A crítica de Martin Heidegger à concepção tradicional da metafísica ocidental é de extrema importância, uma vez que foca na dimensão e o «situar» do ser humano no «Mundo». Trata-se ao mesmo tempo de uma crítica à noção de indivíduo fabricada pela filosofia desde a modernidade. A pergunta inicial de Heidegger «Porque o Ente e não o nada?» isto é dizer, o porquê da existência, pretende voltar a responder à questão da essência do ser humano e não somente da sua existência Ao buscar «purificar» a metafísica do abstraccionismo e do racionalismo que obscurecem a filosofia da verdadeira essência em que o Ser (Sein), Heidegger pensa ter resgatado o espanto inicial da filosofia grega, para que, a partir de uma atitude fenomenológica, desvelar no «Mundo» o conhecimento já anteriormente presente no indivíduo/sujeito. Ao descrever a história da civilização ocidental como uma «constituição onto-teo-lógica da metafísica», Heidegger, afirma ter sido o desenvolvimento da metafísica ocidental, que, gerando o paulatino esquecimento do Ser e a sua assimilação com o Ente, se produziu a «morte de Deus». Conceito que teve a sua maior expressão no século XIX com a pensamento filosófico de Feuerbach, Nietzsche, Marx.
A «morte de Deus», é para Heidegger, o culminar de uma metafísica deturpada no seu valor/essência original: fomentar a reflexão acerca do que faz o Homem ser humano. Em última consequência a «morte de Deus» deturpou tanto a realidade que já nem sequer é «capaz de notar que a falta de Deus é uma falta» (1). Na expressão da «morte de Deus» está o enunciado de que a ocultação e o esquecimento do Ser deu origem à «vitória» da técnica que objectifica toda a realidade, controlando-a. Ao longo do século XX foram surgindo inúmeras distopias que visavam denunciar o perigo do «mundo da técnica». Na área da literatura indico dois nomes: Aldous Huxley com a obra Admirável Mundo Novo e George Orwell com a obra 1984. Ambos os literatos fazem uma crítica a «mundos» guiados pelos ideais do positivismo e da técnica o que levava à alienação do ser humano e ao controle totalitário do mesmo em todos os seus aspectos sociais e individuais. Como contraponto à técnica, Heidegger, defende que os pensadores e poetas são os guardiães da «casa do saber» onde o Ser se pode revelar. É este revelar-se ao Ser no «Mundo» que o Ser se revela, se dá e se encontra, o Sein torna-se, desvela-se, em Dasein (ser-aí).
O estudo do pensamento de Martin Heidegger, e de modo especial ao que se refere acerca dos existenciais do Dasein – i.e., os modos como o Ser se revela no «Mundo» – fez-me remeter para a reflexão do pensador Erich Fromm na obra Ser ou Ter? (1976). Apesar de Fromm partir da psicanálise e da teoria social e Heidegger se foque no campo da ontologia, não deixa de ser curioso as associações que podemos encontrar entre os conceitos de Ser existencial e Ter existencial (que difere do Ter caracterológico) com os modos de «autenticidade» e «inautenticidade» da Analítica Existencial da estrutura ontológica do Dasein de Heidegger. A «autenticidade» pode ser vista como o Ser existencial, uma vez que, ambos se revelam de modo original como parte da experiência da própria existência. Existência que está baseada na essência do ser-mesmo. Já a «inautenticidade» liga-se ao Ter caracterológico, i.e., o Ter de possuir coisas, pois não é o Ter necessário ao Ser existencial. A reflexão de Erich Fromm está associada a uma crítica à sociedade consumista. Para o autor, a existência numa sociedade que valoriza o Ter faz com que procuremos o Ter em vez do Ser para não nos sentirmos excluídos – todos se adaptam à maioria, ninguém quer ser um proscrito: «O desejo de experimentar a unidade com os outros manifesta-se, tanto nos comportamentos mais baixos (…) como nos mais elevados: (…); os seres humanos têm mais medo de ser banidos do que morrer» (2).
Partindo de Martin Heidegger e de Erich Fromm a acerca da questão do Ser, passarei a focar a análise do Ser a partir da visão do sujeito para embarcar na crítica ao «individualismo» que funda a nossa contemporaneidade. Assumo como ponto de partida a noção da «morte de Deus» origem consumismo desenfreado das sociedades contemporâneas. Será que o «individualismo» – entendido pelos pensadores sociais e políticos como Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau como um conceito fundamental na construção das sociedades e dos Estados modernos – ser a causa da condenação das sociedades e Estados contemporâneos? Em que é que o «individualismo» se liga ao Ser?
Em A Era do vazio: Ensaios sobre o Individualismo Contemporâneo (1983), e sobretudo no capítulo VI intitulado «Violências selvagens, violências modernas», Gilles Lipovetsky, analisa as mudanças culturais e sociais que ocorreram na Europa Ocidental na segunda metade do século XX. Nesta obra, Lipovetsky argumenta que a sociedade moderna passou por uma mudança significativa rumo a uma cultura individualista e hedonista, onde o consumo, o entretenimento e o prazer se tornaram os principais valores. Para o autor estas mudanças culturais têm o seu fundamento na diminuição na importância da religião e da política, que costumavam prover os indivíduos de sentido, propósito e orientação. Cuja identidade e significado foram substituídos pela cultura do entretenimento e do consumo. Neste sentido, Lipovetsky, embora defenda que o «individualismo» tenha trazido liberdades e oportunidades para muitas pessoas, o mesmo trouxe também problemas para as sociedades contemporâneas. Um dos principais problemas apontados é a perda do sentido de comunidade, visto que, numa cultura individualista, tende-se a se preocupar mais com os próprios interesses e menos com o bem comum, o que pode levar a uma sociedade fragmentada, onde as pessoas têm dificuldade de colaborar e onde imperam factores como a solidão e o isolamento social – que originam desenraizamento e alienação, e contribui para o crescimento de problemas de saúde mental, como a depressão e a ansiedade.
A noção de que o «individualismo» é uma das causas da desintegração social conduziu-me para a obra de Mario Vargas Llosa, A civilização do Espectáculo (2012) em que o Nobel da Literatura argumenta que a cultura do entretenimento se tornou a principal força motriz da sociedade contemporânea. Nesta obra são analisados aos valores culturais predominantes no ocidente contemporâneo, onde «o entretenimento e o espectáculo» são exaltados em detrimento da cultura, da arte e da literatura. Vargas Llosa argumenta que, nesta cultura do espectáculo, a «celebridade» é mais importante do que a qualidade e o valor artístico ou intelectual, e, tal como em Lipovetsky, o consumismo e a busca pelo prazer imediato são os valores predominantes. Para Vargas Llosa, no entanto, se, por um lado, um «individualismo» excessivo pode levar ao isolamento e à falta de solidariedade entre as pessoas, por outro, o «individualismo» é uma força positiva na medida em que promove a liberdade e a autonomia das pessoas. Deste modo, temos o dever de encontrar um equilíbrio entre a liberdade individual e o bem comum.Chegando ao fim, em que ficamos? Nestas linhas tentei exprimir um pouco as linhas de leitura que me despertaram interesse face ao tema do «individualismo» analisado ao longo deste semestre. A perda da noção do Ser em Heidegger parece corresponder à crítica da cultura do consumismo em Fromm, o que, por sua vez, tem implicações sérias nas diversas formas como o «individualismo» se expressa, como afirma Lipovetsky, cujos sinais de crise já se revelam presentes na cultura, como explicita Vargas Llosa.
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(1) Heidegger. Martin. «Para quê poetas?», in Caminhos de Floresta. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2022, p. 309.
(2) Fromm. Erich. Ser ou Ter?. Lisboa: Editorial Presença, 1999 , 106.