Questão importante: o que torna o amor possível? Isto é: sob que condições nasce?
Todos os modos diferentes de experimentar o amor assentam na mesma condição de possibilidade. Procurá-la é procurar o que há de comum entre o amor de um apaixonado, o amor de uma mãe e um filho, o amor de dois amigos íntimos ou a afeição que descobrimos para com aqueles que nos são familiares. Ou até o amor pela pátria. Mesmo a níveis diferentes (é claro), o que lhes é comum?
Referi acima que o amor tem condições. Pode parecer estranho: fomos habituados a crer que o amor é incondicional. Mas, um olhar atento descobre que, como qualquer outra experiência humana, o amor (humano) não é incondicional. É uma resposta a alguém (ou algo!) que nos atinge e convida. Há algo que o desperta em nós: esse “algo” é a tal condição. O que é, então?
É uma “promessa de enraizamento – de encontrar uma casa, ou fundamentação para a nossa vida”¹, uma promessa de ter um lugar nosso no mundo. O amor é resposta a essa promessa que alguém (ou algo) nos faz, conscientemente ou não, e que vai ao encontro da nossa profunda necessidade de sermos enraizados, de ter a nossa existência bem firmada e fundamentada, preenchendo (mas não em toda a sua medida) a nossa carência, débil e radical.
Se o amor é resposta a uma promessa de enraizamento, só podemos experimentar uma promessa pela esperança: confiamos que tal promessa será cumprida, mesmo temendo, na incerteza, que ela venha a ser frustrada ou ilusória. O amor envolve a fé de que o amado (aquele/a ou aquilo que nos promete enraizar) dará firmeza, vitalidade e sentido à nossa existência. Contudo, na esperança, como companheiro da confiança está o temor. Não é um medo intenso e angustiante, mas antes a consciência de podermos não ter esse lugar nosso sem que ele nos seja oferta. O temor é uma reverência amorosa para com quem amamos, um reconhecimento humilde do valor e do peso de alguém amado.
Esta tensão é interior à nossa vida. Confiança e temor, expectativa e desilusão, comunhão e solidão, graça e custo: todos estes binómios dançam entre as linhas entrançadas da nossa existência. Aquele que espera geme por quem espera! Por isso S. João da Cruz escreveu que “o gemido é anexo à esperança”². Não há adesão a uma promessa sem que algo de nós gema pelo seu cumprimento. E uma promessa visceral como o amor, “assim como se eleva à vossa altura/ e acaricia os ramos mais frágeis,/ também penetrará até às raízes/ sacudindo o seu apego à terra.”³
Responder a essa promessa lançando-nos a ela não é adesão a uma certeza, mas joga-se entre a confiança e o temor que a própria promessa exige. Aderir a ela é ser desenraizado de onde estamos agora, para receber um lugar novo no futuro. No entretanto, que é onde a nossa vida se joga, não nos escapamos a ficar de raízes suspensas à espera de solo, experimentando o temor de não ter onde as firmar. É este o temor que existe no amor enquanto resposta esperançosa a uma promessa.
E se a promessa se frustra, se perdemos ou nos afastamos, por várias razões, desse lugar nosso, não é apenas um lugar que perdemos: faltamo-nos a nós mesmos. Há algo da nossa identidade que foi entregue a essa promessa que nos é tirada. Não é bem como se fossemos tirados de casa, mas antes como se a nossa morada fosse arrancada para longe de nós…connosco lá dentro.
Mas se vemos que a promessa se vai cumprindo (nunca totalmente, porque é promessa), então conhecemos como o processo de sermos enraizados – de ser amados – nos faz florescer, graças a alguém que dá vitalidade, verdade e validade à nossa existência.
Não creio que este seja um texto pessimista. Creio apenas que é irreal a ‘crença’ de que até os laços mais fortes são incondicionais. Se assim fosse não seria necessário cuidá-los, e a delicadeza seria tão válida como a brutalidade. O que é humano será sempre incompleto. Mas, por ser imperfeita – que quer dizer inacabada – a vida humana é uma constante dependência mútua, onde nos revelamos promessas de enraizamento uns aos outros. Obras incompletas que se constroem mutuamente na beleza da confiança e do temor.
Ainda assim, talvez possamos esperar que chegue uma promessa em que o temor foi já expulso. Em que o exílio é apenas aparente, porque já essa promessa nos deu uma morada. Se há tal promessa, se há tal amor que é habitação certa, talvez ele não seja daqui. E talvez aqui não seja o verdadeiro lugar das nossas raízes.
¹ Simon May, «Love: a new understanding of an ancient emotion» (Nova Iorque: Oxford University Press, 2019), 40.
² S. João da Cruz, «Cântico Espiritual», em Obras Completas (Carmelo de S. José – Fátima: Edições Carmelo, 1986), 582.
³ Khalil Gibran, «O Profeta» (Braga: AO, 2016).
Imagem: Daniel Hodgkins [Unsplash]