In memoriam Ernâni Lopes, meu saudoso avô (1942-2010), no 40º aniversário da Assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à CEE
“Repensar Portugal” foi o título de um texto inesquecível que Manuel Antunes (1974) assinou semanas após o 25 de abril. As primeiras linhas do artigo cujo título imortaliza a obra do pensador jesuíta dão eloquentemente nota do que se viveu naquela “madrugada que [tantos] esperava[m]”, no amanhecer daquele “dia inicial inteiro e limpo”, na emergência existencial de “livres habita[r]mos a substância do tempo” (Sophia de Mello Breyner):
De um dia para o outro tudo pareceu novo. Era o fim das palavras longamente proibidas, dos gestos apertadamente contrafeitos, de uma certa mentira institucionalizada, do terror invisível mas presente em toda a parte. Era a possibilidade do termo do isolamento internacional, daquele «orgulhosamente sós» que é a contradição mesma do mundo em que vivemos. Era o surpreso despertar de um pesadelo de anos, cada vez mais denso, cada vez mais escuro. (…) E, de repente, o País pôs-se a falar. Nestes últimos quinze dias, Portugal tem sido um país que discute, um país que reivindica o possível e o impossível, um país que quer tomar nas mãos o próprio destino, um país que, embora de forma não raro confusa, se esforça por traçar o seu futuro, um país que busca reencontrar a própria identidade. (Antunes, 2005, 37)
Poucos tinham dúvidas que esse “traçar o futuro”, esse “tomar nas mãos o próprio destino” não passasse pela Europa. Se a liberdade alvejou a nossa identidade, definindo-a constitutivamente “de um dia para o outro”, e abriu o caminho para a consolidação da Democracia que só o 25 de novembro pôde garantir, o processo da integração europeia foi – tem sido – mais moroso, progressivo e exigente, mas nem por isso pouco promissor. O diagnóstico gizado por Eduardo Lourenço há 25 anos permanece, em certa medida atual:
Na mais realista e optimista das perspectivas, a Europa — uma parte dela— é uma trama de forças económicas, de dispositivos de ordem financeira, administrativas e mesmo políticas de um nível de coerência notáveis, mas suspensa da concretização efectiva desse horizonte. Europa que lhe daria um suplemento de existência. A ficção-Europa precede a sua incarnação, a essência (virtual), a sua existência. A Europa é —neste momento— uma espécie de ideal à maneira de Kant, ponto de fuga do projecto europeu. Não é pouco. Isso significa que a ideia de Europa não é um envelope vazio, mas a utopia mesma do paradoxal objecto histórico-cultural, que vivemos e chamamos Europa. (Lourenço, 2000, 216-217)
Entre a herança europeia e as Europas herdadas
Há quem diga que o Projeto Europeu se encontra “a meio da ponte”: entre um federalismo “à americana”, que associa à integração económica aquela monetária e a política; e um europeísmo moderado, que dá preponderância à soberania dos estados membros. Ficar no meio da ponte, habitando esta tensão, é um prenúncio de desgraça ou uma virtude a cultivar? É, justamente, nesta encruzilhada de estar “já” unida , mas “ainda não” totalmente integrada, que a identidade da nossa Democracia se vai jogando no contexto da Europa das nações irmãs. Juntas não constituem uma “unidade cultural”, mas uma “multiplicidade de identidades culturais fortes” (Lourenço, 2000, 215), reunidas originalmente em nome da paz e do progresso económico numa “constelação imaginária” – porque por efetivar plenamente.
Se, na Europa, a essência precede a existência, é porque, por um lado, foi concebida na ressaca da Segunda Guerra Mundial como “identidade europeia que não devia dissolver ou negar as identidade nacionais, mas uni-las a um nível de unidade mais alto numa única comunidade de povos, (…) [cuja história comum gerasse] uma força criadora de paz” (Ratzinger, 40). Por outro lado, num quadro diplomático do pós-guerra de perda de influência das potências europeias, em favor da ascensão dos Estados Unidos da América, do Japão e da área de influência da URSS, imperava a vontade de afirmação europeia na cena internacional a uma só voz, numa estrutura comum em que “os interesses nacionais deviam unir-se num interesse europeu comum” (Ratzinger, 41). Para alcançar e sustentar esse poder político, havia que construir um poder económico proporcional, sendo a Unidade Económica e Monetária e, em particular, o euro, expressão desse mesmo movimento.
A propósito da tal “história comum” que nos confere identidade, Ratzinger “não [tem] nenhuma dúvida de que para os pais fundadores da unificação europeia a herança cristã era considerada o núcleo desta identidade histórica, (…) força unificadora do agir no mundo” (Ratzinger, 40). Já Eduardo Lourenço hesita entre atribuir a génese propriamente europeia à confluência harmoniosa entre Jerusalém, Atenas e Roma ou à herança de um modo de proceder barbaramente conflituoso e de aspiração não europeísta, mas universalista: “Na verdade, nós, Europeus, não somos filhos naturais da Grécia e de Roma, mas filhos dos bárbaros, da sua intrínseca diversidade, turbulência, [sendo que] o que é próprio da Europa, o que a distingue de todas as outras culturas conhecidas, não é esse enraizamento natural numa Europa que não era ainda Europa, mas a reciclagem dessa herança mais ou menos mítica de Gregos e de Romanos.” ( Lourenço, 220). Entre a continuidade idílica de uma só Europa e a dialética realista de muitas Europas sobrepostas e enxertadas umas nas outras, Eduardo Lourenço parece preferir a segunda hipótese.
Coordenadas de um imaginário comum
Num ensaio que tem tanto de poético como de existencial – A Ideia de Europa (2005) -, George Steiner esboça cinco coordenadas para mapear a identidade europeia, partindo de elementos aparentemente incipientes: os cafés, o caminhar, o memorial, o berço de Atenas e Jerusalém, e a consciência escatológica.
1. “A Europa é feita de cafeterias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo” (Steiner, 26). Local de encontro e conspirações, de mexericos e seduções, está aberto a todos sem deixar de poder ser um clube frequentado por uma elite mais ou menos secreta. Habitat natural de poetas e filósofos, do ócio desesperado ou fraterno à inspiração torrencial, são um sagrado repositório da ideia de Europa.
2. “A Europa foi e é percorrida a pé. (…) A cartografia da Europa é determinada pelas capacidades, pelos horizontes percecionados dos pés humanos. Os homens e as mulheres percorrem a pé os seus mapas (…) [e] o mais das vezes, as distâncias têm uma escala humana, podem ser dominados pelo viajante que se desloque a pé, pelo peregrino até Compostela, seja ele solitaire ou gregário” (Steiner, 28). Longe das paisagens inóspitas e intransponíveis de outras latitudes, a proximidade da Europa sugere um tempo mais histórico-humano que geológico. As pegadas da marcha dos batalhões confundem-se nos anais da História com os movimentos migratórios; e as peregrinações anuais dão tantas vezes lugar a deambulações filosóficas peripatéticas. E nesse caminhar juntos, como não lembrar o papel do comércio intra-Europeu, num interminável “toma lá, dá cá” de bens, serviços, capitais e pessoas; no intercâmbio emancipatório de estudantes ou na livre circulação anunciadora de fé e cultura.
3. “As ruas, as praças calcorreadas pelas mulheres, crianças e homens europeus são cem vezes mais designadas segundo estadistas, figuras militares, poetas, artistas, compositores, cientistas e filósofos” (Steiner, 32). A civilização europeia como que acumula em camadas o saber e o legado de gerações, que em placas discretas e omnipresentes deixam a sua marca. As ruas e fóruns da nossa vida, longe de serem meras contingências espaciotemporais, trazem em si o peso silencioso de quem lhes imprimiu caráter, seja ele conferido por massacres odiosos ou gestos heróicos. À vertigem de cada passo, sobrepõem-se a confiança de se estar enraizado “sobre gigantes”.
4. “A herança dupla de Atenas e Jerusalém, [numa] relação simultaneamente conflituosa e sincrética, ocupou o debate teológico, filosófico e político desde os Doutores da Igreja a Léon Chestov, de Pascal a Leo Strass. (…) Ser europeu é tentar negociar, moralmente, intelectualmente e existencialmente, os ideais, afirmações, praxis rivais da cidade de Sócrates e da cidade de Isaías” (Steiner, 36). Sobre este legado espiritual em sentido amplo, o autor destaca três heranças indiscutivelmente europeias e transcendentes, no sentido em que atestam a nossa índole de sermos – enquanto co-criadores – à imagem de Deus: a música, a matemática e o pensamento filosófico-poético. Se a poesia é definida como “música do pensamento”, a comunicação mística dá-se para os lógicos a partir de um Deus que “canta álgebra”. Já a “invenção da Cristandade”, segundo este autor judeu e crítico do Cristianismo, dá-se na obsessão paulina pela “tensão entre judeus e gregos” (Steiner, 41).
5. “Uma consciência própria escatológica [presente] no «pânico do ano mil» (…) [ou] na teoria da história de Hegel como «um sentido do final», tal como se encontra na formulação pomposa de entropia, de Carnot, da extinção inevitável de toda a energia” (Steiner, 43). Nada como a calamidade do século XX para dar corpo a este arquétipo apocalítico, em campo aberto – das trincheiras à Normandia -, ou em campo fechado – em Auschwitz e nos Gulag. É uma sombra que perdurará sobre todas as luzes, por mais religioso ou cultural que seja o âmbito da questão identitária.
Steiner conclui a sua reflexão apelando a um “humanismo secular” que tenha como principal embaixador a Europa, num contexto de crescente perda de influência económica e militar. Suprindo aquilo que de essencial escapa à hegemonia consumista, militarista e uniformizadora americana (e escapará à chinesa ou por ventura à russa), cabe-nos revitalizar a herança que nos vem do berço de Jerusalém e Atenas [e, adicionamos nós, Roma]: “perceção da sabedoria, a demanda do conhecimento desinteressado, a criação de beleza”. Fazendo da aparente debelidade económica potencial de engrandecimento, o autor remete para o nosso património histórico, enquanto europeus, para concluir profeticamente que “as solidariedades e criatividades humanas podem despontar da pobreza relativa” (Steiner, 54).
A Igreja e a re-construção da Europa
Refletindo sobre o “hoje” do Projeto Europeu e recordando a sua matriz originariamente cristã, pareceu-me pertinente – em jeito de aggiornamento – recuperar os princípios-base da Doutrina Social da Igreja, colocando-os em diálogo com as exigências do tempo de hoje. Este diálogo será feito retomando os contributos do então teólogo Joseph Ratzinger (depois Papa Bento XVI) em “Reflexões sobre a Europa” e de Ernâni Rodrigues Lopes, meu avô, Ministro das Finanças e do Plano do Governo do Bloco Central, entre 1983-85, e principal negociador da adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE), em “A Igreja e a construção da Europa”:
Dignidade da Pessoa Humana: o acolhimento que o multiculturalismo religioso comporta deve ser reconhecido como um bem a promover, mas não poderá substituir os “pontos de referência que são os próprios valores” (Ratzinger, 36). Para reconhecer o que é sagrado para os outros, devemos primeiro reconciliar-nos connosco próprios e reconhecer o que (ou Quem) é sagrado para nós. Discussões sobre o direito ao aborto – esse tema que nunca devia passar de moda – como parte integrante da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia prendem-se com esta questão. Por outro lado, uma conceção honesta deste princípio basilar implica olhar não só para o início e o fim da vida humana, mas também para tantas outras situações limite onde esta dignidade sagrada urge ser defendida: quanto um país é invadido por outro, quando um povo é massacrado impiedosamente no seu território, quando seres humanos perdem a vida atravessando o mar, fugidos da miséria ou em busca de condições para florescerem.
Bem-Comum: na busca da melhoria das condições de vida das populações, muitas vezes o critério económico da racionalidade é absolutizado, ficando esta refém da técnica – da funcionalidade, da eficácia, dos meios de bem-estar – e esquece o contributo das tradições éticas, seja na instrumentalização de certos seres humanos ou na exploração exacerbada da natureza, que não olha a “possibilidades” para satisfazer “necessidades” (Ratzinger, 45). Ressoa neste âmbito o apelo do Papa Francisco na Encíclica Laudato Si’ “: uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres” (LS, 49).
Solidariedade: o Estado Social, em particular, os sistemas de Segurança Social constituem, nas palavras de Ernâni Lopes, um “florão da civilização humana” e devem ser postos ao serviço de quem mais precisa, atendendo às circunstâncias demográficas e laborais presentes. Como dois valores a pesar conjuntamente, “sem competitividade não é possível viver; e sem solidariedade a vida é insuportável”. Estendendo estes valores à concorrência internacional, é evidente que “não há solidariedade que sobreviva, a prazo à perda de competitividade”, pelo que é necessário promover a “tecnologia como base de incremento da competitividade” e a “criatividade política e ideológica” como garante da solidariedade (Lopes, 277). Um exemplo de como é possível aliar competitividade a solidariedade no hoje da Europa é o Pacto Ecológico Europeu que, com um investimento de 1,8 biliões de euros à época da saída da pandemia, pretende: “zero emissões líquidas de gases com efeito de estufa até 2050; um crescimento económico dissociado da utilização de recursos; que nenhuma pessoa ou região fique para trás” (The European Green Deal).
Subsidiariedade: segundo Toynbee, “o destino de uma sociedade depende sempre de minorias criativas”. Cabe aos cristãos no meio do mundo, como fermento – minoritário e invisível – no meio da massa, pugnar para que a Europa aproveite “o melhor da sua herança” e o coloque ao “serviço da humanidade inteira” (Ratzinger, 36). Para isso, importa especializar-se no estudo das matérias; enquadrar o que se estuda nos valores e padrões cristãos; assegurar uma “atuação eficaz” no mundo concreto e no âmbito que a cada um diz respeito, também através da participação política; e, por fim, “transmutar toda a sua atividade na perspectiva da dimensão espiritual da salvação dos homens” (Lopes, 271). Podemos pensar no envolvimento político dos cristãos – sem negar o sacrifício familiar, económico que isso representa – como uma vocação cristã urgente a promover, também em prol do projeto europeu.
Se é verdade que a adesão de Portugal à CEE representou, “em si mesma, um estímulo direto e imediato ao progresso social” (Ernâni Lopes), é inegável que ela tem comportado, por um lado, deficiências, dependências e riscos para o desenvolvimento sustentável do país e para o prosperar do próprio do Projeto Europeu. Cabe-nos, sem esquecer a riqueza da identidade europeia que partilhamos e dos valores intemporais que a sustentam, ser capazes de reformar as instituições e corrigir os desiquilíbrios que tal processo tem gerado. Para tal reflexão, o próximo artigo deste ciclo “Repensar Portugal” fará um pequeno contributo.
Bibliografia
ANTUNES, Manuel. “Repensar Portugal” em Repensar Portugal, 37-47. Multinova, Lisboa, 2005
STEINER, George. “A Ideia de Europa”. Gradiva, Lisboa, 2013
LOURENÇO, Eduardo. “Da identidade europeia como labirinto” em Ver é ser visto, 215-223. Gradiva, Lisboa, 2021
LOPES, Ernâni. “A Igreja e a construção da Europa” em Questões sociais, Desenvolvimento e Política, 253-278, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1994
RATZINGER, Joseph. “O que é a Europa” em Europa. Os seus fundamentos hoje e amanhã, 11-52. Paulus, Lisboa, 2005
Fotografia: Assinatura do Tratado de Adesão à CEE, Jornal Público (“A caneta ainda é a arma dos políticos”, Nuno Ribeiro)