“In memoriam” de Francisco, o Papa da Misericórdia

Saibamos estar à altura do legado de Francisco, reconhecendo a nossa dependência uns dos outros e exercendo a virtude da misericórdia, especialmente diante daqueles que são diferentes de nós.

 

A propósito de um seminário frequentado este semestre na Universidade Gregoriana sobre a Ética das virtudes proposta pelo filósofo Alasdair MacIntyre, resolvi transformar aquilo que seria um trabalho de análise de um capítulo (o décimo) do seu livro Animais Racionais Dependentes numa homenagem em memória do saudoso Papa Francisco. Fi-lo partindo de três citações deste capítulo e procurando evidência no Pontificado e Magistério do Papa que ilustrasse certos argumentos filosóficos do filósofo católico britânico.

1. “Compreender o sofrimento do outro como nosso é reconhecer esse outro como um próximo” e também que “eu poderia ter sido esse indivíduo” (p. 124 e 126).

Esta definição de misericórdia que MacIntyre nos apresenta baseia-se no estudo das virtudes de S. Tomás e está de acordo com a etimologia da palavra, ou seja, entrar na miséria do outro, tomando-a como sua. O mesmo acontece com um pai que sofre pelo sofrimento dos seus filhos. Foi o que fez Jesus diante da sua mulher adúltera: “a miséria do pecado revestiu-se da misericórdia do amor” (Misericordia et misera, 1). Assim faz Deus, cujo nome, segundo Francisco, é misericórdia: “Misericórdia é o nome de Deus e o seu modo de se exprimir e de exprimir o seu amor pelos homens” (Audiência Geral, 13 de janeiro de 2016). Assim fez o pastor Francisco que, na última semana da sua vida, em quinta-feira santa, visitou a prisão de Rebibbia e confessou à saída: “Porquê eles e não eu?”

2. “O exercício das virtudes associadas à misericórdia implica sempre um reconhecimento sincero da dependência. E é por isso que são virtudes que faltam àqueles cujo desconhecimento da sua dependência se exprime na sua falta de vontade de reconhecer os benefícios recebidos dos outros” (p. 125).

De acordo com MacIntyre, não há agentes racionais independentes que não sejam animais racionais dependentes. De facto, as virtudes que nos dispõem a tornarmo-nos racionalmente independentes devem ser consideradas em conjunto com aquelas que representam o reverso da medalha, nomeadamente as virtudes da “dependência reconhecida”. Em contraste com a “auto-referencialidade” (Discurso do Papa à Cúria Romana, 21 de dezembro 2020) e a autossuficiência do megalopsychos que Aristóteles propõe, um ser que esquece tudo o que recebeu e só se lembra do que deu, o Papa Francisco recordou-nos que a felicidade se encontra noutro lugar. No momento talvez mais sensível do mundo que o seu pontificado enfrentou, ou seja, em plena pandemia da COVID-19, a partir daquela corajosa solidão em plena Praça de São Pedro, afirmou categoricamente esta dependência, não como drama, mas como ocasião de graça, dizendo que “estamos todos no mesmo barco”, que “ninguém se salva sozinho” e que aquele tempo de provação podia ser um tempo de escolha: de “decidir o que conta e o que passa”. (Momento extraordinário de oração em tempo de pandemia, 27 de março de 2022)

3. As relações que são informadas pela virtude da misericórdia “estendem-se para além das relações mútuas (…) dos membros de uma comunidade na direção de relações de hospitalidade para com estrangeiros que passam e (…) incluem aqueles cuja necessidade urgente desafia os membros de tal comunidade” (p. 124).

MacIntyre apresenta a misericórdia como um “mínimo denominador comum” a todas as tradições e culturas, a pedra angular que une a humanidade. Esta perspetiva sobre a natureza humana vê-se, por exemplo, na reação “natural” e comum a todos os seres humanos quando “vêem uma criança cair num poço, e experimentam um sentimento de dor e sofrimento”. O desafio surge quando esta misericórdia nos leva a olhar com os mesmos olhos para o sofrimento vivido por aqueles que estão fora do meu grupo. Também nisto, Francisco foi um protagonista na “revolução da ternura”, fazendo-nos passar da hostilidade instintiva para a hospitalidade intencional. Em relação à catástrofe das mortes de migrantes no “cemitério” em que se transformou o Mar Mediterrâneo, Francisco disse na sua primeira viagem apostólica que “aqueles nossos irmãos e irmãs estavam a tentar sair de situações difíceis para encontrar alguma serenidade e paz; estavam à procura de um lugar melhor para eles e para as suas famílias, mas encontraram a morte. Quantas vezes aqueles que procuram isto não encontram compreensão, acolhimento, solidariedade! E as suas vozes elevam-se a Deus!” (Homilia durante a visita a Lampedusa, 8 de julho de 2023). Mais recentemente, escreveu, como parte do magistério social da Igreja, aquele a que Leão XIV, pela escolha do seu nome, se associou tão significativamente, que “a hospitalidade é um modo concreto de não se privar deste desafio e deste dom que é o encontro com a humanidade para além do próprio grupo” (Fratelli Tutti, 90).

Saibamos estar à altura do legado de Francisco, reconhecendo a nossa dependência uns dos outros e exercendo a virtude da misericórdia, especialmente diante daqueles que são diferentes de nós.

(Fotografia: Vatican News)