É tudo uma questão de método

Enquanto que para os filósofos da Antiguidade o mundo era metaforicamente como um animal, na Modernidade é visto como um relógio. Para perceber este mecanismo, devemos olhar para a própria forma como olhamos.

A Era Moderna define-se, em traços largos, como o período histórico decorrido entre a queda do Império Bizantino (1453) e a Revolução Francesa (1789). “Em traços largos” significa que muitos autores do início da Era Moderna ainda podem ser considerados medievais; e que muitos autores do início do Período Contemporâneo ainda podem ser considerados modernos. Isto porque, como desde logo se vê, o critério de definição da época não é estritamente filosófico; naturalmente, nele também não encontraremos apenas um género de pensamento ou movimento filosófico.

Dito isto: (1) é comummente aceite que neste período se dá uma passagem generalizada da Metafísica à Epistemologia (escusa de pegar no dicionário, que já lá vamos), e (2) é um facto histórico que neste período nasce a Ciência Moderna. O que procurarei explorar nos próximos parágrafos é precisamente a relação entre esses dois eventos.

A Metafísica é a disciplina filosófica que se preocupa com o ser “enquanto ser”. Uma forma de compreender o que isso queira dizer (e sem recorrer ao Latim) é comparar o tema metafísico àquele da Biologia. A Biologia estuda os seres “enquanto vida”: uma pedra terá muito pouca relevância para o biólogo (pelo menos enquanto biólogo), e um cão só lhe interessará na medida em que é um ser que tem vida biológica. Na Metafísica, por sua vez, a ideia é mais ou menos a mesma, mas o critério deixa de ser a “vida” e torna-se a própria “actividade de ser”. Algumas questões predominantemente metafísicas seriam: «O que é aquilo que é?», «Como é que um ser subsiste através da mudança?», «Porque é que existe alguma coisa em vez de nada?».

É importante dizer que, nas Eras Antiga e Medieval, a Filosofia não se resumia à disciplina da Metafísica. Na verdade, o que não faltava era disciplinas filosóficas: Ética, Política, Psicologia, Física, Epistemologia, Lógica, etc. No entanto, a abordagem a todas estas áreas era uma abordagem predominantemente metafísica; na Era Moderna, torna-se uma abordagem predominantemente epistemológica. O exemplo mais claro talvez seja o da Ética: para Aristóteles, a questão era «qual a natureza do Bem? Qual a natureza da Felicidade?» Já para Kant e para Stuart Mill, no entanto, a questão de fundo muda: «como posso saber se uma acção é boa ou má?».

 

Falemos de Epistemologia. A Epistemologia é a disciplina da filosofia que se preocupa com o conhecimento. «O que é o conhecimento? Podemos conhecer? Qual é a origem do conhecimento? O que podemos conhecer? Como podemos conhecer?» são algumas das perguntas fundamentais.

Enquanto disciplina filosófica, todos já ouvimos falar de “racionalistas” e “empiristas”, do «Penso, logo existo» de René Descartes e da «Tábua rasa» de John Locke. Neste período, porém, a Epistemologia deixa de ser apenas uma disciplina filosófica: trata-se de uma nova forma de ver o mundo. Desde os gregos que se diz que a filosofia começa com a estranheza diante do mundo; mas, na Era Moderna, as perguntas que esta estranheza levantava eram diferentes. Já vimos o exemplo da Ética, mas o caso mais marcante é o do âmbito científico.

Mas, antes de mais, porque se dá esta passagem? É uma boa questão. Indicarei apenas duas possíveis respostas: primeiro, as correntes cépticas que a diversidade de opiniões entre os metafísicos gerou; segundo, as descobertas cosmológicas, nomeadamente a luneta de Galileu, que puseram em causa o sistema ptolomaico. Assim, tanto a “Nova Ciência” abriu as portas ao avanço da Epistemologia, como a Epistemologia potenciou a “Nova Ciência”.

Retenhamo-nos apenas no primeiro ponto. O leitor terá já ouvido dizer (possivelmente já o terá ele mesmo dito) que, em Filosofia, cada um diz o que quer e ninguém se entende. Esse é um risco, e um risco sério. Essa crítica, no passado, levou alguns filósofos a dizer que nada se pode conhecer com certeza; e, no presente, é uma das principais causas do descrédito da Filosofia. Como, então, podemos conhecer alguma coisa com segurança? Usando a expressão de Husserl, como podemos fazer da Filosofia uma «ciência de rigor»? Para os modernos, esta pergunta é um verdadeiro desassossego e, através da abordagem epistemológica, meteu em cena a discussão sobre o Método.

Se queremos conhecer o mundo – e queremos muito! – qual é o método mais apropriado? Foi em 1637 que Descartes publicou a obra Discurso do Método, mas já antes, em 1620, Francis Bacon lançara as bases para o método científico com a sua obra Novum Organum (“Novo Instrumento”). Já não era suficiente, para os filósofos, olhar para o mundo e perguntar o que é, mas surgiu a necessidade de olhar para a forma como olhamos. 

Nesta “demanda pelo método”, um marco importante terá sido a distinção, iniciada em Galileu (enfim, em boa verdade, a coisa já vem de Demócrito) e consolidada em Locke, entre qualidades “primárias” e “secundárias”. Uma qualidade primária é uma característica independente do observador e quantificável; já uma qualidade secundária seria uma sensação produzida no mesmo. Uma qualidade primária do Sol, por exemplo, seria a sua forma (quase) esférica; uma qualidade secundária seria a sua cor (pessoas diferentes podem ver cores diferentes). Esta distinção abriu a porta para uma divisão entre conhecimento objectivo e subjectivo.

 

Outra forma de colocar a questão seria dizer que, no Período Moderno, das quatro causas aristotélicas (as quatro razões pelas quais uma coisa é ela mesma: causa material, causa formal, causa eficiente e causa final – uma bela história para outro artigo), apenas a causa eficiente tem lugar na Filosofia Moderna. Dito em português, isto significa que, ao olhar o mundo, a única pergunta que tem lugar é o «como?», não o «porquê?» nem o «para quê?». Nesta linha, é também comum ouvir-se dizer que, enquanto para a Antiguidade o mundo era metaforicamente como um animal, na Modernidade é visto como um relógio.

Esta “mecanização do Universo” não é, ainda, uma manifestação de secularização: autores como Descartes, Locke e Leibniz, Newton e Galileu, eram cristãos. Ainda assim, é evidente que as mudanças que trouxeram abriram a porta ao aparecimento posterior de algumas “filosofias sem Deus”. Afinal, se o mundo já não é um animal, Deus já não é a alma que lhe dá vida; se o mundo é um relógio perfeitamente sincronizado, Deus é (diria eu, “apenas”) o relojoeiro perfeito. Não é um ambiente secular, os autores ainda são crentes; mas está aberta a porta do «desencantamento do mundo» de que fala Max Weber.

 

 

Foto: Fabrizio Verrecchia , Unsplash