“O Cego de Landim” – Um comunitarista no Séc. XIX

A dualidade entre comunitarismo e individualismo que a novela reflete põe em evidência a complexidade das escolhas humanas e como estas são moldadas pelos valores da comunidade (ethos) à qual o indivíduo pertence.

Ao longo da leitura da novela O Cego de Landim, somos convidados a habitar a tensão entre a procura do bem individual e a procura do bem comunitário, através da sua personagem principal, António José Pinto Monteiro. Este, que nos é apresentado como o Cego de Landim, é a personagem central da novela e assegura a sua unidade narrativa, uma vez que acompanhamos toda a sua história, desde a infância, as duas estadias no Brasil, as suas amizades, as suas paixões e também a sua morte. Em cada momento da sua vida é-nos revelado, por riquíssimas adjetivações, uma figura complexa que atravessou uma série de aventuras e desventuras. 

A obra explora muitos temas que tornam a sua leitura atual, como a justiça, a moralidade, e a manipulação dos sistemas para proveito próprio, embora o protagonista também seja retratado com traços humanitários e comunitários, como o cuidado com os outros e o envolvimento com a comunidade local. 

Comunitarismo de Michael Sandel

O comunitarismo, conforme explorado por Michael Sandel (ou MacIntyre entre outros), é uma corrente filosófica que enfatiza o valor das comunidades na formação da identidade individual e na determinação dos direitos e deveres. Para Sandel, a ética, os costumes e as políticas devem estar fortemente enraizadas nas tradições e valores da comunidade, pois é através delas que os indivíduos encontram significado e orientação para suas vidas. O comunitarismo opõe-se ao individualismo liberal, que coloca o indivíduo no centro, o que acaba por desconsiderar o papel da comunidade.

Esta tensão, entre o individual e o comunitário, existe desde que o ser humano começou a viver em sociedade. Efetivamente é desde sempre que a humanidade procura o equilíbrio entre os interesses individuais e o bem-estar da comunidade, através da participação ativa na vida cívica. Facilmente recordamos, ou reconhecemos no, situações em que se dá demasiada ênfase ao individualismo na sociedade moderna, o que acaba por conduzir à fragmentação social e à perda do senso de comunidade.

Exemplos de Comunitarismo e Individualismo ao longo da novela

Individualismo:

Ao longo da obra são descritas as atividades nas quais o protagonista procede à manipulação das leis e à exploração de outras pessoas para benefício próprio, que refletem uma inclinação individualista, onde o bem-estar pessoal se sobrepõe ao Bem Comum. A decisão de António Monteiro de agir em benefício próprio, mesmo que à custa dos outros, como no caso dos crimes de tráfico de moedas falsas, de que beneficia, ilustram uma perspetiva individualista e utilitarista.

1. Manipulação de sistemas para proveito pessoal

António Monteiro é descrito com muito pormenor a manipular sistemas legais e sociais para seu benefício, como quando explora o seu papel de intermediário para trair parceiros comerciais e “amigos”, justificando-se pelo modo de proceder: «Os Codros e os Cúrcios, na restauração da moral pública, fazem isto.» (p. 15). Basicamente envolve-se em atividades criminosas, ao promover tais atos e ao denunciar “amigos” e parceiros à polícia em troca de recompensas, colocando os seus interesses pessoais acima dos restantes. Em síntese, o protagonista vai-se colocando sempre numa situação vantajosa.

2. Exploração e desconsideração pelos outros

É também acusado de trair um parceiro que confiou nele, mostrando uma desconsideração total pelo bem-estar alheio em favor de seu próprio ganho financeiro: «Ora, do lavrador nunca mais houve notícia; mas, no governo civil de Lisboa, fora visado o passaporte de José Pereira da Lamela, e o mesmo nome inscrito na lista dos passageiros.» (p. 29). Demonstrando a sua indiferença na hora de enriquecer “pela chico-espertice”.  

3. Decisões baseadas em benefícios pessoais, ignorando o dano comunitário

Outro bom exemplo de decisões que, embora o beneficiem pessoalmente, trazem consequências negativas para a comunidade é a sua decisão de fechar o botequim em Famalicão, motivada pela falta de apreço da comunidade local pelo seu estabelecimento, o que lhe provocou desdém: «Monteiro contava com as leis do progresso; porém, Vila Nova que hoje, na extrema decadência, tem três ‘cafés’ com dois limões sorvados e três garrafas de licor de canela, em tempos florentíssimos não sustentou o botiquim do cego em que havia cognac, curaçau, chartreuse, kermann e absinto.» (p. 32). A cena que retrata o fecho do café é muito cinematográfica, pois «Ele vociferou que os habitantes de Famalicão eram indignos do ‘Café’, deu volta à chave, e foi caminho de Landim com a hóspeda e a irmã.» (p. 33).

Comunitarismo

Por outro lado, o cego de Landim, apesar de suas ações questionáveis, procura (por várias vezes) integrar-se e contribuir para sua comunidade. Seja ajudando indivíduos em dificuldades ou organizando festas comunitárias, ele procura simplesmente ajudar. Podemos perguntar-nos se a sua verdadeira intenção é redimir-se.

1. Organização de banquetes e integração comunitária:

António Monteiro é elogiado pela organização de banquetes generosos para a comunidade, compartilhando a sua riqueza com os seus vizinhos e amigos. «O grande prazer de Monteiro era dar banquetes opíparos. Ouvia ler as Artes de cozinha, conhecia Brillat-Savarin, enchia-se do fino sentimento dos guisados; e, apontando a pituitária aos vapores das caçarolas, marcava quando era sobejo o cravo ou escasso o colorau.» (p. 25). É uma demonstração clara de hospitalidade aliada ao desejo de dar a conhecer novos alimentos de entreter a comunidade, o que acaba por fortalecer os laços comunitários e ser sinal do valor que a personagem dá ao bem-estar coletivo.

2. Casamentos comunitários:

António Monteiro é descrito como um verdadeiro “casamenteiro”, ao envolver-se ativamente em promover casamentos, com métodos pouco ortodoxos, mas eficazes – «E, depois, tinha outra paixão que o deliciava: arranjar casamentos. Florecem hoje em Landim alguns casais de pessoas ditosas que ele ajoujou, vencendo estorvos à custa de engenhosas intrigas, e até de liberalidades de suas abatidas posses.» (p. 26). 

3. Cuidado e compromisso com pessoas em dificuldade

António Monteiro mostra um compromisso com o cuidado individual e personalizado, especialmente nos momentos de maior dificuldade. Por exemplo, quando cuidou de um brasileiro doente, Alvino Azevedo, até à sua morte, e posteriormente se encarrega de cuidar da viúva, conforme o pedido de Alvino. «Visitou-o e acompanhou-o nos desalentos da caquexia, animando-o ou distraindo-o com a sua variada e jovial conversação. Alvino Azevedo afeiçoou-se-lhe a ponto de, chegado ao termo dos sofrimentos, lhe confiar sua mulher, pedindo-lhe que a protegesse e guiasse na administração dos seus haveres.» (p. 32). Esta situação demonstra um respeito profundo do protagonista pelos valores comunitários, em especial a responsabilidade pelo bem-estar alheio.

Conclusão

Estes exemplos ilustram como o personagem principal oscila entre ações que promovem o bem-estar comunitário e outras que claramente favorecem os seus próprios interesses, não olhando a meios para os alcançar. Esta dualidade vai sendo mitigada ao longo da obra, pois com o avançar da idade, o personagem principal vai-se transformando numa pessoa mais responsável pela comunidade em detrimento de absolutizar o seu bem-estar individual.

A falta de empatia pelo próximo que revelou no início da vida transformou-se num altruísmo. Esta mudança progressiva resulta de ter apreendido os valores e normas sociais que lhe faltaram enquanto criança, procurando redimir-se em fim de vida pelas tropelias anteriores. Assim, a dualidade entre comunitarismo e individualismo que a novela reflete põe em evidência a complexidade das escolhas humanas e como estas, por um lado, são moldadas pelos valores da comunidade (ethos) à qual o indivíduo pertence e, por outro lado, são influenciam a comunidade.

Bibliografia: CASTELO BRANCO, Camilo. “Cego de Landim” em Novelas do Minho, 9-42. Lisboa: Imprensa Nacional, 2020

Fotografia: portão de entrada da Casa de Camilo, em Seide