Amabilidade, Virtude do voluntário

Quando a pandemia nos feriu, houve quem semeasse esperança na ferida. Como um semeador que lança uma semente no sulco aberto da terra. Talvez na ferida a esperança viesse a germinar.

O Virar a Página nasceu como uma resposta urgente às carências provocadas pelos primeiros tempos de confinamento, em 2020, quando a pandemia revelou as carências de muitos, bem como a vontade de ajudar e a solidariedade de tantos outros.

Outras ajudas se juntaram para que, além das refeições, muito mais fosse possível: prendas para crianças no dia mundial da criança, bens e electrodomésticos quando necessários, mobília, roupa. E, além dos bens, também companhia, tempo, conversa e rasgos de novas oportunidades em várias vidas.

Foi a este projecto que a Comunidade Pedro Arrupe se quis juntar.

As barreiras esbatem-se e às mãos que estendem um saco de comida, por vezes, abrem-se as vidas como portas de uma casa. Uma casa tímida, por vezes desabituada à convivência estranha. A verdade é que se foi criando o hábito da amizade. A par disto (e que pedrada no charco do orgulho!) ganha-se consciência da falta de paciência própria, quando não se “recebe” a gratidão romantizada. Mas por que razão as mãos que dão se acham merecedoras de gratidão?

Em boa verdade, a amabilidade é uma virtude que se pratica em luta com o ego. Já Aristóteles, na Ética a Nicómaco, se referia à amabilidade como uma virtude. Aquela virtude que está no meio, entre a irascibilidade – que é excesso – e a apatia – que é de menos. Assim, a amabilidade não é uma atitude supérflua, mas o modo amável de consolar e se compadecer com o outro, que se concilia com a justa indignação face às carências provocadas por circunstâncias injustas.

É na Fratelli Tutti que o Papa Francisco nos introduz a amabilidade como a atitude que liberta homens e mulheres de contextos de opressão, de angústia, da crueldade de circunstâncias injustas. Contrapõe-na ao individualismo que nos faz ver os outros como “obstáculos para a agradável tranquilidade própria” e “incómodos”, o que “se acentua e atinge níveis exasperantes em períodos de crise, situações catastróficas, momentos difíceis, quando aflora o espírito do salve-se quem puder” (Fratelli tutti, 222).

A atitude da amabilidade, ao contrário de qualquer tipo de assistencialismo, não é “nem uma atitude superficial ou burguesa” (Fratelli tutti, 224). A verdadeira amabilidade, porque é caridade, não tende a ser instagramavel. É uma virtude que nasce e se adquire no confronto real e lúcido com o outro. É a virtude que permite ser um peregrino na vida do irmão ou da irmã, porque se atravessa a diferença em direcção ao encontro, e não um turista em vida alheia, que apenas olha o outro como lugar em que o ego é confortado.

Um voluntariado bem pode ser um ginásio para esta virtude que só se ganha oferecendo-se.

 

Foto: Matt Collamer, Unsplash