Há por aí quem diga que ler livros de Fantasia é um escape à realidade ― talvez tenham razão. Ainda assim, escapar nem sempre é algo errado. Poderemos julgar um prisioneiro por pensar em algo mais que a sua cela [1]? Fará sentido criticar o nosso próximo por pensar em algo mais que a sua dor? Não é justo pedir a um doente que não pense na cura; porém, será para ele uma questão de vida ou de morte não se fechar na vida que teria, mas abrir-se à vida que ainda tem. É este o papel da Literatura Fantástica como a vêem C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien, bem conhecidos pelas suas obras As Crónicas de Nárnia e O Senhor dos Anéis ― deixar-nos escapar das mãos do quotidiano, para lá regressarmos mais tarde, prontos, alegres e com um novo olhar. E isto tem tudo a ver com a Esperança.
Apuleio, poeta romano nascido no segundo século da nossa Era, escreveu o primeiro registo conhecido do chamado mito de Cupido e Psique. Nele, conta-nos a história de Psique, uma princesa mortal tão bela que o povo a adorava no lugar de Vénus. A deusa, invejosa, exigiu o sacrifício da jovem pelas mãos de seu filho, Cupido. E teria a princesa morrido, não tivesse a sua beleza cativado o jovem deus. Contra a vontade materna, Cupido resgata e desposa Psique, com a condição de esta nunca ver o seu rosto. Persuadida pela invejosa irmã, a princesa acaba por quebrar esta condição e é entregue ao desígnio da deusa Vénus, que exige dela quatro trabalhos inalcançáveis por qualquer mortal. A beleza de Psique, porém, sempre a proveu dos aliados necessários a estas demandas. Neste mito ― e o mito foi a primeira forma da Fantasia ― vemos ressoar a dor de Psique nos castigos, a sua esperança de liberdade e o resgate que lhe chega por amor. Um pouco de paciência, caro leitor, e já aqui voltaremos.
Clive Staples Lewis, também conhecido como Jack, nasceu em Belfast, a 29 de Novembro de 1898, e morreu em Oxford, a 22 de Novembro de 1963. Professor de Literatura nas universidades de Oxford e Cambridge (o que não é nada pouco), escreveu múltiplas obras, tanto de valor académico como ficcional. Na sua autobiografia, Surpreendido pela Alegria, Lewis confessa-se um amante de Fantasia desde a sua juventude, conciliando numa só pessoa o rigor analítico (até mais sofisticado do que o da sua época e local) e a paixão pelo Fantástico ― aquilo que ele mesmo parece identificar, na sua obra A Experiência de Ler, com a parte de criança que Cristo nos chama a preservar.
Dito tudo isto e feitas todas estas apresentações, eis que proponho um livro. Escrita em 1956, esta Obra pode ser ― se o leitor o permitir ― um óptimo companheiro de viagem para este (des)confinamento. Em No Reino de Glome: Até que tenhamos rostos [2], o autor reconta o antigo mito de Cupido e Psique ― aqui está ele de novo! ―, cristianizando o seu enredo. Apesar de ter sido o seu último romance ― e, segundo o próprio autor, também o mais maduro ―, o tema acompanhou Lewis desde o seu tempo de estudante, o que incluiu o antes e depois da sua conversão ao cristianismo. Assim, ao recontar este mito, Lewis decidiu-se a transformar a esperança pagã em pura esperança cristã. Regressaremos a este ponto.
Nesta obra que proponho, o mito é-nos contado por Orual, irmã mais velha de Psique e rainha de Glome, em duas partes. A primeira, podemos dizer, corresponde à interpretação que Lewis faz do mito grego; já a segunda, à sua plenificação. Por outras palavras, nesta saborosa leitura encontraremos, na primeira parte, a vida, levada com mais ou menos caridade, mais ou menos fé… mais ou menos esperança; na segunda, encontraremos o juízo final. Por fim ― e o que constitui uma exposição mais directa da obra ―, na primeira parte encontramos uma mortal que julga os deuses; na segunda, os imortais que julgam a humana. Vivemos no primeiro, mas este segundo juízo é a nossa Esperança. Deixemos a Obra falar:
«Agora já estou velha e não temo a fúria dos deuses. Não tenho marido nem filhos, nem tão pouco amigos através dos quais me possa prejudicar. (…) Estando, por todas estas razões, livre de receios, irei escrever neste livro tudo aquilo que uma pessoa que é feliz não se atreveria a escrever. Vou acusar os deuses, especialmente o deus da Montanha Cinzenta. Vou contar tudo o que ele me fez, como se estivesse a apresentar a minha acusação perante um juiz».
Assim começa a primeira parte, em que os factos são narrados e justiça é decretada. Mas será a justiça aquilo por que anseia o coração do Homem? Ao falar do tema da esperança, em Cristianismo Puro e Simples, Lewis identifica-a com um constante olhar para o Reino de Deus sem evasão à realidade; e diz: «A maioria das pessoas, se tivesse realmente aprendido a olhar para o seu próprio coração, saberia que quer, e quer profundamente, algo que não se pode ter neste mundo». E acrescenta: «Há muitas coisas deste mundo que no-lo oferecem, mas nenhuma cumpre a sua promessa».
A certo ponto do enredo, Orual, comparando-se a Psique, acha-se feia e cobre o rosto. Não se ficando por aí, vemo-la, a pouco e pouco, cobrir a alma com mais e mais máscaras. Essas, é claro, não poderão cumprir a sua promessa… e de nada lhe valerão quando for chegado o momento de se encontrar face a face com os deuses. Ao longo da sua vida, Orual pergunta-se porque guardam os deuses silêncio, mas eis que percebe a resposta: «como podem encontrar-nos cara a cara até que tenhamos rostos»?
Não a justiça, mas chegarmos à presença de Deus sem medo, embora com temor; sem desculpas nem pretensões, antes com confiança e convicção; sem máscaras, mas com o nosso próprio rosto ― voilà, c’est ça a nossa esperança cristã.
[1] Cf. TOLKIEN, J.R.R.. On Fairy Stories.
[2] Till We Have Faces: A Myth Retold na versão original.