Ópio do Povo?

O que diz Karl Marx sobre a Religião? Que é ópio do povo. Porquê? Que perguntas podem nascer daqui?

Pensemos no ópio ou em qualquer outra droga. Mais que no seu caráter destrutivo, pensemos no seu efeito analgésico. Essa é a imagem marxista da religião: ópio do povo.

Ao contrário do que talvez já tenhamos ouvido dizer, Marx não diz que a religião é a alienação. Diz-nos, isso sim, que a religião é sintoma de uma alienação anterior.

Do mesmo modo que alguém recorre ao ópio (ou qualquer outra droga) para aplacar dores (físicas ou não), o povo miserável recorre à religião como um analgésico que lhe dá o conforto de uma esperança, segundo Marx, ilusória. Aquilo que aliena e que motiva o sentimento religioso é a miséria: a religião é um paliativo, um sedativo que na sua falsa promessa apenas aplaca as dores de uma existência sofredora, mas não trata o verdadeiro problema. Nesta ilusão, a própria miséria perpetua-se. O Homem sente-se menos miserável e mais esperançoso, mas permanece oprimido e por cumprir-se.

Nas palavras de Marx, a religião é “a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo”. Apenas há religião, porque há opressão e miséria.

O Homem “faz a religião”, desenhando a realização do Céu como um modo de escapar às relações sociais de opressão e injustiça. Contudo, de que vale tal ilusão? Enquanto o Homem tiver os olhos postos no além, não cumpre a sua felicidade no aquém, isto é, no aqui e agora concreto da existência.

Deste modo, é necessário largar o ópio: “a supressão da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real.” Quer isto dizer, então, que a religião seria uma fase a superar. Útil apenas para identificar o Homem alienado, é necessário superá-la, para que o homem seja senhor de si mesmo, da sua vida concreta. Como superá-la?

Se para Feuerbach bastava reconhecer intelectualmente como a religião é apenas uma projeção humana, uma alienação do homem, que projeta toda a perfeição em Deus, empobrecendo-se e despossando-se dos seus próprios atributos nesse processo, Marx vai mais longe.

Tendo já compreendido, pela crítica de Feuerbach, que o Homem, nesse céu que criou “encontrou apenas o reflexo de si mesmo”, e que, desta forma, “a religião é [apenas] a autoconsciência e o auto-sentimento do homem, que ainda não se conquistou a si mesmo”, quer devolver o Homem a si próprio, descendo até ao mundo concreto (práxis). Não basta a compreensão daquilo que considera um engano religioso, que fica apenas na esfera do especulativo e abstrato (teoria), onde apenas se faz uma crítica intelectual.

Para que a religião seja superada e, assim, para que o Homem deixe de lado as ilusões do Céu e volte a girar em torno de si próprio, não basta a compreensão teórica do “erro” da religião. É necessário transformar o mundo, fazer uma revolução das condições sociais, uma “demolição prática das relações sociais reais” em que homens e mulheres são humilhados, acabar com a miséria para que o Homem não necessite do ópio.

De forma abreviada e sucinta, identifico estes os aspectos importantes da “filosofia da religião” de Karl Marx:

  1. A religião é “ópio do povo”.
  2. A religião nasce da miséria humana, como um paliativo para essa mesma miséria.
  3. Assim, se não houver miséria, a religião é superada; e deve sê-lo, porque impede o Homem de se realizar plenamente no aquém, uma vez que o obriga a viver para o além: engana-o.
  4. A religião é antropologia: Deus é um “ser” criado, a quem o Homem atribuiu as suas perfeições – como afirmou Feuerbach, “o homem é o deus do homem”.

Independentemente da posição de cada um(a) em relação à crítica de Marx, creio que podem nascer daqui algumas questões pertinentes:

  1. Será a religião apenas para os “oprimidos”? Isto é: se os homens e mulheres estiverem contentados com o mundo material, o além interessa-lhes?
  2. Não será que Marx está errado, porque uma verdadeira “prática religiosa” leva à transformação do mundo e à preocupação social com relações justas? A fé em Deus não deve ser motor de compaixão e de amor ao próximo?
  3. Como avaliamos a ligação entre poder religioso e poder político? Como descrevemos os casos em que, aliada a regimes totalitários, a religião é usada como meio de opressão?
  4. Por outro lado, como descrevemos os casos em que, contraposta a regimes totalitários, a religião é motivo de libertação e de florescimento da vida humana livre?

 


Nota: o autor deste artigo não concorda com a visão de Karl Marx

As citações são retiradas da Introdução da obra “Crítica à Filosofia do Direito de Hegel”, de Karl Marx.