“Outra vez nesta sala / Mais uma a ver se vou falar / Sobre esta dor que me cala”. Foi com estes versos – os primeiros do recém lançado álbum da banda lisboeta, “Subida Infinita”, – que os Capitão Fausto se apresentaram na mais conceituada sala de espetáculos do Minho, o Theatro Circo, no dia 4 de maio. Tomás Wallenstein, o vocalista, vestido de branco como tela a colorir pelo jogo de luzes que as canções iam sugerindo, começou ao piano, lado a lado com Domingos Coimbra no baixo, Salvador Seabra na percussão e Manuel Palha na guitarra. A compor o sexteto de músicos que formam esta digressão, contaram com Fernão Biu, nos sopros, e Miguel Marôco, nos teclados.
Por alguma razão, as letras e as melodias destes amigos de Lisboa conseguem encontrar sintonia com a vida daqueles que os ouvem e seguem. As dores de crescimento a propósito da entrada na idade adulta, a tristeza de um amor que deixou de ser correspondido ou o vazio que a partida de alguém especial representa são motivos simultaneamente sinceros e universais para se dar, como se deu, uma tão notável comunhão entre palco e plateia. Nada como seguir o mote dado pelo tema de abertura do álbum e do concerto: “Num sítio onde a malta se possa juntar / Fazemos a festa / Com gente cheia desta tristeza / Há-de haver festa / Até se for p’ra ‘tar a chorar” (“Muitas mais virão”, #1).
Foi mesmo “lá no Minho” (“Há sempre um fardo”, #7) que os Capitão Fausto recordaram anteriores passagens por este “cantinho”, de onde guardam memórias de grandes noites de partilha. Esta foi mais uma. Apesar da imponência da sala, nada impediu o pacto tacitamente estabelecido entre artistas e ouvintes sobre o modo de habitar aquele serão: depois de uma parte mais “baladeira”, em que sentados apreciamos calmamente aquele espetáculo de som e luzes (um voto de louvor para a produção); seguiu-se uma segunda parte mais “dançante”, em que, sem grandes pudores, da plateia aos balcões, todos se distenderam em alegre dança e canto.
Contando 15 anos de êxitos e de grande popularidade junto de um público variado, o concerto teve o condão duplo de apresentar o novo álbum e de recuperar os temas que têm marcado um percurso de grande solidez e versatilidade, desde os estúdios de Alvalade e em bom português. Por um lado, cumpriu absolutamente o objetivo de partilhar a novidade deste álbum, pautado por um certo misticismo nostálgico de quem se dispõe a subir à montanha para cantar as dores e os amores da vida (“Subida Infinita”, #10). Por outro lado, foi fascinante presenciar um espetáculo de tal forma harmonioso que conseguiu incluir temas dos já quatro álbuns da banda, com influências tão díspares que, pela escuta, se podem tentar adivinhar: Arctic Monkeys, Samba ou, quem sabe, os coros dos Beach Boys. Destaco o potencial criativo dos músicos posto em evidência no tema “Santa Ana”, do primeiro álbum da banda (Gazela, 2011). Sustentados pela linha simples do baixo de Domingos – comodamente sentado a contemplar o génio dos companheiros – deram azo à sua mestria instrumental, sem tempo e sem freio: Salvador, espírito batuqueiro indomável por momentos liberto das restrições rítmicas; e Manuel, o polivalente do groove que deixa em aberto a dúvida sobre o seu ofício – se toca enquanto dança ou se dança enquanto toca.
Mesmo que não tivesse sido pedida pelo baixista da banda, cuja imagem de marca é o aceno sorridente e cordial de palheta de mão, a “maior ovação da noite” teria de ser para o protagonista ausente: Francisco Ferrari, o ex-teclista que ainda contribui para o álbum “Subida Infinita”, mas que entretanto abandonou o conjunto. A comoção da partida do “totem, coluna e epicentro do furacão” harmónico da banda, como confessou Tim Bernardes no Rock in Rio 2019 no Brasil, mais do que explicada, foi interpretada em “Nuvem Negra”, #9, cujos últimos versos ficaram a ecoar naquela noite de primavera: “É p’ra melhor se mal aqui tu estavas / Não há melhor razão p’ra querer partir / Vais à procura do que mais amavas / Mas ficas perto, não nos vamos despedir”.
E, por falar no impacto que as amizades têm na nossa vida, como não referir a relação da banda com Tim Bernardes, o “cantautor” paulista que, a solo ou integrado na banda irmã brasileira “O Terno”, vai acompanhando o caminho (a Subida) dos seus amigos portugueses? Tendo gravado a balada “Cantiga Infinita”, #8, a meias com Tomás Wallenstein, abriu assim caminho para que o vocalista dissertasse livremente sobre a amizade, o dom mais precioso que há na vida, “que nos acompanha até à morte” e que, sugeriu ele, perdurará depois dela, infinitamente.
Com o tempo bem contado, até no que aos encores diz respeito, ainda houve tempo para um duo sublime que deu o balanço para s despedidas, entre as teclas de Marôco e os sopros de Biu, elaborando sobre um tema jazzístico familiar aos ouvidos da sala (era tal a cadência da mudança entre saxofone, clarinete e flauta transversal ao longo do concerto, que não posso precisar qual dos instrumentos interpretou Fernão Biu naquele momento caído do Céu).
O que é certo é que a última etapa daquela “Subida Infinita” se deu em tons primaveris, entre os movimentos próprios do amor: a paixão e o permanecer. Primeiro, “Lentamente” (A Invenção do Dia Claro, 2019) trouxe-nos a novidade que só o primeiro amor pode dar: “Nesta primavera trouxeste o calor / (…) Sempre tão sincera, meu amor / Que tanto me dás e pouco pedes pr’a ti”. Por fim, esse olhar quiçá inocente foi complementado pela maturidade de um outono que teima em querer chegar, mas que só no permanecer em verdadeira amizade poderá ser atravessado: “Amanhã / Morre a primavera sem ninguém notar / (…) Vim perguntar / Porque é que a pica não voltou? / Anda muito mais difícil / Do que quando isto arrancou / Longa é a subida e não vai dar / Com cada um pra seu lado” (“Nunca nada muda”, #4).