“A Morgada de Romariz” e o novo-riquismo de sermos “um povo de pobres com mentalidade de ricos”

Encontramos em Camilo e em Eduardo Lourenço, apesar da diferença de épocas nas quais escrevem, e da diversidade tanto de registos como de estratégias argumentativas que adotam, uma crítica comum à mentalidade do novo-riquismo português, que é intemporal, inter-geográfico e interclassista.

0. Introdução

A novela de Camilo em análise contém uma crítica mordaz ao novo-riquismo – material ou mental – de uma sociedade minhota que acompanhava as tendências do restante país.

Seria pertinente começar por evocar as palavras de Miguel de Unamuno: “Leer Camilo es viajar por Portugal, pero por el Portugal de las almas” (Por Tierras de Portugal y de España, pág. 239). Na verdade, ainda que Camilo tenha sido um autor não tão viajado como outros, a versatilidade da sua escrita narrativa permitiu esboçar viagens inauditas, feitas de corpo, mas sobretudo de “almas”, não só pelo Minho, mas pela amplitude existencial na qual se dá a portugalidade. Falamos de almas que a pena de Camilo dominava como poucos a partir da sua memória e da sua imaginação, vertidas em personagens de singular complexidade e especificidade. Como dirá muito mais tarde Pessoa, “para viajar basta existir” (Livro do Desassossego, frag. 251). Por maioria de razão, para fazer viajar basta existir.

Com uma escrita expedita e uma capacidade notável de compaginar a multiplicidade das personagens ao longo de gerações com um fio narrativo ininterrupto e magnético, Camilo adentra-nos, enquanto leitores, nos meandros de uma família espalhada entre o Minho e Lisboa, por altura do Terramoto de 1755. Por uma sucessão de azares e fortunas (também literais), o insuspeito herdeiro de um património granjeado na capital regressa a Vila Nova de Famalicão decidido a manter a vida de pobre, ocultando do resto da sociedade famalicense o tesouro que avaramente mantém escondido em casa, longe dos olhos de todos, mas perto do seu desejo. A tese central da novela é a de que o dinheiro é cego, bem como motivo de cegueira, já que a sua distribuição social está longe de seguir padrões de racionalidade ou justiça, ainda que desperte a irracionalidade e a injustiça no modo de proceder daqueles que dele se querem apossar. Abre-se o espaço, então, para que reine o absurdo, o trágico e o cómico.

No sentido de estender a crítica camiliana, não só à contemporaneidade, mas sobretudo ao modo intemporal de ser português, estabelecer-se-á um paralelo entre a novela “Morgada de Romariz” e a crónica de Eduardo Lourenço – “Somos um povo de pobres com mentalidade de ricos” (in Labirinto da Saudade, 1978). Efetivamente, na ressaca do período pós revolucionário, os traços apontados por Lourenço à mentalidade portuguesa em jeito de crítica são extensíveis a qualquer era da nacionalidade a que nos queiramos reportar e acompanham com notável semelhança as críticas que Camilo lança ao Portugal oitocentista através dos personagens e das peripécias da sua narrativa.

Eduardo Lourenço assume o potencial de escândalo em que incorre ao sentenciar a essência e a interioridade nacional de maneira tão pejorativa: “Apontá-lo é um insulto à nossa celebrada maneira de estar no mundo, que é, naturalmente, a melhor do mundo, por ser nossa e por não podermos conceber outra.” Eis-nos perante um exercício severamente crítico que pretende, acima de tudo, superar a auto-referencialidade justificadora própria dos portugueses, em prol de uma cura transformadora no olhar para a história comum e no projetar de um futuro mais ambicioso. Uma das teses centrais do texto de Eduardo Lourenço é a de que as antagonias sociais, económicas (ou, diríamos nós, geográficas) são meramente aparentes: 

Num dado momento, a mentalidade nacional constitui um todo, instável e articulado segundo clivagens que correspondem à situação das classes que o compõem, mas um todo com leitura orientada segundo o estilo que a classe favorecida e dirigente lhe comunica. A ilusão de oposição de mentalidades (povo de um lado e burguesia ou aristocracia do outro) só radica no efetivo isolamento socio-geográfico em que o chamado povo viveu longo tempo. Mas, mesmo nesse isolamento, as ondas de choque oriundas do comportamento da classe dirigente acabam por reestruturar numa totalidade o que parecia desintegrado ou divergente. (Lourenço, 1988, p. 128)

Neste sentido, o duplo movimento de Camilo é validado por Eduardo Lourenço: não só é verossímil, por um lado, contar com os efeitos de contágio entre a elite urbana lisboeta e a vida da ruralidade minhota, como, por outro lado, o estudo aprofundado das mentalidades do Minho, por mais isoladas que se considerem, diz respeito ao todo que a mentalidade portuguesa constitui.

Assim, ler o Camilo destas Novelas, o autor que só viveu no Norte e que narra a vida do Norte, contra todas as expectativas, chega a ser “viajar por Portugal”, chega a significar perscrutar a alma dos portugueses, e, por isso mesmo, sondar a alma de Portugal.

A estrutura desta reflexão seguirá uma lógica temática ditada pelos capítulos do texto de Eduardo Lourenço, isto sem deixar de pôr em evidência aspetos narrativos e estilísticos da novela de Camilo que corroborem as teses de Lourenço.

1. “O trabalho para o preto”

Lourenço encontra nos Descobrimentos e na ulterior herança colonial o subterfúgio por excelência segundo o qual, ao invés da Europa protestante, “não trabalhar” era sinal de nobreza. Este pressuposto trazia como consequência lógica a refinada transferência “para o preto dessa penosa obrigação”:

Colectiva e individualmente, os Portugueses habituaram-se a um estatuto de privilégio sem relação alguma com a capacidade de trabalho e inovação que o possa justificar, não porque não disponham de qualidades de inteligência ou habilidade técnica análoga à de outra gente por esse mundo, mas porque durante séculos estiveram inseridos numa estrutura em que não só o privilégio não tinha relação alguma com o mundo do trabalho mas era a consagração do afastamento. (Lourenço, 1988, p. 129)

Na novela camiliana em análise, encontramos em Faísca, o filho pródigo de Bento da Costa, a encarnação deste espírito pícaro e preguiçoso que procura a boa-vida sem querer trabalhar. De facto, aquele que outrora era militar, prontamente desertou da tropa quando soube que o pai herdara do falecido irmão Jóia “três mil peças de ouro” e aparecera entretanto em Famalicão com a mesma aparência pobre, mas com a “fresca” fortuna bem camuflada nos bolsos. Como filho mais novo da parábola do Pai misericordioso, Faísca solicitou a “parte que lhe cabia” dos despojos da herança, coisa que o pai lhe negou acerrimamente. Salta a vista o quão “cegador” pode o dinheiro ser a ponto de inverter as prioridades mais básicas da vida: o pai afeiçoa-se ao dinheiro, a ponto de o preferir ao próprio filho; o filho desiste da dignidade que só o trabalho pode dar ao homem para se subjugar a uma fortuna que não fez nada por merecer e que, em última instância, não lhe pertence. É irónico reconhecer que a única quantia dispensada pelo pai, depois da intercessão de toda a vila, prendeu-se com a fiança paga em proveito do filho, depois de este ter abandonado a praça militar. 

Não é de espantar o estilo de vida – lento para trabalhar e ausente do dever em proveito do lazer –  que Faísca adota já como chefe de família, mas ainda, e para sempre, dependente do “ouro do Brasil” que a fortuna do pai representava para si:

A sua nova posição de lavrador não lhe quadrava; a pesada rabiça do arado dava­‑lhe engulhos ao estômago, quando a sacudia do rego aberto para romper outro; o cabo da enxada empolava‑lhe as mãos; de sáfaras não sabia nada; ignorava todo o tráfego da lavoira; e, em vez de aprender, como queriam a mulher e o sogro, ia bandarrear por feiras, quatro vezes por semana, na sua égua rabona, de pau de choupa debaixo da perna, mão direita à cinta, chapéu braguês na nuca, e besta travada que não havia outra daquela andadura. Às impertinências do sogro respondia que não precisava de labutar sujamente na terra, porque seu pai tinha o melhor de cinquenta mil cruzados em peças; e aos queixumes da mulher amante e ciosa voltava as costas enfastiado. (Castelo Branco, 2006, p. 178-179)

2. “O tradicional grito de pouca sorte”

Sobressai como traço lunar do ser português uma certa apatia diante do destino e uma escassez de proatividade previdente diante das contingências da vida. Se a previdência dá trabalho, a Providência há-de nos valer. Ainda assim, esta mediocridade de mentalidade pode chegar a ter contornos de mesquinhez quando, nivelados por baixo, vemos algum vizinho a singrar na vida e prontamente nos dispomos a, das duas uma: arranjar um estratagema para que caia; ou inventar criativamente uma forma de o ultrapassar. 

A imprevidência histórica de que várias vezes demos provas desde Alcácer Quibir à Descolonização, a eterna surpresa que sublinha as catástrofes mais evitáveis, o nacional grito de pouca sorte com que comentamos os desastres que nós próprios elaboramos por inércia ou confiança infinita nas boas disposições da Providência, são só alguns dos aspectos com que mais brutalmente se manifesta a nossa riquíssima mentalidade de pobres milionários por direito divino, (…) de gente que a bem dizer não visa mesmo ser rico responsabilizando-se nessa situação, mas apenas não ser tão pobre como o vizinho e suplantá-lo. (Lourenço, 1988, p. 130)

Refletir esta mediocridade e mesquinhez na novela camiliana em análise é um exercício natural de se fazer quando nos focamos nos personagens de Faísca e de Bento da Costa. Em Faísca (Joaquim de Carvalho), encontramos a mediocridade conjugal e parental elevada ao estado máximo da irresponsabilidade. Ausente na morte da própria mulher, ignorante do paradeiro e da condição indigente do filho, a primeira coisa que faz ao encontrá-lo é apelar à sombra providente do Pai (e avô) ganancioso. Mas a má sorte à qual fez por abandonar a sua família nem nessa alienação parental encontrou amparo. Efetivamente, o avô pedreiro, totalmente preso pela riqueza que escondia de todos -e até de si próprio – foi incapaz de se compadecer do neto abandonado. Se Bento, que era rico, levava uma vida de pobre, com que direito havia o neto de viver melhor que ele?

A libertinagem do Faísca foi até onde os dois mil e tantos cruzados da mulher chegaram; e, naquele tempo, quem os desbaratasse em seis anos alcançava a reputação dos que em nossos dias derivam à miséria sobre ondas de ouro. Antes de conhecer as primeiras necessidades, Rosa morreu na flor da idade, deixando um filho de seis anos entregue ao avô, porque o marido havia muitos meses que demorava pela Galiza, amaltado com jogadores de esquineta, seus antigos camaradas, uns com baixa, outros desertores. O filho de Rosa breve tempo viveu da caridade do avô, que faleceu pouco depois. Quando Joaquim de Araújo voltou a S. Martinho por saber que estava viúvo, encontrou o menino de sete anos esfarrapado, sem amparo de parentes, a esmolar o pão e o gasalhado dos vizinhos, porque seu pai não tinha casa própria, e todo o património de sua mãe estava vendido. Quem recolhera o rapazinho era um fogueteiro, o mais remoto e desprezado parente de sua mãe. O pequeno ajudava­‑o a afeiçoar as canas e encher os canudos para os foguetes com bastante jeito e disposição para o ofício. Perguntara­‑lhe o pai porque não fora procurar o avô a Famalicão. O fogueteiro respondeu que lá fora com ele quando a mãe morreu; mas que o avô dissera que estava também muito pobre, e apenas lhe dera estopa para umas calças, e um chapéu de Braga mais rapado que a escudela de um cão. (Castelo Branco, 2006, p. 179-180)

3. “O aparato e a aparência”

Se à mulher de César não basta “ser” porque é necessário “parecer”, no que toca à mentalidade portuguesa, segundo a autópsia existencial de Lourenço, o bem “parecer” justifica qualquer sacrifício do “ser”. Eis mais uma das consequências da “ditadura” cegadora do dinheiro que privilegia a roupagem e detrimento do estofo; a exterioridade brilhante à interioridade pujante; o narcisismo do aplauso à humildade do serviço.

E assim, lenta e inexoravelmente, a mentalidade de uma classe ociosa e sem finalidade transcendente, desce e se infiltra nos interstícios da sociedade portuguesa no seu conjunto como sociedade em perpétua desfasagem entre o que é e o que quer parecer, desfasagem até certo ponto comum a todas as sociedades existentes, mas não como a nossa, sacrificando, até aos limites da inconsciência, o que é, ao que quer parecer. (Lourenço, 1988, p. 131)

A dualidade aparato-aparência é destacada na vida da Morgada de Romariz, filha do fogueteiro Silvestre outrora abandonado por Faísca, e do seu marido José Francisco Alvarães. A sua vida faustosa e confortável, resultado da descoberta da riqueza escondida por Bento da Costa na parede de sua casa por parte de Silvestre e a mulher, são comicamente descritas na introdução e conclusão da novela. Formando como que o encaixe narrativo que põe a nu a aleatoriedade dos privilégios que o dinheiro concede, somos introduzidos ao constrangimento de uma vida conjugal e social que contradiz o título da crónica de Eduardo Lourenço, já que estamos, pela postura no teatro, o tema da conversa e os interesses revelados sem freio, perante um casal de “ricos com mentalidade de pobres”

Ora, a morgada de Romariz, lagrimando com inteligência na prosa da oratória, assim que algum personagem pegava de rimar, ria­‑se. Persuadira­‑se de que a missão dos versos era como a das cócegas. (…)
Ela bocejava nos entre­‑atos, até mostrar as campainhas; ele tosquenejava, e às vezes, espriguiçando­‑se, grunhia: 
— Estou maçado. 
— Pudera… — obtemperava a esposa — a comédia bonita é… mas não há nada como estar a gente na sua cama, Zézinho! 
E dava tons lúbricos ao diminutivo. 
— Quem me lá dera… — volvia Alvarães, deslocando as botas e dando folga e frescor aos pés no aprazível túnel dos canos — O polimento estorcega­‑me os calos… — queixava­‑se com azedume — Comédias… Ora adeus! Patranhas… 
— Modos de vida, homem… 
E abriam juntos as bocas espasmódicas. 
— Ao menos se eu viesse ceado… — dizia ele. 
— Fizesses como eu… 
— Não me cabia cá… — e batia com os dedos
(Castelo Branco, 2006, p. 164)

4. “Portugal, uma mina para Freud…”

Para o pai da psicanálise, o Princípio do Prazer tem como único objetivo satisfazer os nossos impulsos primitivos como o da fome, o da raiva ou o sexual. Por outro lado, o Princípio da Realidade desenvolve-se a partir do amadurecimento da personalidade e da vida em sociedade. Os aspectos culturais de uma vida em sociedade tornam o Ego preocupado em evitar o perigo e adaptar o indivíduo ao comportamento civilizado. Lourenço não tem dúvidas em decretar que a sociedade portuguesa está a priori minada pelo predomínio do primeiro Princípio, como se pode ver pelo estilo de educação escolar e familiar proposta especialmente aos rapazes e pelas consequências nefastas que esse paradigma traz para as famílias e a sociedade. A satisfação dos apetites egocêntricos não encontra na boa conduta social um adversário à altura. Boa cama, boa mesa e boas perspectivas de poder consistem no ideal do português-prazer, muito longe do português-real aberto ao outro.

É pena que Freud não nos tenha conhecido: teria descoberto, ao menos, no campo da pura vontade de aparecer, um povo em que se exemplifica o sublime triunfo do princípio do prazer sobre o princípio da realidade. Talvez não ficasse admirado se conhecesse, mesmo pela rama, uma das menos repressivas educações infantis que existem (…). Adulação permanente e espectacular da criança-rei (sobretudo o macho), porta aberta para as suas pulsões narcisistas e exibicionistas, ausência de perspectiva social positiva, salvo a que prolonga a afirmação egoísta de si, tais são os mais comuns reflexos da educação portuguesa, defesa natural de mães frustradas nela pelo genérico absentismo e irresponsabilidade paternos. (Lourenço, 1988, p. 132)

Este predomínio do egocentrismo sobre a comunidade encontra um paralelo levado ao extremo na integração de Faísca no grupo de salteadores da “Terra Negra”, à boleia do seu padrinho Luís Meirinho. Chega a ser caricatural a forma como o conjunto de salteadores, respeitando a chegada do novo membro, prontamente tomam vantagem da sua situação familiar e do ressentimento que Faísca carrega consigo. Tais abutres a rondar a presa, têm o pudor de não discutir abertamente o resgate do tesouro, mas estão absolutamente “à espreita” da primeira oportunidade para o saquear. Sobressai a ironia de pouparem Faísca de assistir ao assalto do próprio pai, enquanto é consolado por um sócio acusado de parricida. 

No programa de Luís Meirinho estava desde muito inscrito Bento de Araújo; mas, como ainda há pessoas de bem, ao capitão repugnava­‑lhe propor em conselho que se planeasse o expediente mais plausível na exumação das três mil peças do pai do Faísca. Os sócios mantinham entre si estes decoros, o que não sucede em todas as companhias com estatutos legalizados. Entretanto, como a necessidade apertava, e à notícia do Faísca chegara a má nova de que seu pai, acariciado por uns sobrinhos de Gondifelos, tratava de se passar para a companhia deles, o capitão, forte de razões aconselhadas pela prudência e aplaudidas por Joaquim, pôs em discussão a matéria, quanto ao modo de obrigar o pedreiro a confessar a lura do tesouro. O Faísca tirou a salvo, porém, que o haviam de dispensar de assistir ao assalto, porque, enfim, o homem… sempre era seu pai, e o sangue gritava. Ninguém se riu na assembleia da sentimentalidade daquele filho: é que as ideias grandes e fundas abalam toda a casta de alma. Foi apoiado calorosamente Joaquim, e até abraçado por um sócio de Felgueiras, processado por parricida. (Castelo Branco, 2006, p. 183)

5. e 6. “Para uma transformação da mentalidade” [enquanto] “a vocação ostentatória permanece”

É interessante recuperar, pelas linhas distópicas de Eduardo Lourenço, o paradigma de um país, saído entusiasticamente da opressão de décadas de Ditadura, e entregue ao sonho de viver tudo, agora, e com a maior intensidade possível. O pesadelo mascarado de sonho de “vivermos acima das nossas possibilidades” resultou, no curto, médio e longo prazo, em três resgates financeiros, diante do perigo iminente de bancarrota. Se alguns pretendem responsabilizar a classe política, as elites empresariais ou a contingência internacional por esses factos, o retrato que Lourenço nos apresenta põe a nu uma mentalidade despesista, ostentatória e irresponsável verdadeiramente disseminada em todas as classes sociais. Depois da euforia, vem o realismo, já que nem uma revolução que inscreve no proémio da Constituição como lema “rumo ao socialismo” conseguiu inverter a desigualdade de oportunidades crónica, os mecanismos de acumulação de riqueza e a mentalidade generalizada que – exasperada pela carga fiscal – lança olhares fulminantes de suspeita a qualquer laivo de criatividade, empreendedorismo ou criação de riqueza. Gastar é para todos, mas poupar e investir é proibido.

Todas as camadas da população apanharão jamais um autocarro quando podem apanhar um táxi. Há dois anos que se desenha e avoluma a já agora dramatizada crise em que famílias inteiras, das que é costume chamar modestas, gastam num almoço, calmamente, o décimo do que um dos seus membros pode ganhar por mês (…) Mas é escusado pensar que a metamorfose da maravilhosa revolução dos cravos em degradado banquete dos cravas, para o etiquetar com a vulgaridade que merece, se deva nominal e grupalmente a alguém. É uma culpa anônima, uma maquinação de poderes obscuros, uma pouca sorte que nada tem a ver com a mentalidade colectiva tantas e tantas vezes ilustrada. Culpados não existem, e sobretudo entre quem parecia lógico que o fosse. Todavia alguém terá de pagar, cedo ou tarde, o preço que a aparência exige para ter um mínimo de realidade. Esse alguém é bem conhecido: chama-se povo, o povo que efectivamente trabalha e para quem, como escrevia Goethe, a maioria das revoluções  que se fazem em seu nome não significam mais que a possibilidade de mudar de ombro para suportar a costumada canga. (Lourenço, 1988, p. 133-135)

Em clara antagonia com o panorama gizado por Lourenço, Camilo remete-nos para a boa-vida da família “felizarda” que, pela ironia do destino, ganhou a lotaria. Da “monotonia verde” (Diário IV, p. 115) de que Torga se queixava enquanto percorria o Minho, Felizarda e José beneficiaram certamente do “caldo”, do “vinho”, do ócio e da fornicação próprias daquela “vida vegetal”, animalesca, fisiologicamente básica, enquanto se imiscuem sem critério na vida política, oscilando como mecenas dos que lhes oferecem mais vantagens. No fundo, subjaz uma crítica que alinha Camilo e Lourenço: será que é a escassez ou a abundância de dinheiro que determina a felicidade do Ser Humano? Será que satisfazer os apetites do sono, da gula e do sexo oferece um horizonte de realização verdadeiramente humano? 

As diversões da vida, convencionalmente chamadas prazeres, não perturbavam a suave monotonia de Romariz. D. Felizarda apenas conhecia na arte dramática o «Santo António» de Brás Martins, e a «Degolação dos inocentes» por onde entrou na vida infame de Herodes. As noites de dezembro aligeiravam­‑se em Romariz a dormir. Ceavam e digeriam serenamente. Ao pé de um bom estômago coexistiu sempre uma boa alma. Acordavam alegres, para continuar as funções animais. Viviam para crédito da fisiologia: eram duas pessoas que se adoravam e faziam reciprocamente o seu quilo em um só órgão. Tinham um coração, um fígado, e um pâncreas para os dois. Nesta vida vegetal havia ternuras cupidíneas como as das cilindras e acácias florecentes; e, quando extravazavam da órbita fisiológica, jogavam a bisca de três; mas ordinariamente entretinham­‑se mais com o burro. (Castelo Branco, 2006, p. 203-204)

7. Conclusão

Encontramos em Camilo e em Eduardo Lourenço, apesar da diferença de épocas nas quais escrevem e da diversidade tanto de registos como de estratégias argumentativas que adotam, uma crítica comum à mentalidade do novo-riquismo português, que é intemporal, inter-geográfico e interclassista.

Se a Novela do Minho “Morgada de Romariz” camufla numa narrativa trágico-cómica – dotada de um realismo humanamente vertiginoso – uma crítica mordaz àqueles que “vendem a alma” ao dinheiro; a crónica “Somos um povo de pobres com mentalidade de ricos” é absolutamente mais declarada na condenação dos traços de personalidade portuguesa associados às vistas curtas de quem se quer satisfazer com o básico do trinómio parecer-prazer-poder. Tudo isto sem chegar sequer a considerar os valores mais altos da arte, da cultura, da espiritualidade ou do mero altruísmo, próprio de quem vive inserido numa comunidade maior que os umbigos de cada um dos seus membros.

Bibliografia principal:

– CASTELO BRANCO, Camilo. “A Morgada de Romariz” em Novelas do Minho, 163-204. Porto: Caixotim Edições, 2006 (1ª edição)

– LOURENÇO, Eduardo. “Somos um povo de pobres com mentalidade de ricos” em O Labirinto da Saudade, 127-135. Círculo de Leitores, 1988