Friedrich Nietzsche, como bem nos recorda Paul Ricoeur, é um dos mestres da suspeita que defende a vida no aquém – modelo marxista que defende somente a existência do mundo físico. Em Genealogia da Moral, Nietzsche, defende a existência de dois grupos de Homens: os fortes, i.e., aqueles que realizam os seus desejos (instintos vitais); e os fracos, i.e., aqueles que não conseguem vencer os seus desejos e, por isso, ressentidos, são os produtores da moral e da religião. Como estes não conseguem satisfazer os seus desejos, produzem uma outra realidade na qual o bem só se poderá alcançar após a morte. A morte de Deus é, pois, «(…) sinal de uma gigantesca mudança» (Lubac, 1961, p.51)[1]. A religião, para Nietzsche, cria e perpetua uma «moral de escravos», pois entende a religião e a fé como uma crueldade, um suicídio da razão, o sacrifício da única felicidade possível em prol de uma utopia.
Com a famosa expressão «morte de Deus» – que Nietzsche ousa proclamar na obra A Gaia Ciência, em 1882 – pretende-se inaugurar uma filosofia de vida cujo único horizonte possível é o dos antigos Gregos: pré-socráticos e sofistas; ou melhor dizendo: materialistas, relativistas e nihilistas. Nietzsche volta ao modelo de pensamento do eterno retorno no qual tudo o que existe permanece em constante mudança, assim deixa de existir uma verdade absoluta – à qual a religião dá resposta. O Homem deve reger-se pela sua razão, mas a razão para Nietzsche é a fonte dos seus desejos. Analogamente à seleção natural das espécies de Darwin em que são os mais fortes que vencem na natureza, na visão nietzschiana o mesmo corresponde à sociedade. Por isso se percebe, neste modelo de pensamento, que a vitória dos fracos é algo anti-natural. A religião, enquanto produto dos fracos, deve ser, por isso, algo a combater. Para este filósofo a «morte de Deus» traduz «uma opção», uma escolha do Homem. Porém, mesmo sem Deus é necessário que o Homem se supere, pelo qual emerge a noção do «super-homem». Na obra, Assim falou Zaratrusta, Nietzsche, defende a criança como o ideal da superação humana: a criança é o ser que embora vivendo na finitude cria a realidade que deseja.
Este modelo leva-nos para a distopia da obra O Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. Huxley cria um «mundo novo» regido pela ciência onde o modelo fordiano (de produção em série) impera. No mundo de Huxley vive-se numa alienação produzida pelos próprios alienados. Um mundo onde impera a razão face ao sentimento. Huxley imagina o tempo em que a ciência reina. Tal como Nietzsche também as personagens d’O Admirável Mundo Novo abertamente proclamam que mataram Deus para que a verdadeira civilização pudesse prosperar. Nesta realidade criada por Huxley a «morte de Deus» é o que diferencia os civilizados dos selvagens que moram nas reservas onde há ainda todas as superstições do mundo antigo. A obra de Huxley é um alerta. Huxley viveu numa passagem de era. Esta obra, de 1932, surge após o término da I Guerra Mundial e, no entretanto, assistia-se, paulatinamente, à emergência dos totalitarismos.
O jesuíta, Henri de Lubac, na obra O drama do Humanismo Ateu (1945), aceita a validade da crítica de Nietzsche, para o seu tempo histórico, que afirma que a alegria e austeridade do cristianismo antigo contrastam com a «salubridade, mediocridade e nebulosidade» do cristianismo.
Isto deve fazer-nos refletir acerca da validade da crítica que fazemos a fenómenos e práticas religiosas que nos nossos dias, individual e socialmente, acusamos de arcaicas e fundamentalistas – como sucede habitualmente com o Islão. Ou se, em vez de chamarmos a outros de fundamentalistas, por viverem os valores reais que a sua crença proclama, não seremos antes nós que estamos adormecidos, i.e., acomodados ao ateísmo e indiferentismo que governa a nossa sociedade? E Lubac afirma que os cristãos vivem um «cristianismo insípido (…) [que se encontra] enfraquecido, apático, paralisado.», uma «Religião divorciada da vida. Eis no que se transformou o Evangelho em nossas mãos, no que se transformou essa incomensurável esperança que se erguera sobre o mundo!» (Lubac, 1961, p.126). Não é esta crítica válida também para nós, no hoje em que vivemos?
Lubac vê, na verdade, estes ateísmos, defensores de um tipo de «Humanismo» como na verdade inumanos. Uma vez que, ao reduzirem o Homem a um ser puramente animal –que se guia pelo desejo (instintos vitais) – faz com que se quebre a noção do Homem que, à imagem de Cristo, se torne mais humano porque mais divino e mais divino porque mais humano. Noutra obra, Sobrenatural, de 1946, Lubac afirma que há em todo o ser humano um «desejo natural do sobrenatural» que faz com que o Homem busque constantemente a transcendência. Lubac defende que Nietzsche mata a esperança, ou melhor reduz a esperança a uma felicidade puramente imanente. Opondo-se a Nietzsche, Lubac diz que os ressentidos não são os crentes, mas os descrentes que por não conseguirem encontrar a transcendência no seu horizonte de vida.
No capítulo «O Espírito do Cristianismo» de O drama do Humanismo Ateu, Lubac defende a radicalidade da vivência cristã como a resposta necessária aos falsos humanismos. Viver o evangelho com «pureza e autenticidade», é só isso que devemos fazer: não precisamos nem de tirar, nem de acrescentar nada à fé no Evangelho – que é sempre a tentação do Homem – mas, somente, «(…) vivê-lo tal como ele é (…) Nada há a adaptar-lhe para o pormos a par da moda.» (Lubac, 1961, p. 128). Somos nós que temos que nos entregar a esta radicalidade. Entrega que só é possível reconhecendo que Deus é amor (1Jo 4, 8;16). Tal como no início da Igreja devemos comover o mundo que nos rodeia pela forma como vivemos e amamos. O nosso testemunho não passa por ficarmos fixos ao que fomos, mas partindo desse cunho identitário contemplar o caminho que nos espera com Fé, Esperança e Caridade. É no testemunho que reside a esperança, o testemunho dos verdadeiros valores do Evangelho:
Doçura e bondade, delicadeza para com os humildes, piedade para com os que sofrem, recusa de meios perversos, defesa dos oprimidos, devoção obscura, resistência à mentira, coragem de chamar ao mal pelo seu nome, amor da justiça, espírito de paz e de concórdia, abertura de coração e pensamento no Céu (…) Assim demonstrará que essa “moral de escravo” constitui uma moral de homens livres, e que só ela criará homens livres. (Lubac, p. 1961, 130).
[1]LUBAC, Henri de. O Drama do Humanismo Ateu. Lisboa: Porto Editora, 1961, pp. 39-52, pp. 39-52 e 123-130.
Imagem: Cherry Laithang [Unsplash]