O que é o mal? De onde vem? Porque existe? Se Deus é bom, porque sofremos? Estas questões assaltam-nos a todos, mais cedo ou mais tarde. Ao longo dos séculos, os filósofos debruçaram-se longamente sobre elas e foram encontrando diversas respostas.
Contudo, para Levinas, filósofo de origem judia que atravessou o escândalo da 2.ª Guerra Mundial, definir a essência do mal ou a sua origem não é o aspecto fundamental deste problema. Profundamente marcado pelo horror do Holocausto, Levinas defende que tentar explicar ou justificar o mal é uma ofensa à vítima sofredora e que um mal como o Holocausto é um absurdo sem sentido que não tem justificação. Perante o mal e o sofrimento, a única coisa que importa é a compaixão pelo outro e o esforço por resgatá-lo da sua dor. O único sofrimento a que se pode dar sentido, diz Levinas, é a dor pelo outro que sofre, que deve impelir-nos a cuidar dele.
A abordagem de Levinas ao enigma do mal é sobretudo ética, mas permanece pertinente olhar para o mal dum ponto de vista ontológico, tentando encontrar a natureza do mal. Talvez não cheguemos nunca a uma resposta última e definitiva, como se fosse uma verdade científica (e é definitiva a ciência?), mas a concepção que tenhamos do mal certamente afecta a forma como lidamos com ele.
Para perceber como, passemos brevemente por quatro grandes tradições filosóficas sobre o mal (não necessariamente contraditórias entre si) e vejamos como estas diferentes visões podem influenciar a nossa resposta ao mal. Afinal, a filosofia pode ter implicações muito práticas na nossa vida.
1. O mal é uma ausência de bem: Esta é a perspectiva mais clássica, que remonta a Platão, S. Agostinho ou S. Tomás de Aquino. O mal não tem existência positiva, não é um ser e não foi criado por Deus. O mal é uma ausência do bem que devia estar no ser e não está, porque as coisas são finitas e imperfeitas. Isto não quer dizer que o mal não existe. Existe e tem efeitos muito visíveis e até dramáticos. Mas existe como carência de bem. Tal como a escuridão é ausência de luz, o frio ausência de calor e o buraco na camisola é ausência de tecido. O buraco na camisola não é tecido, mas existe e só existe no tecido. Sem tecido, não há buraco.
2. Existe uma força má e uma força boa: Esta é a concepção defendida pelo Maniqueísmo, que S. Agostinho começou por seguir na sua juventude, mas depois acabou por rejeitar. O mal não é uma ausência de bem, não é apenas um buraco na camisola. O mal é uma força ou um ser que se opõe ao bem e a Deus. A Guerra das Estrelas, que põe em confronto o lado bom e o lado mau da Força, pode ajudar a compreender esta visão.
3. No fim, o mal revelar-se-á bom: Este título é algo simplista, mas julgo que resume a ideia principal desta linha de pensamento. Nós, criaturas finitas e limitadas, não vemos o todo e então aquilo que nos parece mau pode, na verdade, ser bom. Aqui podemos encaixar Leibniz, que defendia que Deus criou o melhor dos mundos possíveis. O mal pode sê-lo para um indivíduo particular, mas não no todo. No todo, tudo o que acontece contribui para o bem global do Universo. Também Hegel pode ser introduzido nesta corrente. Para Hegel, a História avança numa dialética entre tese, antítese e síntese e o mal enquadra-se como processo necessário rumo ao Espírito Absoluto que triunfará no final. A larva tem de morrer, para que possa tornar-se numa bela borboleta.
4. O mal deve-se ao mau uso da liberdade humana: Estamos aqui na linha do mal moral, um nível diferente daquele em que estávamos nos três pontos anteriores. O mal existe e acontece porque o ser humano usa mal a sua liberdade e escolhe erradamente. Não escolhe necessariamente coisas más. Aliás, se subscrevermos a tese 1, não existem coisas totalmente más. Mas escolhe coisas boas na ordem inversa, como quem escolhe ver mais um filme, em vez de telefonar à avó com quem não fala há três meses.
Aqui chegados, podemos entrever quatro atitudes diferentes como reacção ao mal:
1. Se o mal é ausência de bem, devemos pôr bem onde ele falta. Se a camisola tem um buraco, cosemos com tecido. Se vejo alguém sofrer, procuro cobrir a sua carência.
2. Se o mal é uma força oposta ao bem, juntemo-nos ao combate do lado dos bons. Bem e mal digladiam-se eternamente e há que alistar-se nas fileiras do bem, numa guerra de proporções éticas (e épicas!). A tónica coloca-se em vencer ou eliminar o mal.
3. Se o mal concorre para o bem, conformemo-nos. Se o mal contribui para o bem global, aquele que sofre aceite, então, com paciência a sua dor e lembre-se que um bem maior há-de emergir. Numa atitude mais estóica, podemos mesmo manter uma distância crítica em relação a tudo aquilo que acontece e aceitar resignados o que o destino trouxer e não pudermos evitar, com vista a uma indiferença que reduz o sofrimento.
4. Se o mal é escolha do ser humano, cultivemos as virtudes. Se o mal resulta de um mau uso da liberdade e de dar prioridade ao que não é prioritário, então devemos apostar na educação e na prática das virtudes, para que, desejando o bem, saibamos onde encontrá-lo.
No fim de contas, o que é o mal? É difícil dizer e este breve texto não poderia responder definitivamente a uma pergunta que desde sempre inquieta o ser humano. No entanto, parece que a resposta que damos altera a nossa atitude face ao mal. Cabe agora a cada um fazer a sua exploração filosófica e percorrer os caminhos deste enigma.
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