Por um V Império a repensar

Para instaurar o "império universal do Amor" teremos de ler o canto d’Os Lusíadas e "de o ser no que tem de mais humano”, abrindo-nos à aventura caridosa de nos tornarmos “língua por novas pátrias [e] de novas maneiras soletradas”.

In memoriam Papa Francisco, na despedida do “amigo de Portugal” que, sonhando a Fraternidade Universal, nos inspirou a instaurar o “império universal do Amor”

É nas zonas temperadas que as melhores e as mais variadas colheitas se tornam viáveis. É nas zonas temperadas que o homem pode construir uma existência mais de acordo com a sua natureza de ser inteligente e livre. É nas zonas temperadas — sem excessos de calor e sem excessos de frio, especifique-se — que as civilizações históricas têm encontrado o meio mais favorável ao próprio desenvolvimento harmónico. É nas zonas temperadas que os milénios têm erguido os seus «séculos de ouro». É nas zonas temperadas que a lei da degradação da energia social adquire ritmo mais lento e se torna, de forma endógena, mais facilmente recuperável e mais integralmente convertível às tarefas úteis do bem comum e às realizações e aspirações das pessoas individuais. É nas zonas temperadas que cada coisa a seu tempo tem seu tempo, permitindo as evoluções necessárias e renovadoras, evitando assim os rápidos, os precipícios e as ambiguidades das revoluções a quente onde muito se pode ganhar, sem dúvida, mas onde muito se pode perder também. É nas zonas temperadas que se tornam impensáveis — ou menos pensáveis — as injustiças globais, a inteira sobreposição ao Povo, a trituração dos mais fracos e o desprezo cínico pelos adversários. É nas zonas temperadas que as ideologias quimicamente puras — mas em geral tão cruéis ! — têm menos ar para respirar porque a política como conjunto de ideias, de acções e de instituições é constante criação, e constante relativização de teorias, de estruturas e de grupos que pretendem — ou pretendam — gerir e orientar a Res Publica e o seu Bem Comum. (Antunes, 2005, 44)

Os 500 anos de Camões, os 50 anos de abril e os 40 anos de Europa constituem uma ocasião favorável, não só para recordar quem somos, mas também para nos projetarmos no futuro. Se as “zonas temperadas” de que Manuel Antunes fala no inesquecível artigo “Repensar Portugal” (que dá nome a este ciclo temático) acabaram por corresponder – num “repensar” profético – às coordenadas do desaguar democrático, europeísta e globalizante da Revolução dos Cravos, sem esquecer o processo revolucionário ardente e convulso que a sucedeu, cabe-nos a nós, hoje, sem esquecer a sabedoria temperada que nos antecedeu, gizar a “História do Futuro”, e assim repensar, de novo, o V Império.

Segundo Eduardo Franco, o Padre António Vieira é o pioneiro da “utopia do Quinto Império, herdeira da velha aspiração medieval (…) que seria realizada pelos loucos que estão acima da razão: os missionários, os heróis que defendem, até à prova da própria vida, a dignidade humana espelhada na diversidade dos povos e das culturas” (Franco, 2016, 278). Sobressai a vocação eminentemente cristã e evangelizadora do povo português, o qual, pela dimensão universal da Fé, deu a “conhecer o mundo ao próprio mundo” (Vieira, 2014, 74). A História do Futuro, mais do que contar essas as façanhas gloriosas, propõe-se dar a conhecer aos portugueses o que hão de ser, na perspetiva de Vieira: líderes civilizadores do mundo. Mas civilizadores segundo que critério?

Na verdade, ainda antes de Vieira, as Trovas de Bandarra, o mítico sapateiro de Trancoso, já tinham começado a povoar o o imaginário português com a vinda do Encoberto e o futuro de Portugal como reino universal, o que a Hisória se encarregou de interpretar como uma profecia do regresso do Rei D. Sebastião após o seu desaparecimento na Batalha de Alcácer–Quibir.

Eduardo Lourenço, no texto atrás citado “Camões ou a nossa alma”, mapeia possíveis afinidades entre o legado de Camões e o posteriormente formulado mito do V Império. Fá-lo a partir do movimento expansionista português que nos fez “emergi[r] da humilde casa lusitana e abri[r] as asas sobre o mundo”. Se “já não somos” os apóstolos-conquistadores, a nossa alma de portugueses não prescindiu da “Fé” que moveu Camões, mas transformou-a para chegar a ser “aquele amor desarmado dos homens” que se oferece “à imprevisível liberdade de ser aceite ou recusado pelos outros”. Colocando no centro da equação a “essência mesma do homem”, Lourenço deteta em Camões a defesa de um “império universal do Amor”, que não esquece a lição cantada do “nosso ex-universal império”, mas que faz extravasar para outras dimensões da humanidade o seu alcance literal. Para o instaurar, mais do que um movimento impositivo de armas ou credos, trata-se de um movimento de abertura solidária e universal: “teremos de ler [o canto d’Os Lusíadas] e de o ser no que tem de mais humano”, isto é, abrir-nos à aventura de sermos “língua por novas pátrias [e] de novas maneiras soletradas”. Viver desse amor é seguir as pisadas daquele que – “peregrino e errante” – se “fez verbo”, e – cantando –“se fez Pátria” (Lourenço, 2021, 107). O V Império confunde-se, então, com um difundir da “língua” portuguesa, não na sua dimensão literal, mas no contagiar em nosso redor – e com uma pretensão universal – de um modo de ser, de proceder, de cantar, de sonhar propriamente “portugueses”.

Nesta identificação entre Camões e a alma do povo português, sobressaem as afinidades com o papel que Cristo assume na história do Povo de Deus, na perspectiva daqueles que buscam tornar-se “outros Cristos”. Em ambos os casos, a Palavra emerge da realidade, “in media res”, com as suas durezas e potencialidades, aspirando à sua metamorfose beatífica. Se o Verbo se fez carne e inaugurou um novo sentido para o género humano; o verbo da lírica camoniana fez-se pátria, no decorrer da sua História, e vaticinou-lhe um Destino inaudito e incontornável. Se Cristo, Verbo encarnado, veio resgatar os homens dando a vida por amor; Camões, nosso eterno cantor, definiu como desígnio português e em proveito de todos os povos, o “império universal do Amor” (Lourenço, 2021, 107).

Como poderá o Portugal aqui repensado liderar a instauração desse império universal do amor, que não se impõe à força, mas que cresce por contágio? Primeiramente, fazendo por “merecer” a sua Democracia, traduzindo-a e reformando-a em instituições eficientes e alinhadas com os anseios do povo, sem saudosismos nem voluntarismos. Depois, reconhecendo a afinidade da sua origem cristã – de Ourique a Maastricht – com a da Europa – de Paulo de Tarso a Monnet – das nações soberanas e irmãs de que faz parte. Se a origem é cristã, a finalidade só pode ser unitiva. Assim, a integração sempre a aprofundar não poderá sair do horizonte, sem nunca perder o necessário realismo de quem vive a “difícil benção da contingência”, nem esquecer que “o amor se deve pôr mais nas obras do que nas palavras” (Santo Inácio de Loyola).

Quanto ao difícil equilíbrio (longamente discutido nos artigos precedentes) entre a esperança do crescimento e a justiça da promoção da igualdade, parece-nos mais caridosa a consciência de que sem crescimento não existe redistribuição, do que a anestesia enganadora de viver dos rendimentos dos outros num estilo de vida à sua imagem, mas que sem a sua contribuição seria incomportável. No contexto deste “império Universal”, o amor que lidera é o amor que serve. Neste sentido, poderíamos destacar como exemplos de serviço às causas da coesão social e ambiental dois exemplos contemporâneos: o cristão e português António Guterres, e o saudoso Papa Francisco, “amigo de Portugal”, como recordou o Senhor Presidente da República na nota de falecimento do Papa. Ambos se bateram, por um lado, por influenciar nos fóruns internacionais, nem sempre com o impacto e o reconhecimento merecidos, políticas redistributivas e ambientais corajosas e, por outro, procuraram estimular as entidades transnacionais no sentido de construir uma política-mundo que respondesse às exigências de uma economia-mundo. No limite, este “Império Universal do Amor”, ao alcance de todos os povos, mas do qual os portugueses devem ser, por vocação nacional, insignes embaixadores, poder-se-á traduzir naquele sonho de Francisco dramaticamente distante da nossa era bélica e securitária, mas magistralmente sintetizado na última encíclica do seu Pontificado: “Fraternidade Universal” (Fratelli Tutti).

Culmino este périplo com aquele que terá sido um dos grandes promotores da conotação da identidade mítica portuguesa com o V Império – Fernando Pessoa. O poeta viveu num “Portugal a entristecer”, entre as promessas por cumprir da Primeira República e a depressão ditatorial do “coitadinho / Do tiraninho” (no poema “António de Oliveira Salazar”). A Mensagem, magna obra do poeta, inclui referências explícitas ao V Império gizado por Vieira e ali traduzido num neo-sebastianismo declarado: “Grécia, Roma, Cristandade, / Europa – os quatros se vão / Para onde vai toda idade. / Quem vai viver a verdade / Que morreu D. Sebastião?” (no poema “O Quinto Império”). “Sem Rei nem lei nem paz nem guerra”, o Portugal de ontem e de hoje, pelo menos aquele que continua a ser intuído por nós próprios, é ainda nevoeiro. Contemporaneamente, no núcleo da alma portuguesa ecoa a inquietação interrogativa “Que ânsia distante perto chora?”. A resposta a esta pergunta urgente e constitutiva do que somos, mais do que em messias humanos mascarados de divinos, encontra-se no último verso da Mensagem e no íntimo de cada português: “É a hora!” (no poema “Nevoeiro”).

Essa “verdade” íntima por revelar sobre a autêntica portugalidade, pela qual suspira Pessoa, está ainda – sempre – por encarnar e situa-se num novo plano da existência: sobrenatural, transcendente, espiritual. Mais, a sua vitalidade misteriosa depende da sua constante problematização, como provam a vida e a obra daqueles que tecem silenciosamente a nossa alma, na sequela de Camões. Aqueles que, já sem “espada”, mas sempre de “pena” na mão, nos repensam como modo de existir, como condição da sua identidade e sobrevivência. Mapeando a tão desejada – embora inexaurível portugalidade, podemos encontrar algumas coordenadas no modo como tais pedagogos nos introduzem ao mistério do que já somos e ainda não descobrimos totalmente:

– “puro futuro, manhã a amanhecer, vinda próxima do Encoberto, (…) País-Futuro em busca de Índias que não vêm no mapa” (Eduardo Lourenço);
– insubmissa renovação do dia “inicial, inteiro e limpo” (Sophia de Mello Breyner);
– bando de “criaturas simples, chegadas ao húmus”, que têm “o sabor saudável do autêntico e primordial”, o “
Portugal eterno, o que nunca traiu, o que dá esperança, o das revoluções populares, o que trabalha dia e noite sem esmorecer, (…) o do arado e do remo”, aquele, “anónimo e humilde, que não cabe nas crónicas, mas [protagoniza] alguns dos mais significativos passos da história da humanidade” (Miguel Torga);
– povo migrante e mestiço cujo modo de proceder pode já não ser confessionalmente cristão, mas que prepara o “advento crístico da humanidade” (Leonardo Coimbra);
– peregrinos expatriados de uma geografia cósmico-telúrica cujo “mapa cruza o pó da terra com o pó das estrelas” (José Tolentino Mendonça);
– argonautas habitados por uma interioridade ainda sujeita ao Fado, mas onde já se adivinha (e já canta) a eternidade, “porque ser é ser para sempre” (P. Júlio Fragata SJ).

 

Bibliografia

ANTUNES, Manuel. “Repensar Portugal” em Repensar Portugal, 37-47. Multinova, Lisboa, 2005

FRANCO, José Eduardo. “Da globalização à glocalização” em Brotéria 182, 271-282, Lisboa, 2016

LOURENÇO, Eduardo. “Camões ou a nossa alma” em Ver é ser visto, 99-107. Gradiva, Lisboa, 2021

PESSOA, Fernando. “Nevoeiro”, “Quinto Império” e “António de Oliveira Salazar” em Mensagem (online)

VIEIRA, Padre António. “História do Futuro” em Obra Completa, Dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Tomo III, Vol. I, 74. Círculo de Leitores, Lisboa, 2014

Fotografia: Cabo de São Vicente, Lonely Planet