O Poeta tende para o Silêncio?

O que nos diz Kierkegaard sobre os poetas...e um outro modo de compreendê-los. Um poeta tende para o desespero ou para o silêncio?

É na exigência evangélica de se tornar como o lírio do campo e o pássaro do céu, que Kierkegaard encontra as atitudes essenciais da vida humana: o silêncio e a obediência diante de Deus; as atitudes do homem que elege o salto da fé, pacificando o desespero.

 

O poeta para Kierkegaard

Kierkegaard apresenta o poeta como o homem incapaz de cumprir tal exigência, mesmo que consciente dela. Quer voar com a prontidão do pássaro, mas sente-se “cravado no sítio de sempre”, preso “por toda a vida”. “Todo o movimento (…) o faz experimentar o peso que gravita sobre os [seus] ombros”¹. Ele é “filho da eternidade” e, por isso, convidado às alturas dos pássaros (e de Deus). Mas nesse desejo de céu descobre-se portador de uma anatomia demasiado pesada para as alturas. O desejo alegra e move a desejar mais, mas não pode cumprir-se, porque o poeta é incapaz do silêncio e da obediência. Conduzindo-o ao desespero, “o desejo é o consolo que descobre a desolação”.

Assim, o poeta é o homem que descobre no seu íntimo a discórdia do coração humano: a divisão interior de estar situado entre Deus e o mundo e ter em mãos uma eleição: ou o mundo e, por isso, a angústia; ou Deus e, por isso, uma esperança que vai pacificando a angústia. Mas ele não chega à pacificação, porque “a sua vida radica no desespero”.

É o homem incapaz da eleição, marcado pela contradição, preso do lado de cá do salto da fé, não porque não o deseja, mas exatamente porque o deseja: e o desejo, porque não se cumpre, floresce em desespero e não em lírio. Desesperando, não se pacifica.
Um modo de compreender este carácter contraditório é ter atenção ao próprio ofício do poeta.

Diz Kierkegaard que “a linguagem poética é muito diferente do modo comum de falar das pessoas, é quase como silêncio, mas, não obstante, não é silêncio. O poeta não procura o silêncio para chegar a calar, mas, pelo contrário, para chegar a falar: como fala um poeta.”²

Esse silêncio, impossível no mundo do discurso, é o que permite ao homem aproveitar o instante, que é o momento de experiência do eterno no temporal, um lugar de Deus por entre o lugar do homem. Ora, se só permanecer no silêncio torna possível agarrar esse instante; e se o poeta transforma o silêncio em linguagem, percebemos porque é que, para Kierkegaard, o poeta está condenado ao desespero.

 

Um outro modo de olhar: o Poeta tende para o Silêncio

Há, contudo, um outro modo de compreender esta realidade. O poeta procura o silêncio atento e transforma-se em ouvinte; ele tende para o silêncio, não para o discurso dos homens.  Por isso é mais silêncio do que discurso. Contudo, ao contrário dos outros homens, ele desdobra o silêncio em linguagem. O seu silenciar-se descobre uma linguagem distinta do discurso habitual. Não uma linguagem que ele busca, mas uma a que o silêncio o impele. O poeta fala pela mesma razão por que desespera: desespera por procurar a paz; fala porque busca o silêncio. Procura primeiro o silêncio, como quem procura primeiro o reino de Deus. Ele fala, não por amor ao discurso dos homens, mas porque se faz silencioso.

Mais do que contradição, ele é paradoxo, personificação da condição humana, porque no seu modo de vida assume o paradoxo da existência: estar suspenso entre o mundo e Deus.

Assim torna-se mediador entre o silêncio do absoluto e a linguagem dos homens, pelo caráter paradoxal da sua linguagem: as imagens que cria são mais próximas do silêncio que do discurso. Ele fala desde o centro do silêncio palavras de silêncio, um modo de revelar aos homens o instante. As suas palavras não contrariam o silêncio do homem diante de Deus, antes são um prolongamento desse silêncio.

O seu modo de ser silencioso é o mais humilde dos modos de o ser, porque não se limita a aproveitar para si o instante, antes o oferece aos homens nas imagens nascidas do silêncio, que expressam o que o discurso é incapaz. Estas, tal como Deus, não podem ser compreendidas por completo: é um modo de falar silencioso que foge ao discurso, da mesma forma que Deus foge às formulações da “teologia natural”. Humilde também porque reconhece o abismo que há entre ele e Deus: é porque não O pode abarcar que o poeta desdobra o silêncio numa linguagem que é transbordo do instante que ele não pode conter nem possuir para si.
Por isso, ao contrário do que aponta Kierkegaard, o poeta não “faz de si mesmo o mais essencial”. Antes, tendo acedido ao lugar do silêncio solene, comunica-o desse modo paradoxal aos outros homens, não lho impondo, mas obrigando-os a tornarem-se atentos. É aqui que o poeta vai além do homem estético: apresenta-se como apóstolo que anuncia a necessidade do silêncio, porque é ao silêncio que as suas palavras conduzem, ao contrário do discurso humano. Oferece a porta do silêncio aos restantes homens, estendendo a poesia como degrau de acesso. Ele estabelece um compromisso apostólico com o silêncio: contemplata aliis tradere.

É por isso que a sua é uma linguagem velada, que revela ocultando, que diz o silêncio lançando apenas os contornos dessa realidade diversa: é algo turva, de outra forma violaria o silêncio que é. Nesse caráter paradoxal, a linguagem poética assume uma verdade que é cara a Kierkegaard: afirma a distância entre Deus e o homem; afirma humildemente a sua humana impotência em jeito de suspiro: “Cumpro a vocação de não poder.”³

Esta é a seriedade do poeta. Tal como Kierkegaard diz, ele é o homem do paradoxo que muda o silêncio em linguagem. Contudo, esse paradoxo radica, não no desespero, mas na fidelidade absoluta à sua vocação de mediador; e, sendo mediador, é apóstolo, porque a sua linguagem de silêncio  conduz ao silêncio diante de Deus.

 


¹ Søren Kierkegaard, “I. Mirad a las aves del cielo; Contemplad al lirio del campo” em Los lirios del campo y las aves del cielo (Madrid: Editorial Trotta).

²Ibid.

³ Daniel Faria, “Percurso” em Poesia (Porto: Assírio & Alvim, 2015), 414.