A República é o magno diálogo de Platão sobre a justiça, que desagua na sua definição como “a saúde da alma”. Efetivamente, é importante notar que o desenho do sistema político ideal proposto por Platão, mais do que um esboço de organização política para transformar a realidade, pretende “lançar luz” sobre a natureza da justiça na alma humana.
De modo análogo, o presente texto propõe lançar um olhar para a cultura atual, à luz de certas temáticas da República, seja encontrando afinidades ou contrastes entre o mundo em que vivemos e a obra platónica.
Começando pelos contrastes, a justiça vivida ao nível dos países, que maioritariamente se consideram Estados de Direito, era, até há pouco tempo, um dado adquirido quando falamos da cultura contemporânea. Efetivamente, predominam os Estados onde todos os cidadãos são iguais perante a lei e onde existe respeito pela propriedade privada, pelas liberdades de expressão, reunião e privacidade. Muitas das propostas feitas por Platão, sobretudo no livro II e III, tendo em vista a instauração da aristocracia do rei-filósofo rompem com princípios basilares dos Estados modernos. Destacamos alguns: a discriminação no acesso à formação; a desigualdade natural, perpetuada pelo mito da “nobre falsidade”; a estratificação da sociedade em classes estanques; o controlo centralizado da natalidade; a institucionalização automática e anónima dos filhos. Falamos, em suma, de uma engenharia social que menospreza a verdade e a liberdade individual em prol de uma suposta “felicidade da cidade”.
De facto, numa altura em que a Democracia pluralista – como núcleo do Estado de Direito – é posta em causa por forças populistas que prometem impor uma ordem livre de corrupção, uma pureza de costumes e um regresso a níveis nostálgicos de prosperidade, vale a pena perguntarmo-nos se os fins justificam os meios e se é negociável o paradigma de sociedade liberal em que vivemos.
Além deste, outro contraste com a cultura atual prende-se com a primazia que Platão dá à educação moral, face à matemática ou científica, como contributo essencial para a razão que é considerada a parte mais valiosa da alma. Recordando a hierarquia do conhecimento que se dá por degraus até à intuição do mundo ideal, entre os livros V e VII, Platão diferencia entre a opinião (mundo sensível) e o conhecimento (mundo inteligível). A opinião, como estágio primário constitui-se pela imaginação dos objetos e pela perceção real de obras da natureza ou humanas. O conhecimento, por seu lado, divide-se entre o matemático e o filosófico. O primeiro trata dos números e das figuras geométricas, que já pertencem ao mundo do ser e não do devir, mas submetem-se a um método hipotético baseado em axiomas inquestionáveis. Por outro lado, a compreensão filosófica, segue o método dialético que, antes de buscar as conclusões, parte das hipóteses para ascender até ao fundamento autêntico e não hipotético que, no limite, é a Ideia de Bem. A imagem transmitida pela “Alegoria da caverna” é representativa deste movimento de libertação da alma das suas dimensões concupiscente e irascível rumo ao “Sol” do ser, isto é, à Ideia do Bem que brilha no mundo das Ideias. Deste modo, além da preparação literária (com censura nas partes impróprias), gímnica, musical e matemática, investir preferencialmente na educação moral de um estudante por via da dialética permitiria ensinar a verdadeira natureza da justiça e revelar-lhe a sua participação na Ideia do Bem.
Com efeito, vivemos numa sociedade que absolutiza o carácter científico e material do conhecimento. De acordo com o pensamento de Bento XVI, não é nova a tendência das Universidades de remeter a Filosofia e a Teologia para uma esfera minoritária e privada, prescindido do seu contributo para olhar a realidade, o Homem e as questões essenciais (“donde venho”, “para onde vou”). Este olhar qualificaria as respostas que as ciências naturais e histórico-humanistas nunca alcançam, se entregues meramente a si próprias. Antes, o refúgio da ciência em critérios meramente matemáticos e experimentais representa, além da exclusão do problema de Deus (e da fé), a desistência da verdade que é, assim, remetida para o subjetivismo. No fim de contas, dá-se uma redução dramática no campo de possibilidades do Homem, uma “autolimitação” da “vastidão da razão” e a “desagregação e fragmentação” das culturas (Discurso a Ratisbona e “La Sapienza”).
No campo das afinidades, encontramos paralelos no mundo atual e na memória coletiva para os tipos de regime elencados por Platão no livro VIII. De facto, começa-se por defender a aristocracia ou a monarquia, com o poderio do rei-filósofo que goza de todas as virtudes, nomeadamente da sabedoria, necessárias para governar. Quando quem governa deixa de ser um homem sábio, a sociedade cai numa timocracia, em que dominam as classes militares pela coragem. Quando esta escasseia, degenera-se numa oligarquia que absolutiza as riquezas ainda que permaneça a temperança. Na sua falta, a sociedade decai para uma democracia, que embora destemperada, mantém a noção justiça. Quando todas as virtudes escasseiam, a democracia dá lugar ao despotismo tirânico.
Olhando para o nosso mundo à luz desta hierarquização de regimes, com os devidos descontos, poderíamos encontrar no longo reinado da Rainha Isabel II, um exemplo de monarquia sustentada pela virtude, particularmente pela sabedoria que, perante uma tendência maioritariamente republicana ao nível dos países mundiais, a consensualizou. Quanto à timocracia, vale a pena referir Augusto Pinochet, que através de uma ditadura militar musculada, com tudo o que isso implica, soube adotar políticas de desenvolvimento do Chile. No que respeita à oligarquia, podemos pensar na Federação Russa cuja liderança de Putin é sustentada por um grupo de oligarcas que apoiam as suas políticas e são beneficiados economicamente. Quanto à democracia, o caso português é paradigmático de um Estado de Direito Democrático, embora repleto de casos de corrupção, debilidades do sistema e um certo descontentamento. Por fim, encontramos exemplos de despotismo no regime norte coreano, cujo rumo catastrófico vai sendo ditado pelos caprichos mais ou menos previsíveis do seu líder Kim Jong-un.
Como última afinidade, nestes tempos em que a guerra voltou à Europa, valeria a pena sinalizar a necessidade que Platão aponta de cada cidade possuir um exército profissional bem treinado. Esta necessidade prende-se com o facto de as comunidades humanas não se contentarem com a mera satisfação das necessidades básicas, mas exigirem uma estrutura social mais complexa. Se olharmos para o aumento do peso da Defesa nos Orçamentos de Estado europeus, ou para o regresso da questão de um Exército Europeu capaz de responder a ameaças que teimam a agigantar-se, percebemos que esta é hoje uma temática incontornável. Em síntese, é notório em que medida a filosofia de Platão pode ser iluminadora para olharmos a cultura atual, seja por paralelismo ou por antagonismo. Partindo de Platão, ainda mais se poderia refletir sobre a natureza política dos nossos regimes e as recentes ameaças, as tendências da nossa academia e os desafios mais agudos que enfrentamos na atualidade internacional.