O estudo da História na vida de um jesuíta

Percebermo-nos e perceber o mundo em nosso redor permite-nos caminhar seguros na Verdade que professamos e na realidade em que vivemos.

Se observarmos o pensamento de Robert Phillips, constatamos que a História tem a responsabilidade de: produzir cidadãos informados da sua identidade e da identidade dos outros; promover uma visão inclusiva na visão da comunidade, sociedade e própria nação para com o outro que lhe é estranho; cultivar nos mais jovens valores universais como a tolerância, a justiça social e a honestidade; prever para a visão do que nos é familiar e na aceitação e descoberta do que nos é diferente; e, no encorajamento dos jovens à celebração da multiplicidade de identidades (1). Seja qual for a via(s) na formação de futuros cidadãos, e crentes, conscientes e responsáveis, à História, caberá sempre um papel na promoção dos valores do ser humano consoante a cultura e a sociedade em que nasceu. Noção ético-cultural que se aplica quer a mim próprio enquanto jesuíta, quer a qualquer outro cristão ou não-cristão.

O principal objetivo de qualquer historiador é o de ser totalmente imparcial. Com este fim, pretende-se que este se afaste da sua realidade de vida, o que nunca é verdadeiramente possível, visto que, quem escreve é sempre condicionado pelas suas crenças, interesses, gostos, meio social…  A História deve ser apresentada de forma sempre objetiva, pois só assim nos permite perceber o porquê das coisas e enquadrar a sua utilidade no nosso dia-a-dia. A História é algo partilhado entre o historiador e o seu público, é algo de todos e, portanto, património comum. Pertença não só de quem a partilha, estuda ou produz, mas também de quem a lê ou pode ler. O conhecimento histórico reforça o património de uma comunidade inteira. A História garante a transmissão dos valores, visto que age como construtora e objeto de consolidação da noção identitária de um povo, uma nação, uma instituição, um grupo religioso…. À História compete a recuperação do esquecido. Pretende-se tirar do esquecimento aquilo que é inevitavelmente olvidado no decurso natural do tempo. Pretende recuperar o passado, não se tratando, porém, de um «fazer» de novo, mas, sim, recuperar o acontecido.  Isto não poucas vezes traz-nos alguns dissabores, uma vez que a produção histórica «faz-se» sempre do presente de quem a estuda podendo-se até dizer que «toda a história é contemporânea» visto que esta é feita na contemporaneidade do seu produtor (2). Isto significa que, o que vemos como horrível pode exprimir-se para os nossos antepassados como algo natural e enquadrado na sua realidade. Para além do discurso objetivo à História cabe o interesse pela causalidade dos acontecimentos.

O porquê de um acontecimento é o que nos obriga a fazer e/ou completar a História, tornando-a útil e atrativa. Não pretendendo entrar nas guerras da memória (Micael Pollak), nem no discurso entre Memória e História é salutar evidenciar a importância da memória para a construção da realidade histórica e vice-versa. Deste modo é produzida a «memória coletiva», que muitas vezes se traduz em memórias de carácter nacional e/ou de grupos sectoriais (sociais, profissionais, religiosos…) para a criação de uma Memória Oficial ou de memórias pertencentes a certos grupos minoritários e marginais. Ao historiador cabe o papel de estar entre fronteiras – poderia melhor expressão ser aplicada a um jesuíta? – um espaço entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável… que separa uma memória coletiva «subterrânea» (minoritária e marginal) de uma memória coletiva e «organizada» que se afirma, normalmente, como a visão corrente. Em tudo isto há uma permanente interação entre o vivido e o aprendido, o vivido e o transmitido. O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis é o da transmissão intacta até ao dia em que as mesmas passem, no seio do espaço público, a passar do não-dito à contestação e à reivindicação. Por outro lado, o que testifica a memória oficial é a existência de credibilidade para a sua aceitação, o que não sucede muitas vezes com a memória marginal, que carece, na maioria as vezes, de fontes credíveis. Manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem de comum é o dever do historiador, que perante os factos transforma uma memória coletiva numa «memória enquadrada» (3).

A História na vida de um jesuíta, como a qualquer outra pessoa, tem a função de nos enquadrar na realidade concreta das nossas vidas perante o enquadramento espácio-histórico-temporal em que nos foi dado viver. Percebermo-nos e perceber o mundo em nosso redor permite-nos caminhar seguros na Verdade que professamos e na realidade em que vivemos. Termos perceção da memória coletiva do grupo a que pertencermos permite-nos de forma mais segura atestar e enquadrar, apoiando-nos na veracidade das evidências, o nosso crer, pensar e sentir.

 

(1) Cf. PHILLIPS, Robert. “Reflections on history, nationhood and schooling”. In, After the Wall: History Teaching in Europe since 1989. Hamburg, 2004. pp. 47-48.

(2) CATROGA, Fernando – aulas; TORGAL, Luís Reis. História e Ideologia. Coimbra, 1989, p.27.

(3) Cf. Henry Rousso. In, POLLAK, Micael. Memória, Esquecimento Silêncio. Estudo Históricos: Rio de Janeiro, vol. 2, nº 3, 1989. p. 3-15.