O caminho da hospitalidade é um caminho árduo. Viver cristamente o «encontro» significa deixar transparecer na vida aquilo pelo qual ansiamos no já do agora. Viver é sempre um tempo e um espaço de atravessar fronteiras. Seja qual for o sentido para ir hoje ao encontro do outro, devemos partir de uma relação na qual abandonamos os nossos preconceitos. Só assim se torna possível estabelecer pontes que nos ajudem a criar um espaço comum, cuja linguagem permita que o verdadeiro encontro aconteça: sempre que aceitamos o outro naquilo que é nosso e o encontramos no que é seu.
Jacques Derrida, na obra Da Hospitalidade, refere de forma curiosa que a hospitalidade começa com a interrogação do estrangeiro (1). Esta pergunta pelo conhecer daquele que nos é estranho implica um nome e com este, por inerência, uma linguagem, a partir da qual se possa conhecer o nome daquele que é recebido. Nomear o nome de alguém é percebê-lo, ou pelo menos abranger uma parte substancial da pessoa que se acolhe. O adágio medieval nomen est personae é neste caso explicativo: ao conhecer o nome conhecemos alguém como pessoa. Na Bíblia, o conhecimento divino também se faz pela pergunta do Tu e do Eu. Ao querer conhecer Deus, o profeta Moisés pergunta pelo Seu nome. E como resposta obtém o enigmático «Eu Sou Aquele que Sou» (2). Ser-se aquele que se é significa, pois, ser-se mesmo. Reconhecendo-se como portador de uma identidade individual, mas também relacional que somente em contacto com um outro se descobre. Este é um quadro basilar e necessário de compreensão para o encontro.
Ao tempo dos relatos evangélicos, a imagem do estrangeiro ou bárbaro mudava significativamente consoante a perspetiva da cultura da qual se partia. Para um grego o estrangeiro ou bárbaro era todo aquele que não falava a língua grega, enquanto para um romano seria todo aquele que não partilhava os costumes de Roma. A relativa homogeneidade cultural e linguística no seio do Império Romano foi um fator chave que permitiu manter a coesão e expansão do cristianismo nascente. Para além disso, no mundo antigo, a noção de hospitalidade vivia-se para além do puro dever: tratava-se de uma noção ética. Mais do que um ato regulamentado, receber e ser recebido era um ato de direito per se, no qual e para o qual as normas sociais prescreviam que se recebesse o estrangeiro como se da casa se tratasse, senão até melhor. No cristianismo, esta norma passou para os modelos cenobíticos. Com efeito, os monges beneditinos possuem nas suas Regras o dever de receber e hospedar qualquer indivíduo que bater à porta como se fosse o próprio Cristo (3). No Antigo Testamento, o acolhimento do outro implica o dever de proteger o hóspede a qualquer custo – mesmo que isso implique prejuízo para si e para os seus em prol do outro. Na Bíblia, o papel do estrangeiro marca a identidade de diversos protagonistas que apesar de tudo falam a mesma língua (seja ela física ou espiritual). Embora a linguagem não seja uma marca da identidade do estrangeiro é evidente que um sistema linguístico comum permite a compreensão da relação entre o hospedeiro e o hospedado.
S. Paulo, o apóstolo dos gentios, assumiu decisivamente a realidade humana do estrangeiro. Na conceção cristã a vida humana acabou por ser entendida como sendo uma terra de passagem onde todos somos estrangeiros, uma vez que só encontraremos no Céu, na presença de Deus, a nossa verdadeira morada. Em Da Carta a Diogeneto isso mesmo é revelador. O autor deste texto do século II refere-se aos cristãos do seguinte modo: «Habitam em suas pátrias, mas como de passagem; têm tudo em comum como os outros cidadãos, mas tudo suportam como se não tivessem pátria. Todo o país estrangeiro é a sua pátria e toda a pátria é para eles terra estrangeira» (4). Por um lado, esta noção de si enquanto estrangeiro deve-se ao assim chamado Concílio de Jerusalém que vem referido nos Atos dos Apóstolos e que prevê o enquadramento dos gentios (o estrangeiro) no quadro do judeu-cristianismo. Por outro lado, com a Epístola aos Romanos, na qual S. Paulo explana uma «declaração de princípios sobre o novo estatuto do humano» (5), integram-se os gentios na comunidade cristã. Assim, ao reconfigurar o novo modelo no qual devia assentar o novo quadro religioso, o Apóstolo universaliza o messianismo judaico a toda a humanidade e faz-nos perceber que o acolhimento do outro pode, e deve, fazer-nos repensar o nosso próprio sistema tradicional nos seus mais variados aspetos: religioso, cultural, social e político. A missão de S. Paulo foi a de criar uma casa comum de acesso a Deus onde redefiniu como um só e o mesmo lugar de encontro e comunhão entre israelitas e gentios.
No entanto, este não é um caminho simples. Traz-nos interrogações e inquietações. O próprio Apóstolo interrogava-se. O encontro com o outro deve, pois, ser um caminho aberto à interrogação, mas sempre confiando no caminho para a Verdade e o de levar a mesma Verdade ao outro, o estrangeiro, a partir do estrangeiro que somos para ele.
Este caminhar, feito de encontro(s), é sempre vivido numa tensão dialética entre proximidade e distância. Para o filósofo coreano Byung-Chul Han, é a vivência de contrários que permeia a vida e o encontro da paz, encontro que só é possível através de um «estado de reconciliação» entre os contrários que envolvem a nossa vida: morte-vida, transcendência-imanência, virgindade-maternidade, divindade-humanidade… Ao invés, o desencontro e a impossibilidade de troca de impressões dá espaço ao conflito que, por sua vez, gera a repulsa a partir da qual, invés de acolher, nos faz expulsar. Han dá-nos um conjunto de pressupostos sobre os quais devemos refletir: «A hospitalidade é a máxima expressão de uma razão universal que tomou consciência de si mesma»; «A ideia de hospitalidade manifesta também algo de universal para além da razão»; «A hospitalidade promete reconciliação»; «O grau de civilização de uma sociedade pode medir-se precisamente em função da sua hospitalidade, ou melhor, em função da sua “amabilidade”» (6).
Encontrar no outro aquilo que nos falta e dar humildemente aquilo que temos, parece ser, então, o essencial para um verdadeiro e recíproco acolhimento. Desde as origens o cristianismo, essa complementaridade foi a norma da comunidade cristã. Embora não fugindo da razão e nesta fundada, a hospitalidade cristã vai para além desta, alicerçando-se na fé e na esperança num futuro ao qual todos, como irmãos, estamos prometidos e ao qual nos devemos comprometer.
(1) Derrida, Jacques, Anne Dufoumantelle. Da Hospitalidade. Viseu: Palimage, 2003, 41.
(2) Ex 10, 17.
(3) Capítulo 53, Da Recepção dos Hóspedes, da Regra de S. Bento.
(4) N.5-6: Funk 1, 317-321.
(5) Ramos, José Augusto. «O Estrangeiro na Bíblia (3) O Estrangeiro na Construção Teológica de Paulo». Brotéria 188 (2019): 610-11.
(6) Han, Byung-Chul. A expulsão do outro. Lisboa: Relógio D’Água, 2012, 27-8.