Estamos em época de férias, um tempo ideal para viajar e conhecer novas realidades. Surge-nos, porém, o desafio de preparar a viagem. Consumimos guias e vídeos turísticos enquanto sonhamos a nossa viagem: visito este sítio sobrelotado ou aquele outro que ninguém conhece? Pago mais um pouco para ir de elevador ou subo a montanha a pé para ter uma experiência mais “autêntica”? Visito o museu que simula e explica tudo sobre a cultura local ou visito as ruas sujas daquela cidade? Procuramos incansavelmente a viagem mais autêntica possível, mas como é que isso se faz?
Para responder à questão, baseei-me no livro A Sagração da Autenticidade do filósofo Gilles Lipovetsky (Edições 70) a fim de apresentar algumas atitudes do “homo authenticus” (p. 15), i.e., daquele que tem a autenticidade como critério ético que define a felicidade. Utilizarei o seguinte critério inaciano para definir a medida dessas atitudes: “tudo pode ser bom tanto quanto nos ajude à nossa verdadeira felicidade”. Assim, deixo 3 atitudes a ter em conta no planeamento de uma viagem, balizadas pelos respetivos extremos:
1. Escolher complementos artificiais tanto quanto nos ajudem a saborear a totalidade da experiência. Por exemplo, uma ponte ou um elevador podem-nos levar a sítios que não poderíamos alcançar sozinhos, mas quando não estamos dispostos a comer mal e alimentos novos, a caminhar muito e por sítios desconhecidos, a apanhar frio e chuva, poderíamos, em alternativa, ter ficado no conforto do sofá a ver vídeos sobre esses locais. Pelo contrário, a simplicidade e sobriedade de meios, apesar de serem incómodas, poderão ser portas para a surpresa e para a relação interpessoal!
2. Escolher sítios que preservem a originalidade do local tanto quanto isso não “disneylandize” a experiência. O turismo pode promover a manutenção e renovação do que é antigo, mas, por vezes, a reconstrução demole a realidade e transforma-a num mero parque de diversões, numa “montra identitária” (p. 312) para o apetite fotográfico dos turistas. A experiência torna-se tão mais apetecível, mais confortável, mais folclórica, mais assética e mais perfeita que pretende ser mais verdadeira que a própria verdade. Destruímos assim todos os elementos perturbadores e acabamos por perder o contexto e a realidade. Experimentamos uma hiper-realidade virtual onde só pode existir prazer. Mas o desconforto é condição de vida e não aceitá-lo é não viver autenticamente. Podemos aprender muito, por exemplo, ao experimentar a dureza de caminhar sem destino pelas ruas pobres de uma cidade ou de visitar um campo de concentração como Auschwitz.
3. Escolher ser viajante, não turista, tanto quanto não sejamos egocêntricos. O turista segue a rotina igual a todos os outros, mantém-se na sua bolha confortável e descomprometida, observa passivamente e tira fotografias para mostrar que cumpriu o seu programa. Por outro lado, o viajante, em vez de seguir as multidões segue o seu próprio caminho, envolvendo-se ativamente no ambiente que o rodeia, partilhando a sua vida com outros e ouvindo-os atentamente. Um extremo desta atitude seria um viajante individualista que detesta outros viajantes, querendo tudo para si e procurando “ser diferente dos outros” por mero capricho. Essa atitude centrada em si, isola-o dos outros e esquece que a autenticidade também vem do carácter único da relação pessoal onde duas pessoas se cuidam e deixam cuidar mutuamente.
A título de exemplo, partilho uma história pessoal de uma viagem à China, num dia em que preferi conhecer pessoas em vez de visitar monumentos famosos. Para isso, peguei no mapa do país, escolhi uma província que tinha bom clima e minorias étnicas, e apontei um lugar ao acaso, sabendo apenas que tinha umas casas e um rio. Depois de um longo caminho cheguei a esse ponto e não encontrei nada. Sentei-me à beira do rio, rezei, e fiz a experiência inesquecível e fundante de não me sentir sozinho.
A fome fez-me procurar quem me desse de comer e dormir. Conheci pessoas muito hospitaleiras e, mais tarde, fui convidado para uma festa local (recordada na fotografia do artigo). Enquanto vivenciava os sabores e histórias que partilhavam comigo, senti a grande alegria que existe no “dar e receber”, próprio dos verdadeiros irmãos, porque, afinal de contas, somos todos humanos.
Viajar é uma escola onde aprendemos a ser viajantes na própria vida. Todas estas atitudes se aplicam ao nosso quotidiano. Afinal de contas, como planeamos a nossa vida? Evitamos tudo o que envolva “sair do nosso sofá” tão confortável para ir ao encontro do outro? Não arriscamos ir por caminhos desconhecidos apesar de os desejarmos? Vivemos em realidades virtuais onde tudo tem de ser perfeito e não há espaço para as limitações, para as feridas, para o sofrimento, para amar e deixarmo-nos ser amados? Será que o telemóvel nos impede de estar inteiro com o outro? Até que ponto não temos uma parte de nós alienada, como turista, que cumpre apressadamente a sua rotina e vive sem profundidade ou sentido o que faz?
Se, por um lado, é justo querermos viagens mais autênticas, não poderemos sonhar a nossa vida como a viagem mais autêntica de todas? Por que não olhar para a vida como uma grande viagem onde assumo toda a realidade: as minhas alegrias, esperanças, trabalhos e sofrimentos e a partilho alegremente com os outros?