Nota prévia: este texto foi escrito em ambiente académico como caso prático para uma cadeira de Ética. Ainda que faça uso de certos factos noticiados e por todos conhecidos, é uma ficção que tem como objetivo aplicar os diferentes sistemas éticos à vida do dia a dia e, neste caso em particular, à vida política nacional.
Diário de Maria
Ministra Adjunta do XXIII Governo Constitucional
[excertos de 31 de outubro a 7 de novembro de 2023]
___
31 de outubro [utilitarismo]
Hoje foi um dia grande. O orçamento de Estado do Governo de que faço parte foi aprovado na generalidade! Do discurso do meu colega João Galamba no encerramento do debate de hoje, ficou a ecoar o entusiasmo com o “maior investimento estrangeiro desde a Autoeuropa”.
A maioria absoluta tem sido um descanso… O que seria avançar com o projeto do Data Center de Sines dependendo do BE e do PCP? Num só projeto, tantas prioridades alcançadas: a coesão territorial, a transição ecológica, a inovação digital, a criação de emprego, …
Devo reconhecer o meu embaraço com a intimidade entre alguns membros do Governo e os empresários responsáveis pela obra em Sines: sempre em almoçaradas, num registo muito pouco institucional, como se fossem os melhores amigos. Algo me diz que não é bom que em Portugal as influências contem mais que as regras. Se “não há almoços grátis”, deve ter havido alguma contrapartida.
Mais tarde, em conversa descontraída com os meus secretários de Estado, pude depreender que sabiam de financiamentos de empresas ligadas ao Data Center, beneficiando as estruturas autárquicas do PS em Sines. Mais, que havia já conversações avançadas no sentido de apoiar o partido em futuras eleições, dando seguimento aos negócios em curso.
Tomada pelo espanto, fui prontamente serenada por um assessor, recém-chegado depois do sucesso como “jotinha”: “Todos fazem isto, doutora! Como acha que governou o PCP em Loures? Como pôde o CDS sobreviver no Alto-Minho? Como explicar a hegemonia do PSD na Madeira? Temos é de ser discretos. Aliás, é o nosso dever garantir o maior bem-estar para o maior número de pessoas.”
É verdade que grandes projetos pedem cedências e sacrifícios, mas será que o que é justo depende apenas do bem gerado pelas consequências das nossas ações? Será que a moralidade de uma ação política corresponde à mera pesagem entre benefícios e custos associados?
Algo em mim me diz que estamos, como partido e como regime, a silenciarr a consciência moral em proveito de um cálculo de consequências económicas e políticas.
____
1 de novembro [ética kantiana]
Finalmente, um feriado! O dia de ontem esgotou-me, mas hoje tinha-me comprometido a ir à missa. Com a quantidade de trabalho em mãos só consegui participar na Solenidade de hoje já ao final do dia!
Além de ter recebido alguns olhares reprovadores – certamente pelo facto de uma socialista como eu ter Fé e ir à missa -, não pude deixar de notar o tom da homilia. Em dia de todos os Santos, não estava à espera de um apelo tão rigoroso e fechado ao dever. Fez-me lembrar a Catequese da minha infância em Oliveira do Hospital, como se a Fé ficasse acumulada na cabeça em forma de preceitos a cumprir, sem passar pelo coração: “um bom cristão não deve matar”, “um santo não rouba”, “mentir é negar o próprio Deus”.
O cúmulo de tudo foi a apologia da santidade de vida, à maneira de imperativo: “Um santo age de tal forma que a máxima que preside às suas ações se possa tornar lei universal”. Serão estes imperativos exclusivos dos santos ou dos cristãos? A alturas tantas, o padre dizia que qualquer “pessoa de boa vontade” deveria proceder assim, em obediência ao dever.
Apesar da fragilidade da minha Fé, esta abordagem parece-me formalista e rigorista. É muito fácil para os padres evocar imperativos, mas a verdade é que não passam de enunciados triviais com muito pouca aplicabilidade no dia a dia, quanto mais para quem trabalha na política!
Uma ministra não se pode reger por regras rígidas, mas deve saber responder à diversidade de circunstâncias que encontra. E será que as normas do dever são suficientes para escolher na hora em que duas opções políticas entram em conflito? Como obedecer ao dever, quando tenho de optar entre ser fiel ao rumo seguido pelo Governo no qual sirvo e denunciar práticas ilícitas generalizadas como as que ouvi ontem?
O padre de hoje não teria dúvidas, mas eu tenho…
___
5 de novembro [lei natural/consciência moral]
Hoje participei numa reunião na sede do PS. Qual não foi o meu espanto quando a Comissão Política do partido indicou o meu nome como cabeça de lista às Eleições Europeias do próximo ano.
Saindo, ainda atordoada, do Largo do Rato, notei o movimento que se gerava à entrada da Capela do Rato. Maria João Avillez, histórica jornalista, recebia com um abraço Sebastião Bugalho, jovem comentador político. Aproximei-me e percebi que aquela era a primeira conversa do ciclo “E Deus em nós?”. Cativado por tal cenário, arrisquei entrar, discretamente, e sentei-me na última fila.
A conversa foi amena e estimulante, com revelações de parte a parte e a declaração do entrevistado de que “precisamos de gente sem medo de defender a Igreja”. Este inciso remeteu-me para S. Tomás Moro, o chanceler inglês martirizado pela fidelidade à sua consciência e à doutrina Católica, perante a conduta rebelde do Rei Henrique VIII. Moro defendia o “caminho oblíquo” para entrar nos ciclos corruptos de poder, transformando-os pelo exemplo.
Por outro lado, o tema “Deus em nós” atingiu-me como provocação à minha Fé, à boleia de S. Tomás de Aquino. Se, de facto, Deus existe e nos criou, devemos, como suas criaturas, ter em nós – no nosso íntimo – alguma marca que nos defina à sua imagem e semelhança. Se existe uma lei eterna, seremos dela participantes mediante uma lei natural.
De seguida, tocou-me a referência ao Concílio Vaticano II, que declara que “a consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (Gaudium et Spes, n.º 16). Que maneira revolucionária de olhar para a Fé e para o impacto que pode ter na vida em sociedade! Tão diferente da “fé de primeira comunhão” que conservava desde os tempos da Catequese em Oliveira do Hospital.
O que teria este apelo a dizer à minha consciência? Quais as consequências de me pôr à escuta, arriscando encontrar Deus dentro de mim? Será que isso mudaria os critérios da minha ação e os meus objetivos na política?
___
7 de novembro [responsabilidade moral]
Hoje vivi o dia mais sombrio desde que sou ministra. O primeiro-ministro demitiu-se na sequência da suspeita da sua intervenção nos negócios do novo Data Center de Sines. Aquele parágrafo da Procuradoria-Geral da República não lhe deu outra opção.
Já fui notificada para amanhã prestar declarações em Tribunal, sobretudo depois de se terem realizado buscas no Palácio de S. Bento e por se terem encontrado milhares de euros no escritório do chefe de gabinete do primeiro-ministro.
Todo o Governo está em xeque e o meu futuro político hipotecado.
Neste momento de confusão, invadem-me as figuras do padre, do meu jovem assessor, e dos Santos Tomás – Moro e de Aquino – evocados na Capela do Rato.
Por um lado, inclino-me a seguir o caminho insensível de dizer a verdade sem rodeios, sem considerar verdadeiramente o objeto, a intenção e as circunstâncias desta ação, seja o meu envolvimento neste Governo ou a minha responsabilidade diante do país. Por outro, habita-me uma pulsão pragmática, de quem conhece os modos de proceder sombrios da realpolitik e “joga” com eles para maximizar o Bem Comum.
A noite promete ser longa. Mas, no meio desta escuridão perturbadora, brilha tenuemente uma luz interior, como que desafiando-me a percorrer o insondável
caminho do diálogo silencioso que se dá na consciência. Neste impasse, escutar esta voz que aponta para algo além de uma mera inclinação subjetiva é o único meio para agir com consciência, em liberdade e responsavelmente.
Seguindo Moro e Aquino, se a consciência é norma de moralidade, ninguém pode decidir por mim: estou condenada a decidir. Ser livre é escolher sem ser coagida por ninguém, não sendo escrava das minhas paixões e determinando-me na integralidade daquilo que sou.
Assim, todo o meu ser se inclina a ser responsável, isto é, a responder: aos meus anseios mais profundos, a partir desta circunstância de suspeição; ao voto de confiança dos portugueses no PS e à missão de governar que me foi confiada; e à frágil contingência do financiamento ilícito do PS e de membros do governo, que abalou todo o país.
No fim do dia, fala mais alto a minha Fé. Ainda que frágil, ganhou vida nova a partir deste diálogo sincero com Deus. Mesmo que não seja fácil universalizar uma lei natural que nos torna participantes da lei eterna, não busco um consenso sobre o que é a natureza humana, mas um fundamento para poder agir moralmente, em consciência.
Assim encontrada, acompanhada e confiada, não mais temo o peso de uma obediência cega ao dever ou a pressões políticas utilitaristas. Sinto-me livre para agir segundo o “mais íntimo que o meu íntimo”, para revelar o que sei sobre o financiamento em causa, as circunstâncias dos governantes visados no negócio e a intenção política do Governo de apostar em Sines – que não deixou de ter a sua sustentação, mesmo que alguns quisessem beneficiar pessoalmente com isso.