Após refletir sobre as temáticas presentas na Metafísica de Aristóteles, obra que indaga sobre as “primeiras causas e os princípios supremos”, “o ser enquanto ser”, “a substância”, “Deus e a substância suprassensível”, procurarei expor, em primeiro lugar, a relação entre matéria e a forma, potência e ato e, em segundo lugar, a temática de Deus e a substância suprassensível.
Aristóteles revolucionou a ontologia elástica que apregoava a univocidade do ser, ao advogar a pluralidade da existência, isto é, que o ser tem diversos significados. No limite, tudo o que for verdadeiro e for passível de ser formulado numa frase, na medida em que pode ser transformada de modo a incluir o verbo “ser” – em suma, tudo o que é predicável – diz respeito ao ser. Tendo o ser como pano de fundo, focamos a problemática do ser como “ato e potência”. Para abordar a relação entre potência e ato, matéria e forma, poderá ser proveitoso recorrer a um exemplo: pensemos numa substância como uma “estante de madeira”. Por um lado, a estante é mobília em ato, na medida em que é com a estante que lidamos neste momento, mas é igualmente cinza de fogueira em potência, na medida em que a estante poderá vir a arder eventualmente.
Falando de matéria e forma, aplicando-as ao exemplo precedente, encontramos na madeira o “substrato” da forma da estante, ou seja, a madeira é a matéria. Se por um lado, a matéria é anterior à forma, na medida em que sem matéria não há objeto a ser percecionado, por outro lado, a matéria sem forma carece de determinação, sendo assim “substância em vias de concretização”. Neste sentido, a forma assume o papel de “essência” já que concretiza a matéria. Ao contrário da “forma” platónica, exclusivamente pertencente ao mundo das ideias, a forma aristotélica constitui o caracter intrínseco da estante de madeira real, ou seja, a forma é “substância por excelência determinada”. Aristóteles refere ainda o “sínolo” como conjunto que resulta da união entre matéria e forma, que também assume o caracter de substância.
Interligando os dois pares de conceitos, poderíamos dizer que a matéria é “potência”, na medida em que está dotada de potencialidade de receber uma forma (a madeira presta-se a ser transformada em estante). De modo análogo, a forma corresponde ao ato, já que falamos da atualização da madeira em estante, isto é, do esgotar da sua potencialidade de ser estante em “ato”. Tal como a forma assume um carácter mais “substancial” que a matéria, também o ato tem prioridade face à potência, na medida em que é condição da sua realização.
Em segundo lugar, dedicaremos a nossa atenção à substância suprassensível. De entre as 9 categorias do ser, a substância tem preponderância sobre as outras (qualidade, quantidade, relação, …) na medida em que estas se baseiam no ser da primeira, por exemplo, a categoria da relação remete para relações entre substâncias. Para inquirir sobre a existência de uma “substância suprassensível”, Aristóteles começa por notar que a subsistência do devir e a incorruptibilidade do tempo – como realidades eternas – indicam que a sua causa só pode ser eterna e, ao mesmo tempo, despossuída de causa: uma “causa incausada” (“Se não existisse nada de eterno, não poderia existir nem mesmo o devir”). Por outro lado, se existe movimento, percorrendo a cadeia causal que o gera, chega-se à conclusão de que só o imóvel pode ser sua “causa absoluta”, sob pena, de essa cadeia ser infinita. Denominamos esta substância “motor imóvel”. Num terceiro momento, esta substância suprassensível que é origem de todo o movimento, não pode ser dotada de qualquer potencialidade, na medida em que se o movimento é eterno, movimento algum poderia ser retido por ela. Falamos, então, de uma substância perfeita, isto é, na qual toda a potência se transformou em “ato puro”. Se é ato puro, não possui matéria, por oposição a toda a realidade sensível: a “substância suprassensível” é, então, “forma perfeita”.
Sintetizando todas as expressões “substância suprassensível”, “causa incausada”, “motor imóvel”, “ato puro”, “forma perfeita”, Aristóteles encontra na figura de Deus a sua confluência: “Deus é vivente, eterno e ótimo; de modo que a Deus pertence uma vida perenemente contínua e eterna: esse, pois, é Deus.”
Importa dizer que o “motor imóvel”, além de não estar sujeito ao movimento – inamovível – , não está condenado à passividade, o que contrariaria a sua essência de “ato puro”. Antes, a imobilidade de Deus coexiste com a sua atividade, que consiste no pensamento como contemplação de si mesmo e da sua própria perfeição. Deus “é pensamento de pensamento” e “naquele estado Ele está sempre. Isso é impossível para nós, mas para Ele não é impossível, pois o ato do seu viver é prazer”. Poderíamos também perguntar como é que a imobilidade coexiste com a geração de movimento. A resposta é surpreendente: o movimento é gerado à maneira do amado que, meramente por existir e sem necessitar de se mover, põe o amante em movimento de atração, despertando nele um desejo de imitação de quem se deseja identificar com aquele que ama.
Neste sentido a contemplação humana – como imitação contingente do modo de proceder de Deus, como atividade intelectual que rege as demais, como vida teorética que busca o conhecimento por si, como característica que nos distingue dos outros seres vivos – é o caminho da felicidade humana (“Se, pois, nessa feliz condição na qual nos encontramos, às vezes, Deus se encontra perenemente, é maravilhoso; e se ele se encontra numa condição superior, é ainda mais maravilhoso”). Este raciocínio referente a Deus, esta Teologia como discurso sobre o ato puro, descarta a Criação como ato inicial, sublinha a total independência de Deus face a toda a realidade, e salienta o amor como o facto gerador de um processo de paulatino aperfeiçoamento de cada espécie, na progressiva realização de todas as suas possibilidades.