Ler Raimon Panikkar é ir ao encontro da complexidade das relações humanas – relações que só encontram a paz através do diálogo. A paz faz parte da essência cristã, o próprio Cristo o afirma: «Quando entrardes nalguma casa, dizei primeiro: “Paz a esta casa.” E se lá houver gente de paz, a vossa paz repousará sobre eles» (Lc 10, 5-6). Ser mestre da paz é ser mestre do diálogo, alcançar a paz é conseguir o encontro.
Panikkar é ele próprio produto de encontro. Filho de pai indiano (hindu) e mãe catalã (católica). Foi migrante, diríamos hoje, refugiado, durante a guerra civil espanhola na Alemanha voltando mais tarde à Espanha com o deflagrar da II Guerra Mundial. Cristão católico, padre, filósofo e teólogo. Doutorado em Filosofia, Química e Teologia – do qual resultou a obra: The Unknown Christ of Hinduism, em 1961 (O Cristo desconhecido do Hinduísmo). O seu pensamento é precursor e na linha da constituição dogmática Lumen Gentium do Concílio Vaticano II.
Foi professor na Universidade de Harvard e na Universidade da Califórnia (Santa Barbara). Escreveu em espanhol, inglês, alemão e italiano. A sua obra completa está traduzida em inglês e italiano. Em português temos somente traduzido O Diálogo Indispensável (1): uma síntese do seu pensamento.
Raimon Panikkar faz sobressair a dimensão dialéctica existente no diálogo como sendo o ponto nevrálgico construtor da paz na interlocução de culturas e religiões. O ser humano não é somente munido de razão, mas também de sentir. Embora no diálogo usemos a dialéctica, isto é, a racionalidade, esta não é um fim em si mesma, mas uma parte de algo maior que dialoga com a essência do ser humano – a partir da qual, pode o homem convocar um discurso verdadeiro e discernido de toda a realidade que o constitui e envolve.
A obra, capítulo a capítulo
A obra O Diálogo Indispensável é dividida em nove capítulos (Sutras) (2). Em cada capítulo, Panikkar apresenta um tema que considera ser indispensável para que se produza e frutifique o diálogo religioso: um encontro das religiões, uma necessidade vital da qual nasceram as grandes religiões.
- Uma Necessidade Vital (I Sutra) – É a chave de todo o discurso panikkeriano no modo de entender o diálogo. Inerente ao homem já que este sem diálogo não se entende na sua inteira humanidade. O diálogo das religiões é uma necessidade vital, pois, «(…) é o campo no qual se pode jogar de forma prática o destino da humanidade (…)» (Panikkar, 2007, 46).
- Aberto (II Sutra) – A segunda indicação é de que o diálogo deve permanecer aberto. As relações perante o encontro devem contribuir para que no seu seio se promova uma sã e frutífera contribuição para o modo como as religiões se vêem e entendem e deste modo, tal como na vida, devem apresentar-se de forma natural (diríamos aberta), sem reservas, para que assim o diálogo discorra da forma mais prosaica e verdadeira.
- Interior (III Sutra) – Para haver diálogo inter-religioso tem que haver anteriormente diálogo intra-religioso. Panikkar, defende que uma religião só pensando e dialogando entre si pode criar premissas que levem ao diálogo com o estranho, o outro. Já que, só percebendo os conflitos que separam e unem internamente um fenómeno religioso, se pode partir para a análise entre o que separa e une os diversos fenómenos religiosos – que no Catolicismo podemos identificar pelas diversas formas de vivenciar a fé através dos muitos carismas que contribuiu para o aparecimento de várias congregações e institutos religiosos ao longo dos séculos.
- Linguístico (IV Sutra) – Não é possível pensar no diálogo sem este ser produzido, isto é, falado ou escrito. Surge um novo conceito, o duálogo. Não se pode pensar o encontro sem o mesmo ter um campo comum, isto é, o mesmo horizonte/objecto de entendimento (no nosso caso a paz) e sem que este apresente duas vertentes: o de ser intercultural e inter-religioso. Devido a esta complexidade, para o autor há algo essencial, este diálogo tem de ser bilíngue, ou mesmo multilingue (ou seja, possuímos um duálogo), pelo simples facto do homem pensar de várias formas e nas mais diversas línguas, passando deste modo a um diálogo-dialógico que é, simultaneamente, dualógico.
- Político (V Sutra) – Este diálogo não é algo fundado no indivíduo, mas nas relações com a comunidade em que se insere – e com outras com quem estas dialogam. O diálogo funda-se na busca pela polis, isto é, no ir ao encontro do bem comum. Neste sentido, o diálogo abarca todas as esferas da vida e sociedade humanas – no qual se insere a religião, mas que não termina em si mesma.
- Mítico (VI Sutra) – O mito é das pedras angulares do discurso de Panikkar, já que este, conceptualiza o mito como a componente do logos da religião: «Toda a religião vive em virtude do seu próprio mythos, do vaso de magma do qual transborda o logos para coagular-se em estruturas conceptuais e em doutrinas.» (Panikkar, 2008, 79) Através do mito cada religião compõem o credo que consolida a sua fé.
- Religioso (VII Sutra) – Apresenta-se o diálogo como uma busca do religioso, que por si mesmo, anda em busca não somente de Deus mas também do e pelo homem. A busca pela transcendência é algo comum a toda a humanidade, por isso, para Panikkar é essencial que no diálogo se rejeite a noção de qualquer tipo de absolutos que criam ao processo do encontro.
- Integral (VIII Sutra) – Cada religião transporta em si-mesma uma determinada visão do mundo e somente de forma integral (de cada fenómeno religioso) e integrante na visão de conjunto podem as diversas experiências religiosas oferecer uma visão abrangente do cosmos da humanidade. No diálogo cada religião deve transportar a visão que tem do mundo, sem a impor ao outro e disposta a ouvir o que o outro pensa sobre o mesmo assunto.
- Permanente (IX Sutra) – Só um diálogo contínuo permite compreender e pensar o que o outro vive. Sendo o diálogo completamente humano é-o ou deve ser em toda a sua essência e tal como o homem, que dialoga toda a sua vida, também o diálogo inter-religioso, sendo humano, só se entende na sua inteira plenitude ao longo de toda a vida humana. Em si mesmo, o diálogo, possui um carácter provisório passível de ser continuamente repensado e dialogado: «(…) o diálogo não só nunca se acaba como tão pouco nunca se completa (…) Permanece sempre inconclusivo e, no entanto, todo o diálogo está em si mesmo autenticamente completo – é um fim em si mesmo.» (Panikkar, 2007, 102).
“Simplesmente para sermos, devemos entrar em comunhão”
O diálogo inter-religioso e intercultural, como o define Panikkar, é o diálogo indispensável da humanidade pela busca da verdade, do e no entendimento que a humanidade (e o indivíduo) tem de si mesmo,
O diálogo, inevitável e indispensável, não é só um imperativo social, um dever histórico: é a consciência de que para sermos nós mesmos, simplesmente para sermos, devemos entrar em comunhão com a terra, abaixo, os homens ao nosso lado, e no alto, os céus. (Panikkar, 2007, 107)
Entrar em diálogo é conhecer, permanecer e relacionar-se com o outro, entendê-lo, ouvi-lo e compreendê-lo, mas também partilhar a realidade que nos próprios comungamos sem nos impormos. O diálogo inter-religioso é a descoberta do outro em nós. Esta descoberta é o diálogo-dialógico onde nos encontramos uns aos outros: é «(…) através do diálogo [que], cultivamos a nossa humanidade.» (Panikkar, 2007, 107).
(1) PANIKKAR, Raimon – O Diálogo Indispensável – Paz Entre as Religiões. Corroios: Zéfiro, 2007;
(2) Os Sutras são, nas religiões hindus e búdica, o modo como se encontram colectados os aforismos ou preceitos que tratam acerca de temas religiosos respeitantes à doutrina, à moral, aos rituais, à vida quotidiana…