É o fim do mundo, outra vez! (Ou talvez não!)
A filosofia tem a fama de ser a coisa mais inútil do mundo. Mas a verdade é que não se pode viver sem filosofia, pela simples razão que não se pode viver sem uma visão sobre a vida. Facilmente se conclui que a filosofia é tanto mais útil, quanto mais ajudar a ganhar uma perspectiva sobre a realidade.
Por volta do ano de 1844, em Röcken, na Alemanha, nasceu um menino que deixou uma visão muito interessante na história da Filosofia; que não sendo do agrado de muitos, formulou conceitos (vontade de poder, transmutação dos valores, etc.) que continuam a deixar um bom conteúdo para reflexões sérias, sobre a existência humana e o sentido da vida. O seu nome é Friedrich Nietzsche.
Metamos uma questão muito concreta e atual, diante do pensamento deste menino: como viver a pandemia? O conceito-chave para compreendermos a sua filosofia à luz da pandemia é a vontade de poder. Portanto, a nossa tentativa de reflexão será enlaçar este conceito filosófico de Nietzsche com esta realidade, para formar uma perspetiva.
É certo que esta pandemia desastrosa já nos fez refletir bastante, até agora, sobre o modo como vivemos, a sua sustentabilidade e as suas possibilidades. A pandemia não é uma bênção nem uma maldição, mas mudou-nos a vida, pelo menos durante os anos da sua duração, e é verdade que infelizmente provocou a morte de muita gente. Nenhum de nós escolheu vivê-la; simplesmente vivemos as consequências de uma asneira que aconteceu na China e a pandemia estendeu-se rapidamente por todo o mundo.
Nietzsche defendia que a vontade é uma força humana orientada numa direção determinada, capaz de levar o sujeito a fazer grandes e boas coisas nesta vida. E, também na perspectiva de Nietzsche, esta força tem de enfrentar as adversidades que a contrariam: isso é o que é próprio da vida. Ora, neste sentido de afrontar as adversidades, percebe-se que Nietzsche vê na vontade a possibilidade de uma demonstração de força que edifica alguma coisa, de onde se segue a conhecida expressão de Nietzsche: “vontade de poder”.
A pandemia é uma expressão própria da vida, é uma adversidade como outras. E, sendo assim, a questão que para Nietzsche podemos colocar é: como a enfrentamos? Como a vivemos?
Duas coisas da perspetiva de Nietzsche podem alimentar uma boa reflexão sobre esta pandemia: a vida não é sempre nossa amiga (e daqui poderíamos começar a falar do problema do mal) e que a vontade é a força humana capaz de construir alguma coisa na adversidade.
O facto de Nietzsche ter muito claro que a vida é uma realidade completamente insustentável deve-se muito à influência de Schopenhauer. Estamos a falar de um autor para quem as tragédias gregas eram a expressão mais evidente da experiência da vida, onde grandes males se abatiam sobre pequenas e frágeis pessoas; contudo pessoas que tinham as suas convicções muito claras e que manifestavam abertamente o seu caráter, por mais duras que pudessem ser as consequências. Para Nietzsche, quando um mal chega, a questão é a de “aprender a enfrentá-lo”, porque a pandemia está aí, para ficar por algum tempo, e a vida tem de continuar. E encontrar a forma de viver a adversidade é um ato de sabedoria e de virtude. Por isso, fica a pergunta: como posso viver bem a pandemia, que me arrasa e arrasa o mundo? Certamente com prevenção, responsabilidade social e cuidado sanitário; mas alimentando a reflexão filosófica, mais do que querer fugir com a imaginação para o futuro sem pandemia, a questão é a de encontrar o caminho para viver bem a adversidade.
Talvez uma das perguntas mais importantes, que o seu humano tenha feito sobre a Terra, através dos tempos, seja “o que é que eu quero?”. Mas, para Nietzsche, esta pergunta não é sobre aquilo que eu quero numa felicidade abstrata e metafísica, cheia de “afagos do coração”. A pergunta faz-se no aqui e agora da vida, enquanto vivo a pandemia. Para Nietzsche, a resposta não poderia ser nunca: “que a pandemia passe”. Mas teria de ser a resposta sincera à pergunta: “o que quero, vivendo a pandemia, que se calhar não passará?”. Porque a pandemia acontece numa vida, na qual tu não és o dono dela. E, portanto, o que devemos decidir é entre viver este tempo e fazer dele lugar de graça, ou fugir deste mundo, perdendo anos de vida, esperando que a pandemia passe. Por isso, o convite de Nietzsche não é o de esperar um tempo melhor, mas fazer com que este tempo seja o melhor. Diría Nietzsche: estás habituado a que as coisas te corram sempre bem, a encontrar sempre resposta; parece que a pandemia te fez duvidar disso. É fácil imaginar Nietzsche a dizer: FAZ ALGUMA COISA! Demonstra a tua força: quiçá não venhas a viver o mar de rosas outra vez.
Para Nietzsche, vivemos uma vida que não escolhemos viver e que, para nós, é determinada por aquilo que queremos e escolhemos fazer. Ninguém nos prometeu um mar de rosas e vemos que para muitas pessoas a vida é exatamente o oposto disso; no entanto, é uma vida de oportunidades para construir qualquer coisa de bom, uma vida propícia ao exercício da virtude e à demonstração da força construtiva da vontade do sujeito humano, sempre irrequieto e com desejo de mais qualquer coisa.
Concluindo, o pensamento de Nietzsche é um verdadeiro despertador, no sentido em que não nos deixa adormecer na ideia de que a adversidade é à medida de cada um. Não, não é verdade. A adversidade da vida é superior às nossas forças e é enfrentando-a que se pode construir qualquer coisa que nos faça crescer. A questão é para onde apontamos a nossa vontade, a fim de podermos fazer alguma coisa desta vida, que nem sempre sorri para nós.
Foto: Ystallonne Alves, Unsplash