Vi:
Munique – No limite da guerra, Christian Schwochow (2021, Netflix)
Em tempos de guerra, como estes em que vivemos, nada como considerar episódios análogos do passado para melhor compreender o presente. Foi isso que fez Joe Biden ao comparar a invasão russa ao território ucraniano com a operação militar palestiniana contra Israel nos 50 anos da Guerra do Yom Kippur: tanto o Hamas como Putin “querem aniquilar completamente as democracias vizinhas”.
Foi também isso que fez Daniel Oliveira no seu artigo de opinião na edição da semana passada do Expresso, comparando o ataque do Hamas de 7 de outubro com a violenta revolta angolana de 1961, que veio a dar início à Guerra Colonial. O autor sugeriu um paralelo entre a reação israelita e a resposta do Estado Novo: “Para Gaza, rapidamente e em força!”
Um exercício semelhante poder-se-ia propor a propósito de todo o aparato diplomático que acompanha esta crise: visitas de chefes de Estado, cimeiras pela Paz, encontros regionais estratégicos, aproveitamentos políticos tendo em vista outros fins. São muitas as movimentações e as leituras a fazer-se, tal como aconteceu nas vésperas da 2ª Guerra Mundial.
O filme Munique – No limite da guerra retrata a problemática dos Acordos de Berlim (1938) que o tempo veio a provar terem sido um mero penso rápido ante a ascensão e ambição sem limites de Hitler e do regime nazi que voltaram a mergulhar o mundo numa guerra sanguinária.
À boleia de uma excelente fotografia e de uma banda sonora envolvente, somos levados a considerar os contornos de uma defesa cega da Paz protagonizada pelo primeiro-ministro inglês Chamberlain, num contexto de iminente agressão como aquele.
Além disso, a questão territorial, tão candente no conflito israelo-palestiniano, está também presente num acordo em que se confrontaram a cedência de uma porção da Checoslováquia a Hitler para impedir a guerra e a ambição velada da Alemanha nazi de dominar a Europa. Em estado de guerra, qual o valor da verdade?
Num plano mais relacional – e, porque não, também decisivo – jogam-se os afetos e as missões de dois amigos, separados pela nacionalidade e a cor política, mas unidos pelo dever de obedecer à consciência.
Ouvi:
Mil Coisas Invisíveis, Tim Bernardes (2022)
Este álbum, composto naquele já remoto confinamento pandémico pelo vocalista de O Terno, é a prova de que “para viajar, basta existir”.
Viagem metafísica a partir de uma varanda, em redor do ser e do não ser, num “mundo gigante”, “realmente lindo”, mas paralizado e adiado. Viagem existencial, sobre o que é “nascer outra vez bem no meio da vida”, em constante descoberta e auto-descoberta. Viagem espiritual, do quarto ao luar, e do mar ao Céu, por entre “mil coisas invisíveis” que não cessam de nos maravilhar. Viagem amorosa, de quem encontra na distância um solo fértil para adubar o amor, através da memória, da “falta”, do desejo.
Esta voz dá-se bem em Portugal, contando já com numerosas passagens por auditórios e teatros de norte a sul do país, bem como com colaborações mais ou menos informais com os Capitão Fausto ou Salvador Sobral.
Tive a sorte de o ouvir em primeira mão e a solo, aqui por Braga. Foi tocante a comunhão entre o público e o artista, possuidor de uma voz com uma amplitude de tom e timbre excecional. Em humilde conversação com a audiência, não se fez rogado quando lhe pediram que tocasse os êxitos da sua banda – “Culpa”, “Volta”, “Melhor do que parece”.
Noutros tempos, pude ouvir justamente O Terno em Lisboa, harmonia indie mais roqueira, que se gera da fusão entre Bielzinho – “menino que batuca com classe” -, Peixeira – “o famoso rei do baixo” e este Tim que “toca e canta dando risada”.
Li:
Diários de motocicleta, Ernesto Che Guevara (1992)
Longe de este exercício pretender branquear o carácter guerrilheiro, revolucionário e assassino do autor dos Diários, sugere-se mudar o olhar sobre a figura de Che Guevara, apanhando boleia, por uns instantes, na sua motocicleta.
Esta obra remete-nos para o passado universitário do Che, quando ainda estudava Medicina em Buenos Aires, e para uma viagem quiçá precursora dos atuais “mochileros”. No início dos anos 50, Ernesto e Alberto, seu fiel companheiro de todas as horas, propuseram-se cruzar o continente Sul Americano, a bordo de “La Poderosa II”, motorizada que os conduziu por entre aventuras e experiências inolvidáveis, certamente constitutivas da sua reflexão social. A mota – essa – ficou pelo caminho, danificada algures entre os Lagos da Patagónia e a areia das estradas do norte do Chile. Mas nem por isso deixou de ser pretexto e pronúncio de uma experiência transformadora.
Desta aventura, sobressai o espírito despreocupado com que Ernesto e Alberto se lançaram à estrada, sem grandes planos além da rota, sem grandes âncoras a prendê-los a casa. Esta literatura de viagem apresenta-se em estado bruto, intencionalmente por lapidar. Basta contarmos as contínuas referências à fome e ao prazer do alimento, as batalhas inglórias contra mosquitos, as sucessivas paragens em mecânicos, as negociatas por hospedagem e transporte.
Num nível mais emocional, são notáveis as reflexões acerca do sonho, motivadas pela contemplação do Pacífico; o impacto que teve o contacto com as condições desumanas de trabalho dos mineiros no deserto chileno; a ligação afetiva com os doentes que o trabalho nas leprosarias amazónicas gerou naqueles aprendizes.Portugal e os portugueses não ficaram de fora da escrita do Che, seja pela referência ao Primo Basílio de Eça, lido numa casa de piso térreo por uma “chica” de pele branca, ou aos emigrantes lusos na Venezuela, tão trabalhadores quanto forretas.
Desde que vi o filme homónimo, premiado com os óscares de “melhor roteiro adaptado” e de “melhor música original”, às custas do belo tema “Al otro lado del río” de Jorge Drexler, senti uma grande identificação com esta viagem. Na verdade, tive ocasião de, sem saber, percorrer um percurso semelhante, com um companheiro de viagem e são constantes as afinidades nas peripécias, nas descobertas, nas conquistas. Lembro-me de um mítico Portugal-Peru nas margens do Amazonas, em que – tal Ernesto português – guardei as redes da equipa de viajantes que enfrentou a formação local de indígenas. Resultado final 1-3, depois de recolhidas as apostas da população presente.
Ler estes Diários transportou-me para um passado mais meu do que esperava. E pôs-me a pensar como experiências profundas, embora muito semelhantes, têm o poder de gerar futuros tão diferentes.