Vivemos a primeira semana dos EE como a forma de reconhecer o pecado no mundo e em nós, mas é simultaneamente, o modo pelo qual somos convidados a apercebemo-nos da presença do Senhor nas nossas vidas.
Da minha experiência, a primeira semana é um convite a descobrir e a descobrirmo-nos (continuamente) nas mãos de Deus. Descoberta que só se realiza quando entregamos a nossa miséria ao coração de Deus – ao encontro do Jesus chagado! É neste encontro que somos encontrados.
Na passagem de Zaqueu (Lc 19, 1-9)¹ este mistério é-nos revelado. Zaqueu queria ver Jesus, mas foi o próprio Zaqueu que ficou surpreendido pela forma como Jesus o queria ver a ele. Não é Jesus que lhe pede a restituição dos bens, é o próprio Zaqueu que a isso se sente chamado. Aí está a conversão e o perdão de Zaqueu e aí está o nosso perdão e a nossa conversão.
Esta é para mim a metáfora daquilo a que somos chamados a viver na primeira semana dos EE. Zaqueu é o modelo da primeira semana. Tal como ele, também nós somos corrompidos pelo pecado do mundo e pelo nosso próprio orgulho e apetite. Mas, ao ser olhado, Zaqueu, reconhece o Senhor e emenda-se, comprometendo-se a segui-Lo. Na verdade, já estava no seu coração a necessidade de se corrigir – a passagem do evangelho evidencia isso mesmo, mostrando como se dava ao ridículo para ver Aquele a quem tinha esperança. Mas acreditar não bastava, precisava de ver, ou melhor, de se deixar ver, mesmo que ainda não o soubesse. Na verdade, não foi Zaqueu quem primeiro olhou, ele já tinha sido olhado. Diria que é a este ponto que a primeira semana nos pretende fazer chegar. Também nós, antes de olharmos para Ele já por Ele fomos vistos com amor. O Senhor só espera que entreguemos tudo aquilo que em nós é miserável.
Este acto de amor é o que me faz proclamar (como intuiu Santo Agostinho),
Ó Tu, que habitas no íntimo do íntimo do meu coração, faz que te encontre aí, no íntimo do meu coração!
E enquanto mais nos aproximamos deste olhar mais nos queremos entregar nesse abraço:
Dai-me a graça, Senhor, de ver o meu pecado como verdadeira paralisia que me impede de agir. Dai-me a graça de me sentir necessitado da Tua salvação!
Ao longo do tempo em que crescemos neste encontro, cresce, simultaneamente, a consciência da nossa miséria, isto é, da lepra e da cegueira que nos fazem gritar internamente pelo amor de Deus:
Jesus, Filho de David, tende compaixão de nós.
Nesta oração do nome de Jesus, oração do coração, encontramos a mais profunda sede que nos habita e que aumenta à medida que d’Ele nos aproximamos. A nossa remissão começa com este olhar, e mais que olhar, deixar-se ser olhado. A entrega é radical. Mesmo que não tenhamos logo consciência disso:
Ó Cristo, fazei-me saber teu amigo e teu irmão. Mostrai-me essa liberdade do desapego.
A liberdade no serviço. A liberdade na entrega. A liberdade na ação.
Aquilo para o qual caminhamos ao longo dos EE está logo presente desde o Princípio e Fundamento [EE 23] e embora encontremos a remissão na primeira semana vamos fazendo um caminho progressivo que a radicalidade do olhar faz em nós. Mas isso só acontece com o auxílio da graça e a perseverança de vontade que pedimos em Tomai e recebei… na entrega da nossa memória, entendimento e vontade (as potências da alma) – que somos convidados a fazer em pleno no fim da quarta semana e pela vida em diante. Este caminho não se faz só. Nas três pessoas da SS. Trindade encontramos o auxílio para não desanimar, mas como bem nos recorda o nosso pe. Mestre Inácio, temos intercessores poderosos que cooperam e rogam por nós. Devemos por isso pedir-lhes, aos santos, a sua intercessão neste longo caminho de purificação. Quem melhor que Maria, Mãe de Deus, intercessora dos intercessores, candeia que transportou no seu ventre a Luz e que é para nós a candeia que para a Luz alumia? Por isso a ela devemos elevar o nosso canto:
Maria, filha predilecta, mãe do redentor. Ensina-nos a oferecer a liberdade com que vós mesma fostes convidada a servir. Colocai em nosso coração essa humildade de alma com que Deus nos chama a dar glória por toda a eternidade.
O convite de Jesus é um convite à misericórdia de Deus. Um convite à liberdade na vontade do Pai. Um convite a nos libertarmos da miséria e das amarras que, pelas circunstâncias da vida, pusemos a nós mesmos aceitando o gosto amargo do pecado.
Para crescermos em liberdade temos que nos sentir amados. A nossa liberdade expande-se com quem amamos e com quem nos sentimos amados. Cristo não aponta o dedo, Cristo não acusa. Cristo abomina o pecado, mas perdoa o pecador. Cristo olha-nos com um olhar de compaixão., olha-nos como discípulos amados. Jesus, pede-nos que olhemos em frente, só os apegos desordenados nos fazem olhar para trás. Por isso, sou (somos) chamado a ser homem vivo que acolhe, para que germine no seu seio, a palavra do Pai e dê fruto de Amor. Só após isto é que podemos, por fim, clamar (e é ao mesmo tempo cume e início):
Meu Senhor e meu Deus. Sois a porta que me leva à vida. Sede minha luz. Sede minha fonte de água viva.
¹ Tendo entrado em Jericó, Jesus atravessava a cidade. Vivia ali um homem rico, chamado Zaqueu, que era chefe de cobradores de impostos. Procurava ver Jesus e não podia, por causa da multidão, pois era de pequena estatura. Correndo à frente, subiu a um sicómoro para o ver, porque Ele devia passar por ali. Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe: «Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casa.» Ele desceu imediatamente e acolheu Jesus, cheio de alegria. Ao verem aquilo, murmuravam todos entre si, dizendo que tinha ido hospedar-se em casa de um pecador. Zaqueu, de pé, disse ao Senhor: «Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais.» Jesus disse-lhe: «Hoje veio a salvação a esta casa, por este ser também filho de Abraão; pois, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido.»
Imagem: Jez Timms (Unsplash)