, Lisboa, 2024
Fotografia: Fridays For Future Climate Protest In Berlin, gettyimages