Joseph Ratzinger abre o seu livro Introdução ao Cristianismo com um olhar sobre o ser humano perante a questão de Deus. Para Ratzinger, a dúvida é um elemento presente, nunca resolvido, na vida do fiel e do ateu. O fiel experimenta a «insegurança da sua própria fé e o poder aflitivo da incredulidade presente dentro da sua própria vontade» (p. 29) mas só «pode realizar a sua fé sobre o oceano do nada, da tentação e da dúvida» (p. 31). A certeza não é um elemento possível para o fiel, mas também não o é para o ateu, que «terá de suportar as incertezas da ausência de fé» (p. 32), visto que «o “talvez” é a grande tentação de que ele não consegue fugir e na qual também ele precisa experimentar a irrecusabilidade da fé dentro da própria recusa» (p.33).
No texto reparei que o autor não explora a situação da pessoa agnóstica, mas deduzo que para o autor, esta pessoa assume a dúvida, precisamente pela condição intrínseca ao ser agnóstico.
Agora, imaginem comigo o diálogo entre um crente e um ateu acerca da fé.
Cenário 1: A aceitação e manifestação da dúvida, como condição natural e intrínseca ao interlocutor, transmite a humildade da verdade própria daquele que comunica. Creio que para aquele que escuta a dúvida do outro, essa mesma manifestação de fra(n)queza pode ser um convite a um diálogo aberto, franco, menos defensivo, nivelado. Aquele que se apresenta com dúvidas, apresenta-se ao diálogo a partir da exposição de si mesmo, como é. Escolheu, como ponto de partida, conversar sem armas, de coração aberto, próprio de quem não é senhor da sabedoria ou recluso das suas próprias ideias. Dá um voto de confiança, e expressa na sua atitude uma frase não pronunciada: “Apresento-me a ti, como sou”.
Cenário 2: O diálogo que nasce de dois interlocutores, crente e ateu, que se apresentam, respetivamente, com certezas de fé e certezas da sua recusa, é um diálogo que vive da disputa de ideias mas não da verdade dos dois que dialogam. Dois monólogos, de argumentos e da demonstração da capacidade argumentativa pessoal, mas não uma comunicação de pessoas. E, por conseguinte, no diálogo aparecem, não os interlocutores como são, mas dois oponentes. Podemos imaginar os oponentes como militares de armas levantadas ou advogados de acusação que trocam alternadamente de papel, ou dois que assumem alternadamente o papel de professores, tentando ensinar o adversário ignorante. Estes papéis são fruto da atitude defensiva opcional, do escondimento da dúvida.
Creio que a decisão do escondimento da dúvida pessoal é uma escolha a partir do receio/medo de ser arrasado no diálogo, pelo outro. Admito outras hipóteses, como a crença de que é pela manifestação de provas que se dialoga entre crentes e ateus. Independentemente do caso, o escondimento é uma atitude defensiva. E parece-me que é em vista à nossa libertação que Ratzinger afirma que «talvez seja justamente a dúvida aquilo que protege ambos da reclusão exclusiva no seu próprio eu» (p. 33).
A dúvida, neste caso, é um elemento fundamental deste diálogo, pois é parte integrante do assunto – fé – e da resposta humana – aceitação/recusa. Aquele que esconde a sua dúvida, omite-se e assume alguém que não é.
A dúvida é precisamente o que nos aproxima, e por conseguinte, humaniza. O fiel, por maiores confirmações espirituais que tenha no seu caminho de fé, compreende o ateu precisamente pela dúvida que o habita, ainda que não a valide como escolha final. O ateu, por maior descrédito confirmado que tenha à fé, pela dúvida que o habita, compreende que o fiel possa viver na fé.
Na minha experiência pessoal, no diálogo com amigos, crentes e não crentes, sobre a fé, reconheço que as conversas que tiveram por base também a dúvida, foram mais pessoais e livres, e trouxeram como fruto a aproximação e compreensão do outro, a partir da sua própria história.
Imagem: Michael Carruth (Unsplash)
RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo. Lisboa: Principia, 2005