Há coisas na vida que, “a propósito de nada”, se vão insinuando até atingirem uma certa dimensão. Um dos filões culturais que a experiência do Juniorado – tempo de estudos na Companhia de Jesus dedicado às Humanidades e à Filosofia – me tem feito explorar, quase sem me dar conta, é o cinema de Woody Allen. Certamente com mais êxito do que os rabis que Allen acabou por desvenerar, valho-me nesta descoberta das entusiastas sugestões de um companheiro jesuíta. Como quem não se cansa de partilhar o que mais gosta e que melhor conhece, muitos são os serões em que nos aventuramos a investir aqueles pontuais 90 minutos, qual partida de Liga dos Campeões, para sairmos enriquecidos com o olhar desconcertante diante sobre a vida que poucos como Allen sabem lançar.
Para além da duração certeira do filme, da presença imperturbável daquele fundo negro a mostrar os créditos iniciais, está garantida uma excelente banda sonora que não dispensa o Jazz, habitat natural de um woodialiano. Mas talvez ainda mais substancial do que estes leitmotivs, podemos sempre contar com a despretensiosa presença do génio do realizador. Seja como protagonista existencialmente explorado, seja como personagem secundário com vicissitudes patéticas, Allen pode até ausentar-se deixando que a voz e corpo de outro vinquem a sua postura e inquietações. Insólitas obras estas, em que a assinatura do criador assume contornos humanos.
O seu niilismo, que é tão nosso, cruza, sem nunca prescindir da roupagem sarcástica, o absurdo do sentido para a vida, das infidelidades amorosas, da fragilidade que não sabe resistir aos apetites mais banais. Através de uma arte que satiriza a própria arte, as suas obras falam-nos do que é entregar-se sem reservas à finitude das criaturas, com o frequente desprezo do seu improvável Criador. Criado na cultura judaica e revoltado contra essa herança, Woody Allen demonstrou a sua afinidade pela Religião Cristã quando chegou mesmo a afirmar que o único problema de Cristo foi ter ressuscitado ao Domingo e não ter escolhido outro dia da semana para o fazer.
Manhattan, última das películas visualizadas, nesta interminável saga que em suma trata do mistério e do drama das relações humanas trouxe consigo uma novidade neste tempo pascal. Apesar do filtro a preto e branco, estamos perante uma obra recheada de movimento e sensações, urbanismo e paixões. Para atingir o tema que me atrevi a explorar, isto é, delinear o movimento da Redenção a partir da obra, faço uso de três excertos do filme – princípio, meio e fim. Pretendo, na verdade, recomendar o filme na sua íntegra.
Ao som inigualável de “Rhapsody in Blue” de Gershwin, somos introduzidos à narrativa através de uma abordagem experimental e existencial à cidade de Nova Iorque e à sua singularidade. À medida que os sopros se vão adensando nessa trilha sonora ímpar, vamos entrando no rebuliço nova-iorquino, dos carros às multidões. Percorrendo as teclas desse piano de cauda inteira, deixamo-nos arrastar através das passadeiras e por entre as multidões. Vemos as pessoas e os prédios, imaginamos ouvir as conversas e o tráfego, esforçamo-nos por sintonizar com o sentir de quem fala. Isto porque, simultaneamente, Isaac Davids (ou Woody Allen) vai esboçando o início do seu eternamente adiado “novo livro”. Entramos assim como quem olha de fora e se propõe a mergulhar de cabeça numa existência em andamento, numa carruagem náufraga sobre si mesma.
Tal como Deus – “Aquele que não dormirá nem há de adormecer” – que, inclinado-se a olhar lá do alto “a redondeza da Terra”, se propôs realizar “a redenção do género humano”, contemplamos a cidade que nunca dorme. No fogo de artifício que de noite a adorna, ao ritmo dos tímpanos e das trompas, dos rufos e dos fagotes, sentimos a alegria do que é ser visitado para ser resgatado do seu ensimesmamento. Como foi a humanidade, como é cada um de nós.
Da trama de personagens e relações que o filme vai desenrolando, destacamos Tracy, a adolescente de 17 anos por quem Isaac se apaixonou, seja lá isso o que for, depois de a sua ex-mulher o ter trocado por outra. Passando a viver com outra mulher, propôs-se escrever um livro onde revelaria pormenores do casamento recém-terminado. Sobressai a imaturidade e a fácil sedução às paixões do meio social superficial em que Isaac se move. Paradoxalmente, é Tracy, a adolescente que ainda frequenta o liceu, quem assume o papel da pessoa matura e sensata, ao delinear um projeto de vida que passa por estudar Artes em Londres e ao querer assumir todas as consequências do seu amor por Isaac, um homem com idade para ser seu pai. Isto apesar das resistências sociais e da falta de firmeza de Isaac em acolhê-la totalmente, superando os seus preconceitos e expetativas.
No limite, Tracy assume a figura crística de quem, incompreendido e desvalorizado, é manso e humilde de coração, de quem tem uma missão a desempenhar e sabe pôr os meios para alcançar os seus fins, de quem é livre para amar sem reservas. Em suma, na frase que Isaac profere a Tracy “tu és a resposta de Deus a Job” compreendemos como a sua irresistível beleza não se fica pela cosmética, mas, sendo interior e integral, é mediação para resgatar Isaac das seduções efémeras que o acorrentam.
À maneira de uma moldura narrativa, aquela banda sonora citadina “in blue” regressa na sua fase mais épica na cena final de “Manhattan” que também partilhamos aqui. Até a voltarmos a escutar, vemos Isaac, igual a si próprio, desapaixonado da vida depois de mais um fracasso amoroso. Entretanto, tinha deixado Tracy para se unir com uma crítica de Literatura intelectualmente estimulante, mas relacionalmente instável e infiel, cuo psicanalista acabou por entrar em depressão. Depressivamente esparramado no sofá, enquanto grava lamentos para o seu livro, Isaac reflete sobre que razões podem fazer com que valha a pena viver realmente. Dentro da enumeração daquilo que ainda pode dar sentido à existência encontramos o (nestas andanças já clássico) Grocho Marx, o segundo andamento da sinfonia Júpiter, Louis Armstrong, Marlon Brando, Frank Sinatra, as peras e maçãs de Cézanne, e … – insuspeitamente insinuado – “o rosto de Tracy”. Esta última razão, pedra de toque, pedra filosofal, pedra angular, fá-lo suspirar profundamente e coloca-o em movimento, como alguém que cai em si se e deixa atingir pela saudade do amor que ainda está por vir. E, como amante ainda (ou de novo) afastado da amada, desata a correr desalmadamente entre as mesmas multidões e engarrafamentos até encontrar o lugar onde o seu coração poderá por fim repousar.
O diálogo final, repleto de arrependimento e afeto, miséria e misericórdia, promessas de amor e sonhos de um futuro por construir dá-se na iminência da partida de Tracy para seis meses de estudos em Londres. O filme termina em aberto: perante a evidência desesperante de uma separação temporária até a um reencontro (“não tens de ir”), Tracy põe o amor de Isaac à prova (“não consegues ter um pouco de fé em mim?”). Eis quando, voltando a escutar os poderosos sopros de Gershwin, o ceticismo niilista de Isaac – rasgado pelo amor de (ou que é) Tracy – se abre em sorriso esperançoso diante do futuro.
Do mesmo modo, o encontro com o Ressuscitado – sujeito a ser experimentado por cada um – não mais é do que a abertura da nossa fragilidade e falta de sentido àquele Rosto com um Nome cuja Beleza e Verdade vêm em nosso resgate, dando à nossa vida “um novo horizonte e dessa forma o rumo decisivo”. Como Paulo, derrubado pela potência da Luz – com um Rosto e um Nome – que, cegando-lhe o rosto e chamando-o pelo nome, intercetou o seu caminho de engano, o encontro com Jesus alcança-nos de uma maneira tão íntima e transformadora que nos coloca necessariamente em movimento de saída e anúncio até chegar à meta prometida. Diz-nos o Apóstolo: “esquecendo-me daquilo que está para trás e lançando-me para o que vem à frente, corro em direção à meta, para o prémio a que Deus, lá do alto, nos chama em Cristo Jesus.” Uma vez combatido “o bom combate”, “terminada a corrida”, essa meta só será alcançada se for “guardada a Fé”.
“A propósito de nada” e de tudo, a Fé pode-se ir insinuando e acendendo. Como relação de intimidade e confiança com Deus, já vamos experimentando como Ela, a Fé, mais do que de certezas e garantias, “vive de afeto”.