Eduardo Lourenço em “Da Literatura como interpretação de Portugal” (1975) lança-se na insondável aventura de encontrar evidência literária para responder à pergunta ontológica sobre o que é Portugal, gizando o “projeto novo de problematizar a relação (…) de cada consciência individual com a realidade específica e autónoma que é a Pátria” (Lourenço, 1988, 78).
Anos mais tarde, numa cerimónia do 10 de junho, o mesmo autor proferiu um discurso intitulado “Camões ou a nossa alma” (1980), no qual propõe uma sobreposição quase messiânica entre a portugalidade e o legado do Poeta, corroborando a tese de que é Camões quem “pessoaliza a Pátria”. Efetivamente Lourenço, desvela n’Os Lusíadas um fenómeno aproximável à complexidade humana, em particular, à complexidade portuguesa. É neste sentido que se sugere uma “osmose” entre “o Poeta e o Livro”, e entre o “Livro e a consciência nacional”. Se os outros povos se reveem nos seus poetas, os portugueses identificam-se com Camões (“nós somos Camões”), já que a portugalidade passou a ser indefinível sem a presença do Poeta, sem a reflexão da sua obra “na imagem mesma de Portugal”. À maneira dos judeus cuja identidade se define e encontra a partir da Torah, ou mesmo dos cristãos que se propõem viver encarnando as palavras, os gestos e a vida de Jesus, assim como é relatada nos Evangelhos, os portugueses encontram n’Os Lusíadas “a imagem camoniana de [si] mesmos”, “«bíblia da pátria», alma da nossa alma” (Lourenço, 2021, 100-101).
Para chegar a esta síntese – ainda não final -, foram necessárias sucessivas gerações de escritores que dessem azo a essa “preocupação obsessiva de descobrir quem somos e o que somos como portugueses” (Lourenço, 1988, 81), versando esta “interpretação de Portugal” sobre os contributos mais relevantes desde Garrett até culminar em Pessoa, um dos maiores arautos do V Império.
Em Almeida Garrett encontramos, na leitura de Lourenço, a distopia identitária por excelência, seja pela ameaça de ocupação espanhola ou pelos custos humanos que a expansão marítima representava. Efetivamente, na obra Frei Luís de Sousa, “quem responde pela boca de D. João de Portugal, definindo-se como ninguém, não é um mero marido ressuscitado fora da estação, é a própria Pátria” (Lourenço, 1988, 83).
Dando corpo à “obsessão temática capital do século XIX”, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão foram lançando afiadas Farpas, tendo esse movimento encontrado na Geração de Setenta o maior apogeu em relação à “desconfiança ou suspeita grave em relação à nossa realidade nacional enquanto existência valiosa”. Com Antero de Quental e tantos outros, as Conferências do Casino representaram o clímax – ainda pujante, quase decadente – desse questionamento da totalidade do ser histórico-cultural de Portugal: “Quem somos? O que somos? Como nos tornamos no que somos, povo atrasado, inculto, desistente, sonâmbulo, inconsciente, sem outro futuro que o de um vago projeto imperial esvaziado de conteúdo?” (Lourenço, 1988, 85). Pena que o diagnóstico do país se tenha convertido em vaticínio fatal para tão sonhadores intelectuais, sucumbidos num distópico grupo de “vencidos da vida”.
As múltiplas telas que Eça pinta n’Os Maias dão nota deste cenário, com um recurso constante à ironia. Em Carlos vemos o arquétipo do “girovago”, diletante e bonacheirão, que quer exercer medicina gratuitamente num país que desespera por ver as suas maleitas sociais, políticas e económicas saradas. Na sua relação incestuosa com Maria Eduarda, fica patente a atrofia de quem vive voltado sobre si próprio, sem ser capaz de se desviar da satisfação dos seus apetites para elevar o espírito ou servir a comunidade efetivamente. No jantar no Hotel Central é posta a nu a superficialidade e inconsequência de uma sociedade portuguesa ocupada com trivialidades e ofensas pessoais. Na cena final, Eça deixa-nos o epitáfio de uma Geração e de um século vendidos ao ideal de um Paris importado e “vencidos” diante da realidade – ainda que sempre a tempo de uma corrida para saborear um bom “paio com ervilhas”- : “Falhámos na vida, menino” (Queiroz, 465-466).
Resta-nos, do longo périplo de Eduardo Lourenço, evocar Pessoa, o muito discutivelmente proclamado Supra-Camões que, perante o desanimador “fechamento contra-natura” do Portugal do início do século XX, contrapõe a “salvação mítica, a conversão da nossa imagem e do nosso projeto de alma e cultura” (Lourenço, 1988, 109). De facto, na senda de António Vieira, sonha um Quinto Império já não dependente daquele que perdemos tão penosamente no Ultramar, mas que está situado num plano existencial diferente.
Por fim, no texto “Sagres” que encerra a obra Portugal (1950) de Miguel Torga, encontramos coordenadas preciosas para manter em aberto a pergunta sobre a nossa identidade. Em “Sagres”, mais do que sociologia regional, vemos um retrato geológico e telúrico da alma lusa: “longe da astúcia minhota, da agressividade transmontana, da mesquinhez beiroa e da arrogância alentejana, nenhum outro sítio tão azado para o português” se encontrar (Torga, 137).
“Sagres” canta um passado perdido, mas ainda apontado pelo promontório algarvio: “apogeu” de terras descobertas, de “heroicidade, ferocidade, curiosidade e obstinação”, de génio científico, audácia crente e “alargamento de consciência”, para além do “abismo azul” (Torga, 139). Já o presente – descrito, então, em pleno Estado Novo – é caracterizado pelos tons fúnebres da inércia de quem esqueceu a lição da história e se acomoda, à sombra das glórias antigas, a cantar “loas à fatalidade”: “[Portugal] negou-se à degradação de se ver transformado num cemitério de renúncia coletiva – necrópole onde os cadáveres não fossem os mortos do passado, mas os vivos do presente” (Torga, 140). Por fim, o futuro surge como mera possibilidade, enunciada pela mesma condição geográfica do promontório de ser “um rasgão áspero onde a vida não se resigna a renunciar” (Torga, 137). Tal rasgo telúrico e existencial permite vislumbrar, à luz da glória dos tempos idos, o único caminho de realização possível no futuro – o mesmo, mas sempre renovado, sempre por repensar: “a grande façanha de renovação interior” que cada português é chamado a “iniciar quotidianamente” (Torga, 138).
Parece-nos pertinente refletir sobre o modo como nos podemos compreender hoje, enquanto portugueses: como Democracia cinquentenária, integrada num Projeto Europeu desde há 40 anos, com valores a reafirmar e ameaças a combater; como Economia de Mercado em claro processo de divergência e atraso, sujeita a mitos que atrofiam o seu desenvolvimento; como Estado Social com pouco para redistribuir, mas com muito para providenciar. Inspirado, respetivamente, pelas virtudes teologais da Fé, Esperança e Caridade e por uma bibliografia que procura reunir os contributos da Filosofia, da Literatura, da Economia, da História e da Doutrina Social da Igreja, este périplo que parte da Identidade Portuguesa e se abre à diferença como vocação, culminará numa reflexão conclusiva sobre o V Império, num movimento que o recorda e – repensando-o – o atualiza.
É neste espírito de “renovação interior”, sem querer esgotar a resposta à pergunta quase milenar pela portugalidade, que serão deixadas algumas pistas, nos próximos 4 artigos que, com este texto (1), compõem o presente ciclo temático “Repensar Portugal”:
(2) Repensar um Portugal crente no Projeto Europeu, nos 40 anos da adesão à CEE
(3) Repensar um Portugal que cresce com esperança, nos 50 anos de uma Democracia dependente
(4) Repensar um Portugal justo no redistribuir da riqueza
(5) Por um V Império a repensar
Bibliografia
ANTUNES, Manuel. “Repensar Portugal” em Repensar Portugal, 37-47. Multinova, Lisboa, 2005
LOURENÇO, Eduardo. “Camões ou a nossa alma” em Ver é ser visto, 99-107. Gradiva, Lisboa, 2021
LOURENÇO, Eduardo. “Da Literatura como Interpretação de Portugal” em O Labirinto da Saudade, 77-116. Círculo de Leitores, Lisboa, 1988
QUEIROZ, Eça de. Os Maias. Círculo de Leitores, Lisboa, 1976
TORGA, Miguel. “Sagres”, em Portugal, 137-140. 4ª ed. Coimbra: Coimbra, 1980
Fotografia: Túmulo de Luís Vaz de Camões, Nuno Cera (Facebook do Mosteiro dos Jerónimos)