Quando os “Restos do Vento” desvelam as “Sementes do Verbo”

No entanto, o “vento” não cessou de soprar sobre aquela aldeia, como elemento indomável, independente do progresso civilizacional, capaz de trazer para o presente o passado remoto, e de antecipar dramaticamente um futuro imprevisível.

 

[ATENÇÃO: este artigo faz SPOILER do filme]

“Vem o vento do deserto/ misturar o errado e o certo
Vem o vento, sopra forte/ não é ele que traz a morte
O amor e o desamor/ sofrem do mesmo calor
Cala agora o sofrimento/deixa só soprar o vento.”

Embalados por esta ladainha pagã e sob o som de chicotes, correrias e vocalizações indecifráveis somos apresentados a uma aldeia no interior do país. A representação cinematográfica, estreada em “sessão especial” na edição deste ano do Festival de Cannes, foi gravada na pitoresca aldeia de Meimão, no concelho de Penamacor.

Por entre a multidão que deambula, somos introduzidos à ação pelas ruelas de pedra escura da localidade isolada que tem como pano de fundo as imponentes montanhas da Serra da Malcata. A pacatez da aldeia é interrompida pelo sobressalto de uma tradição ancestral: os rapazes, encapuçados de sarapilheira, procuram abordar as raparigas, numa lógica de dominação física e conjugal, qual rito iniciático. Ressalta à vista – e às vísceras – a violência das investidas másculas, coerente com o modo como as gerações mais velhas fomentam esta prática. As próprias mães de família, resignadas perante o “sempre se fez assim”, limitam-se a pedir moderação na aproximação às filhas.

Tomamos, assim, contacto com a dinâmica de um grupo de jovens que se estreiam nesta prática, do qual se destaca o protagonista Laureano que, inesperadamente, revela um impulso de compaixão diante de uma rapariga indefesa, imobilizada pelos encapuçados e prestes a ser chicoteada, com a dignidade a ponto de ser «apedrejada». Perante esta imperdoável afronta, os restantes elementos do grupo «espancam» sem escrúpulos o «estranho», deixando-o «meio morto», «à beira do caminho», «coberto de chagas», «desfigurado», com lesões de um alcance imprevisível.

Como uma longa convalescença, a ação remete-nos para daí a 25 anos, e para o casebre onde Laureano vive «em pobreza», rodeado dos seus “amigos”, uma matilha de cães fiéis que o seguem pelos caminhos errantes que percorre. Autênticos companheiros de jornada, de dia e de noite, em comunicação mais silenciosa que sonora, em passeios pelas paisagens paradisíacas das redondezas. Isolado da aldeia, geográfica e socialmente, Laureano – notoriamente incapacitado a nível cognitivo – é «o louco», o bode expiatório, o sem-valor, «sem aspeto atraente», conhecido de todos, mas invisível a todos, aquele «diante do qual se tapa o rosto, menosprezado e desconsiderado.»

Passados 25 anos, muito mudou naquela aldeia montanhosa: além de Laureano, os outros rapazes são hoje pais de família, um é polícia, outro gerente de um matadouro, outro é um empresário falido; as “eólicas” surgem agora do cume das montanhas da aldeia; aquela tradição ancestral pagã foi suplantada pelos arraiais populares, com música “pimba”, febras e foguetes.

No entanto, o “vento” não cessou de soprar sobre aquela aldeia, como elemento indomável, independente do progresso civilizacional, capaz de trazer para o presente o passado remoto, e de antecipar dramaticamente um futuro imprevisível. De facto, a festa da aldeia é interrompida – tal rajada fulminante – pela notícia da morte de um jovem da terra.

“Vem o vento do deserto/ misturar o errado e o certo
Vem o vento, sopra forte/ não é ele que traz a morte
O amor e o desamor/ sofrem do mesmo calor
Cala agora o sofrimento/deixa só soprar o vento.”

Instintivamente, aquela morte sugere na população – e no espetador – a ideia de que o principal suspeito do crime é Laureano. Os indícios são plausíveis: o corpo dilacerado por cães; um episódio recente de desavença entre o morto e o «louco»; um ato vingativo, passados 25 anos do espancamento, dado o jovem falecido ser filho de um dos então agressores; a presença de um “capuz” de sarapilheira na cena do crime.

Na verdade, o avanço da narrativa cénica encarrega-se de o ilibar totalmente. De facto, a responsável pela morte foi uma jovem rapariga que se sentiu violentada pelo rapaz, e que, num gesto desesperado de defesa, acabou por matá-lo, facto apenas conhecido pela mãe e pelo padrasto, o polícia da aldeia.

O que se segue é um autêntico «Calvário» para Laureano. Desde logo, numa cena enternecedora, a mãe da jovem assassina – que sempre guardou para com «o louco» um carinho especial por este a ter salvo da violência do grupo, 25 anos volvidos – recorre a ele, em agonia, pedindo que ele «assuma sobre si a culpa» da filha. Só desta forma, sacrificando «o justo pelo injusto», a filha poderia viver «livre do peso do crime». A reação de Laureano, ainda que envolta em certa incompreensão pela sua condição mentalmente diminuída, transmite uma transbordante «misericórdia», própria de quem escolhe “sentir com o outro”, a partir de dentro da sua miséria, de quem escolhe “sentir no lugar daquele que ama”, de quem é feliz por «perder a vida», para a dar «em abundância». Laureano, o bom «louco», aquele que, além de «pobre», era tomado, não por sábio ou prudente, mas por «néscio», entrega-se às autoridades por um crime que não cometeu, submetendo-se à «infâmia» para salvar a vida daquela filha, daquela mãe, daquela família.

Assim, misturando o desespero do “pai órfão de filho”, os «gritos da multidão» inconsciente, e a «traição» perpetrada pelo polícia, é «conspirado contra ele» um esquema que visa acabar com a vida de Laureano. Na verdade, naquilo que foi um gesto de aparente libertação da prisão, o «louco» é conduzido a um descampado, onde é surpreendido, como «cordeiro levado ao matadouro», por um grupo de homens “encapuzados” que o espancam sem misericórdia. Desta vez, um golpe fatal é desferido, pondo termo à sua vida.

O filme acaba com o corpo abandonado no chão, jorrado o sangue. Só os cães, fiéis amigos que o seguiram «até ao fim», permanecem naquela hora.

“Calado agora o sofrimento”, para onde quererá “soprar o Vento”?

EE [167]
Is 53, 1-12
Sl 31, 10-14
Lc 10, 25-37