Populismo: que diabo de discurso!

Divisão entre bons e maus que gera violência. Ou uma cegueira moral que gera indiferença. Agressores vitimizados e vítimas agressoras. O discurso populista, seja de que espectro for, não conduz senão ao mal

Creio estarmos bem conscientes de como se tem expandido a tendência para um discurso extremado, um discurso nacionalista/populista, que talvez possamos compreender, segundo Gil Bailie, como “um sintoma de uma crise religiosa (…), um grito violento pela transcendência.”, que “fornece um tipo de transcendência social que alimenta a camaradagem e pode ser facilmente evocada para justificar o tipo de violência que aqueles que são enredados numa crise sacrificial estão dispostos a cometer”.

Crise sacrificial? In a nutshell, é isto:  numa comunidade surge uma crise gera divisão e tensão; para pacificar a tensão que a crise fez surgir identifica-se um inimigo comum – um bode expiatório -; unindo a comunidade contra esse inimigo, que deve ser expulso ou aniquilado (e que é, grande parte das vezes, um grupo étnico, estrangeiros, migrantes, etc), a violência é canalizada e, do todos-contra-todos inicial passamos a um todos-contra-um, obtendo-se uma (falsa) sensação de paz quando a comunidade descarrega a espiral de violência acumulada num só “culpado”.

Se já ouvimos falar dos sacrifícios humanos das sociedades primitivas, nada disto nos soa estranho. Olhamos até para esses humanos primitivos com superioridade, porque somos cultos, evoluídos, temos classe e educação, não é? Talvez não seja assim tão linear. Este mesmo mecanismo vitimário continua atuante e encontra novas máscaras e subterfúgios. Encontrámo-lo no futebol, na política, nos reality shows, até na crise desencadeada pela COVID-19.

“Mas já não mata, não é?” Se pensarmos na Segunda Guerra Mundial, no Genocídio de Ruanda ou na perseguição aos Rohingya, o cenário muda. Somos avançados, sim, mas cuidado: não devemos ser ingénuos, a violência acompanha-nos . Essa religiosidade primitiva da violência, que não deve ser confundida com a Religião nos termos a que estamos acostumados, não é uma peça à margem da engrenagem das sociedades e das nossas vidas. Sempre acompanhou o ser humano, oferecendo um sentimento de transcendência sedutor, mas a que devemos renunciar. Um discurso que nos agarra pela tendência à violência “é do diabo!”.

“Do diabo?” Sim, diabólico, do grego diábolos que significa “caluniador”, “acusador” e, literalmente, “divisor”, “que gera separação”. E, recordemo-nos, na base do discurso populista está a produção da divisão entre “os bons” e “os maus”, a acusação e, não poucas vezes, a calúnia.

Se por vezes ouvimos dizer, em tom de brincadeira, que a grande vitória do diabo é convencer-nos de que não existe, com razão podemos afirmar que a grande vitória deste tipo de discurso populista é convencer-nos das suas aparentes razões, que ocultam uma violência incapaz de dar razões de si própria.

É um discurso que não se pode justificar nem dar razões consistentes da sua autoridade moral: se o tentasse fazer, denunciar-se-ia. O seu discurso permanece, forçosamente, como um grito incoerente e violento de crítica, destruição e antítese, nunca de síntese. Consiste numa violência acessível e chamativa que “se transforma na habilidade de alguém atrair consensos a fim de instrumentalizar politicamente a cultura do povo, sob qualquer sinal ideológico, ao serviço do seu projeto pessoal e da sua permanência no poder. Outras vezes, procura aumentar a popularidade fomentando as inclinações mais baixas e egoístas de alguns setores da população.”[1]

Encontramos nele um grande perigo: uma cegueira moral que predispõe aqueles que são apanhados na sua espiral a acreditar em quase tudo o que permita desencadear a sua violência. É uma cegueira que cria uma protecção contra a razão (e até o bom-senso) e que perpetua um tipo de ignorância como escudo protector da violência. Ela distancia o acusador do acusado, até ao ponto em que nada que venha do acusado seja passível de acolhimento: se o marginalizado der razões da sua miséria e marginalização, o acusador refugia-se no cinismo, na calúnia e na caricatura ridícula desse “inimigo”.

É “uma forma de discurso que grita, não apenas para ser ouvido, mas para que ele mesmo acredite em si próprio. É quase como se o quociente da ficção histórica crua, da violenta exageração moral e da caricatura ridícula do inimigo estivesse em proporção direta com grau com que o orador está, ele mesmo, ciente de que tudo isso é, na realidade, um monte de mentiras”[2]. A sua força é não se justificar racional ou moralmente, mas ser simples, incisivo…e violento.

Consequências? Em larga escala – e assistimos a isto no panorama político, em ambos os lados do espectro – polariza a comunidade entre “bons e maus”. A divisão social em pólos opostos é catalisada e ambas as partes ganham força e poder. Ambas são vítimas e agressoras uma da outra. Cada um dos lados, reivindicando para si o estatuto de vítima, acaba por se tornar agressor.

Perpetuar este ciclo de violência é uma atitude autodestrutiva. Sob o pretexto da “luta” como motor da sociedade, provavelmente nem nos apercebemos de que esta sensação de pacificação, criada através de uma homogeneidade forçada, está condenada desde a origem, porque nasce da violência. Na calmaria produzida, a violência espera pacientemente que um acusador atire de novo uma pedra.

A única violência válida é, talvez, a violência contra si próprio. Consiste, simplesmente, em largar a pedra que temos na mão.


[1] Francisco, Fratelli Tutti, 1a (Fátima: Paulinas Editora, sem data), par. 159.
[2] Bailie, Violence Unveiled. Humanity at the crossroads, 266–67.

 

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