Ao saber da morte do Papa Bento XVI, como jesuíta em formação enviado aos estudos de Filosofia, senti-me movido a refletir sobre dois discursos que o “amado Papa” redigiu para os encontros com as comunidades académicas de Ratisbona (2006) e “La Sapienza” (2008), sobre a relação entre a Fé e a Razão.
Ambos os discursos atingiram um elevado grau de mediatismo, já que, no primeiro, as referências à jihad na propagação da fé islâmica levaram a uma violenta reação de repúdio pelo mundo Muçulmano. Quanto ao discurso a proferir na Universidade Romana, este não chegou a sair do papel, pelo facto de a conferência ter sido cancelada, devido à feroz oposição de um grupo de professores e alunos, defensores da “liberdade de pensamento” e da “tolerância”.
Se por um lado, estes eventos puderam desviar as atenções da riqueza dos discursos, certamente que foi suscitado o redobrado interesse da sociedade pelas palavras do então Papa. Tendo esta reflexão como principal objetivo recomendar a leitura integral de ambos os discursos – de linguagem clara e de extensão breve -, partilharei de forma despretensiosa os aspetos que mais marcaram o meu contacto com os textos.
Em primeiro lugar, despertou-me interesse o tom aberto e acessível dos documentos, próprio de quem “não procura impor de modo autoritário aos outros a fé”, mas ousa estabelecer um diálogo franco, olhos nos olhos, com a sociedade contemporânea, não deixando de estar verdadeiramente enraizado na sua existência cristã. Em vez de optar por uma linguagem marcadamente religiosa, Bento XVI desenvolve os seus argumentos numa base racional sensível ao auditório de estudantes e professores tendencialmente secularizado a que se dirige, demonstrando fluência no recurso ao pensamento de filósofos como Sócrates ou Rawls para sustentar as suas posições. Além disto, em representação da Igreja, além de bendizer muitos dos progressos no “desenvolvimento moderno”, apresenta-se com uma palavra a dizer sobre a realidade, a partir de uma “amadurecida sabedoria de vida”, aportando uma válida experiência ética, disposta a enriquecer o caminho da Humanidade, sem deixar de a incitar a “interrogar-se sobre Deus por meio da razão”.
Em segundo lugar, definindo a “sede de conhecimento” como a origem da Universidade, Bento XVI aponta desempoeiradamente a “verdade” como resposta a almejar perante as grandes perguntas da existência, sobre Deus e o “autêntico sentido do ser humano”. De facto, a verdade, mais do que esgotar a sede de conhecimento, transcende-nos, eleva-nos ao “bem”. Além disto, o valor da verdade é defendido como força social, única capaz de não sucumbir aos interesses e ao poder. Se denota, por um lado, um lastro contra cultural de trazer a verdade para o centro do debate, o Papa revelou também humildade e prudência ao não adiantar uma resposta definitiva. Antes, sugere um caminho conjunto de interrogação e “inquietude pela verdade, que remete continuamente para além de cada uma das respostas individuais”.
Em terceiro lugar, chamou-me a atenção a defesa do ideal da Universidade como lugar favorável onde se experimenta a estreita relação entre alunos e professores e em que, “não obstante as múltiplas especializações que por vezes nos tornam incapazes de comunicar entre nós, formamos um todo e trabalhamos no todo da única razão com as suas várias dimensões”. Não deixa de ser inquietante a denúncia que é feita ao rumo da Ciência e da Academia nos últimos séculos, que remete a Teologia para uma esfera minoritária e privada, prescindido do seu contributo para olhar a realidade e o Homem, e “cancelando” tanto que de valioso poderia ser refletido a partir da Tradição Cristã. À luz dos primórdios medievais da Universidade, Bento XVI reclama uma revalorização do binómio Filosofia-Teologia, disciplinas que, “sem confusão nem separação” entre si, representam um grande potencial de fortalecimento da razão humana. Com efeito, o olhar que ambas Filosofia e Teologia ousam lançar para questões essenciais (“donde venho”, “para onde vou”) qualifica as respostas que as ciências naturais e histórico-humanistas nunca alcançariam, se entregues meramente a si próprias. Antes, o refúgio da ciência em critérios meramente matemáticos e experimentais representa, além da exclusão do problema de Deus (e da fé), a desistência da verdade que é, assim, remetida para o subjetivismo. No fim de contas, dá-se uma redução dramática no campo de possibilidades do Homem, uma “autolimitação” da “vastidão da razão” e a “desagregação e fragmentação” das culturas.
Em quarto lugar, é assinalável o reconhecimento do Cristianismo como religião do “logos” (razão, palavra), por duas razões essenciais. Por um lado, para os cristãos, este “logos” é o próprio Deus que se faz Homem em Jesus de Nazaré. Por outro lado, o Cristianismo nascente emerge da “síntese entre a mensagem bíblica e o pensamento grego”. Na verdade, Bento XVI reporta-se à Filosofia Grega como terreno de onde brotou o Cristianismo, que se estabeleceu em diálogo persistente com as suas grandes questões. Sinalizando São Paulo como um exemplo paradigmático, este encontro entre Fé e Razão – que se dá em chave de inculturação – não ocorre como uma circunstância acidental na Igreja Primitiva, mas representa o modo de proceder constitutivo do ser cristão. Além disto, a centralidade do “logos” no Cristianismo pressupõe que a ação de Deus segue uma lógica amorosa, pelo que “não agir segundo a razão [– por exemplo, propagando a fé com recurso à violência -] é contrário à natureza de Deus”.
Por fim, e a título pessoal, fica-me a sensação de que o que sustenta a argumentação do Papa Bento XVI e motiva este apaixonado diálogo com as culturas contemporâneas é o seu amor pessoal a Jesus Cristo. E este amor, mais do que conduzir a uma imposição sobranceira e autoritária, impele-o a um anúncio erudito e fundamentado, livre e libertador. Esta profunda convicção, potenciada pela interação fecunda entre a razão humana e o dom da fé, encontra uma das suas mais belas expressões nesta frase de Bento XVI que, desde os tempos de descoberta vocacional e para o futuro, sempre me acompanhará: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo.” (Deus caritas est, 1)