O diálogo da solidão

As nossas casas ganharam o peso de uma âncora. E nós, pesados como navios, mas a querer sair do porto. Inevitavelmente mais próximos de nós mesmos.

Nestes tempos, vamos descobrindo, quantas vezes a custo e não sem peso, que somos, também, a nossa própria companhia. Inevitavelmente mais próximos de nós mesmos (assim o exige estar confinado!), ainda que constantemente acompanhados por aqueles que partilham as mesmas paredes que nós.

Aqui neste ponto, as nossas casas, que eram os abrigos onde regressávamos ao fim do dia para encontrar paz e conforto, ganharam o peso de uma âncora. E nós, pesados como navios, mas a querer sair do porto. Que revolta! Olhemos para nós, agora, já cansados do próprio bem-estar. Então, que a nossa casa não seja uma âncora, mas um mastro. Que seja um mastro! Mas vamos onde, se não há vento nas paredes? Vamos até nós mesmos!

Não é difícil reconhecer as horas mortas que queremos ocupar. Ocupemo-nos delas, em vez de apenas as ocupar. Basta começar a sentirmo-nos fartos e “cheios disto” para que essas horas mortas se imponham. E, inevitavelmente, descobrimos uma espécie de solidão.

Claro que nem tudo pode ser solidão. Não o é. (E que não seja mesmo! Desiste de ficar encafuado nos cobertores, de persianas fechadas!). No entanto, a solidão está em tudo. Porquê? Porque a solidão é a companhia que fazemos a nós mesmos (até mesmo ao ponto de estar farto de mim próprio!).

E então pensamos. Revisitamos as memórias e projectamos desejos. Muitas vezes projectamos o desejo de alterar as memórias. Imaginamos “como seria se…”, desejamos trocar por outras as palavras já ditas, avaliamos possibilidades de futuros alternativos, muitas vezes enraizados em desejos de passados alternativos. Andamos a viajar pelo tempo. Ou nos alegramos nos dons e alegrias recebidos, ou voltamos a lugares interiores pesados ao coração.

A solidão torna-nos atentos aos nossos desejos e motivações. Descobrimos, ao mesmo tempo, as nossas feridas e as nossas alegrias. Descobrimos quer o que é mais valioso, quer o que deixou vincos e amolgadelas. E tudo isto é pensar. Quantas vezes o pensamento não é o nosso eu confinado em nós próprios, a esforçar-se por voar de asas abertas, mas batendo inevitavelmente contra todas as paredes e tectos!

Porque o pensamento é uma ave no espaço,
que metida na gaiola das palavras
pode abrir as asas,
mas não pode voar.

(…)

O silêncio da solidão
revela aos próprios olhos
o seu eu em perfeita nudez
e gostaríamos de fugir.”

-”O Profeta”, Khalil Gibran

 

Parece dramático, mas é um tesouro. Quer queiramos quer não, temos que nos partilhar connosco próprios. Isso é chato, de facto. Conheço muitas companhias melhores do que a minha. Mas, enfim, não me fujo!

Não nos fechemos em nós mesmos mais do que o necessário. Aliás, marquemos conversas por zoom, skype, chamadas, sinais de fumo nos terraços, serenatas nas varandas, tudo! Mas não nos esqueçamos daquilo que já nos apercebemos: eu acompanho-me sempre!

 

 

Foto: Jonathan Cooper, Unsplash