Em Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana (1809) [1], F.W.J. Schelling pretende conciliar duas realidades aparentemente inconciliáveis: sistema e liberdade. Isto é, a conciliação, por um lado, entre um sistema racional fundado num conceito de realidade que possui uma estrutura coerente e inteligível e, por outro, a existência da liberdade humana individual e de um Deus pessoal. Dito ainda de um modo mais simples: a conciliação entre determinismo e liberdade (e juntamente com esta a possibilidade do mal).
Toda a existência requer uma condição [2], para que possa ser uma existência real e, mais concretamente, pessoal. De facto, diz-nos Schelling, que até mesmo a existência de Deus, sem esta condição ou fundamento, não poderia ser uma existência pessoal, isto é, Deus não poderia ser pessoa. Contudo, Este possui esta condição em Si e não fora de Si e, por isso, não pode abolir esta condição sem extinguir-se a Si Próprio, podendo apenas dominá-la pelo amor e subordiná-la para Sua glorificação (398).
Porém, este fundamento não é Deus considerado em Si Mesmo, isto é, enquanto existente, mas somente como o fundamento da Sua existência: a Sua natureza, que, embora seja distinta, é, no entanto, inseparável Deste (358).
Já o fundamento de toda a criatura (livre ou não-livre, toda a criatura), não se encontra em si própria, mas em Deus, pois nada pode existir fora de Deus. Mas como pode então a criatura ser independente de Deus? A única hipótese viável será considerar que toda a criatura tem o seu fundamento naquilo que, em Deus, não é Ele Mesmo, quer dizer, naquilo que é o fundamento da Sua existência (359).
Esta condição não suprime, de nenhum modo, a independência da criatura, nem tão pouco a sua liberdade. Dependência significa, aqui, o ser consequente de algo, que determina a sua origem, mas não o seu ser [3]. A dependência, como nos diz Schelling, não é uma forma de subjugação: onde há um filho, deve haver também um pai, mas o filho não está obrigado a ser aquilo que o seu pai é [4]. Consequentemente, todo o indivíduo orgânico existe, mediante um outro e é, enquanto tal, dependente deste no que toca ao seu devir, mas não quanto ao seu ser.
Devemos ter em mente que, para Schelling, existência é revelação, isto é, a realidade, tal como Schelling a compreende, consiste num acto de desdobramento do ser originário: Deus. Em causa está o facto de uma unidade simples estar sempre condenada a permanecer sozinha: o silêncio da penumbra pode apenas ser dissipado com a ajuda de um outro, ou seja, de uma alteridade. Contudo, esta relação não é reflexiva (ao modo hegeliano) – uma relação em que uma pessoa pode ser ela própria pelo seu reflexo no outro (como num espelho), mas sim uma relação não-reflexiva, na qual dois seres se encontram unidos, permanecendo, no entanto, distintos: a condição do verdadeiro amor. São semelhantes na medida em que Deus só se pode revelar a um outro semelhante a si: um ser livre que age segundo a sua própria lei; são diferentes pois cada ser é completo em si mesmo.
Eis que aqui reside o mistério do amor: porque apesar de cada coisa ser um todo não pode, no entanto, existir sem um outro, caso contrário, se cada coisa não fosse um todo, mas apenas uma parte, não haveria amor, mas apenas necessidade. Sem esta oposição, a existência é muda: um mero monólogo destinado a morrer na penumbra da noite. A existência articula-se entre os movimentos de atracção e oposição de dois seres, semelhantes, mas diferentes, unidos por um vínculo originário: a vontade do amor que deseja elevar a criação à unidade.
O acto de revelação de Deus dá origem à luz e ao bem. No entanto, neste acto, a possibilidade do mal também surge no horizonte. Porém, o mal não foi considerado neste acto (401). Deve-se também acrescentar, contra aqueles que acusam esta vontade de possuir alguma índole maligna, que se Deus, por receio de provocar o mal, não se tivesse revelado, o amor não existiria e, portanto, o mal teria já triunfado (ibidem). De facto, sem o mal, Deus não existiria (entenda-se existir como o revelar-se a um outro) (402).
A liberdade divina exclui a possibilidade de escolha: pois a escolha implica uma distinção de possibilidade e de actualidade que não ocorre em Deus (397-8). Toda a vida tem um destino e está submetida ao sofrimento e ao devir. Como tal, Deus é igualmente sujeito a isso, dado que, para se tornar pessoa, separou o mundo da luz do mundo das trevas (403).
Toda a criatura possui um duplo princípio, que não é senão o mesmo, embora visto de perspectivas diferentes (385): um princípio obscuro, a vontade cega da criatura, a sua ipseidade, e a luz do entendimento e do amor, que eleva à unidade a vontade cega da criatura.
Contudo, no homem existe todo o poder do princípio das trevas e, ao mesmo tempo, toda a força da luz, isto é, neste a diferença entre estas duas forças é incomensuravelmente maior do que nas outras criaturas. (362). Cabe ao homem elevar-se à luz da compreensão e ser transfigurado nela, de modo a tornar-se algo superior, nomeadamente espírito – a união entre os princípios acima mencionados: luz e trevas. (ibidem).
Se a identidade de ambos os princípios fosse tão indissolúvel no homem como em Deus não haveria distinção, ou seja, Deus como espírito não seria revelado. A mesma unidade que é inseparável em Deus deve, portanto, ser separável no homem (374).
A possibilidade do mal reside, precisamente, na separabilidade destes princípios (363), pois, segundo a ontologia do amor de Schelling, um ser só se pode revelar no seu oposto (373). Como tal, o homem é chamado a agir e pode escolher o mal ou o bem, mas não pode optar por não o fazer, pois tem de se revelar necessariamente – algo que é próprio da sua essência (374).
Podemo-nos perguntar como devemos decidir, entre os dois princípios, sem cair em contingência ou determinismo (381)? Schelling procura uma necessidade superior, equidistante da contingência e da determinação externa. Tal necessidade reside na essência do homem enquanto indivíduo actuante – uma essência acima da causalidade e dos efeitos do tempo. Uma unidade absoluta que é ontologicamente anterior a cada acção particular (384).
Contudo, como podemos reconciliar o eterno e o temporal se não existe uma ligação aparente? A resposta reside no facto de cada acto ser uma unidade absoluta de liberdade e determinabilidade – um acto de acordo com a própria natureza do homem, pois «…só é livre aquilo que age segundo as leis da sua própria essência e não é determinado por mais nada, nem nele, nem fora dele» (ibidem).
Como tal, um indivíduo perverso age de acordo com a sua lei interior, ou seja, comete o mal de uma forma positiva (não por arbitrariedade ou falta de perfeição ou mesmo sob compulsão), ao contrário do que fora defendido até então (385).
Assim, o homem é livre da mesma forma que é determinado: a liberdade e o destino fundem-se e tornam-se idênticos, pois o homem é o seu próprio acto – um acto realizado desde a eternidade no início da criação. O homem toca o início da criação e é, portanto, através dele, também um livre e eterno início de si mesmo, elevando-se acima do que foi criado (386).
O mal não está, propriamente, fora do homem, em carne e osso, ou mesmo nas paixões que o atormentam, mas no fundo do seu próprio ser (ibidem) que se efectiva quando o homem ultrapassa os limites impostos pela sua natureza – os limites conferidos por Deus –, e se impõe como um centro para si mesmo e para os outros, sobrepondo a sua vontade particular à vontade universal de Deus.
Assim, o início do pecado acontece, quando o homem se assume como um fundamento auto-criador pervertendo a ordem original dada por Deus, impondo a sua própria regra e ordem (390), causando uma desorganização em si mesmo e fora de si mesmo (365).
Mas, como pode o homem afastar-se do mal? A possibilidade de uma conversão já está incluída na natureza eterna do homem. O seu agir, tal como ele, enquanto ser moral, não se modifica, mas é eterno por natureza. O homem é, por isso, originariamente, acção e actividade e, como tal, não possui um ser anterior e independente da sua vontade (388).
Tal é o propósito da criação: que o bem deve ser elevado das trevas à realidade para viver para sempre com Deus. Assim, com a expulsão do mal do bem, o mal é revelado como completa irrealidade (404-5), pois o mal só tem realidade em oposição a algo e não em si mesmo (409).
[1] SCHELLING, Friedrich Wilhelm Joseph von. Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana – e os assuntos com ela relacionados. Trad. por Carlos Morujão. (Lisboa: Edições 70, 1993).
[2] Por condição ou fundamento devemos entender toda a limitação que oferece resistência ao nosso querer, todos os elementos ou circunstâncias das nossas vidas que se impõem a este querer, mas que são, ao mesmo tempo, possibilidade de realização da nossa liberdade e, como tal, de uma existência pessoal.
[3] Schelling propõe-nos, nesta obra, uma ontologia da vontade e, como tal, deve-se entender ser, como aquela vontade originária que é eterna e está acima de toda a causalidade e toda a acção temporal.
[4] O filho herda do seu pai, um passado genético, maneirismos e uma educação, e, embora, esteja limitado, de diversos modos, por muitos destes elementos, não se encontra completamente determinado por estes, sendo perfeitamente livre para seguir um caminho diferente do de seu pai.
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