Acho que sou ateu, mas espiritual

Na sequência do “GOD TALKS”, partilho a minha participação sobre a “Identidade religiosa”

Na sequência do “GOD TALKS”, noite de partilha e escuta organizada pelo CREU-IL sobre a temática da Identidade, partilho a minha participação sobre a “Identidade religiosa”. Tomo como título do presente artigo a provocação que me foi lançada para explorar um tema tão fascinante e amplo como este.

I – “Deus está morto” ou “está de volta”?

Ambas as expressões, a primeira de Nietzsche e a segunda de Thomas Halik, dizem muito da sociedade ocidental em que vivemos e do modo como tende a olhar para o fenómeno religioso. Tentaremos descrever em que medida nem uma nem outra alternativa correspondem à realidade, na medida em que Deus sempre esteve “por cá”. Simplesmente, deve ser buscado e desvelado de formas eventualmente impensáveis.

É inegável o processo de secularização em que vivemos, isto é, a progressiva perda de relevância da Igreja no espaço público no conjunto das sociedades ocidentais, que se vão autonomizando face às Religiões tradicionais. Perante este facto, o secularismo afirma-se como uma tentativa de vincar de tal forma este processo que chega a querer prescindir totalmente do contributo religioso para compreender “o que é o Homem”. Regista-se um refúgio numa razão meramente secular e prescinde-se do contributo que a Fé pode dar no sentido de alargar a Razão (“São as duas asas com as quais o Ser Humano se eleva para a verdade”, S. João Paulo II). Vemos exemplos deste fenómeno na postura da República Francesa face à liberdade de expressão religiosa. 

Por outro lado, são hoje dignos de registo os movimentos em sentido inverso, de uma revalorização do transcendente, em que, apesar de abandonarem certas formas religiosas, parece que regressa uma força espiritual em forma de sede, perante o desgaste e a insatisfação que a vida que levamos nos trazem. O regresso aos mosteiros para experiências temporárias de imersão ou a proliferação de respostas imediatas baseadas num sincretismo mágico ilustram a diversidade destas expressões que teimam em afirmar-se.

No que respeita à filiação religiosa, é significativo o número de pessoas que se assumem como nones (16% em 2010 segundo um estudo apresentado adiante), isto é, que não se inserem em alguma família religiosa, seja porque se desidentificaram com a sua experiência passada ou porque sentem que as raízes tradicionais e culturais já são irrelevantes para definir a sua experiência espiritual. No entanto, é assinalável que dentro dos “nones”, além dos ateus, existe uma fatia relevante de buscadores de sentido, de pessoas que reconhecem a sua dimensão espiritual, mas duvidam ou hesitam em aderir a alguma proposta. Halik apelida-os, no seu mais recente livro A Tarde do Cristianismo, de seekers.

Se olharmos para os dados fornecidos pelo Pew-Templeton Global Religious Future Project (2010) encontramos perspetivas interessantes sobre a evolução global da identidade religiosa até 2050. Destacaria a estabilidade do Cristianismo (nas suas múltiplas expressões) como Religião maioritária, mas à qual progressivamente se aproximará o Islamismo em nítida ascensão. Por outro lado, as estimativas deste estudo apontam para um decréscimo dos “desfiliados” (ou “nones”), o que nos pode fazer pensar até que ponto os “seekers” encontram resposta para as suas inquietações em novas religiões ou naquelas que o secularismo tenta abafar.

II – O diálogo enraizado como modo de proceder

Em 1995, a Companhia de Jesus, reunida na sua 34ª Congregação Geral, definiu o diálogo inter-religioso como um traço fundamental da sua missão evangelizadora. Este diálogo estabelece-se tendo presente três pressupostos fundamentais: o Espírito de Deus trabalha no coração de todos os homens; o verdadeiro diálogo assume um enraizamento na própria identidade; a evangelização é sempre inculturada, visto que ilumina as culturas com quem convive e deixa-se iluminar por elas. 

O “diálogo enraizado” configura o modo de proceder de quem se dispõe a aprender enquanto caminha em conjunto com toda a Humanidade aberta ao Transcendente. Não é difícil encontrar potencial de aprendizagem para o Cristianismo no contacto com as diferentes tradições religiosas que connosco convivem. No limite, este movimento de arriscar o diálogo, bem identificado, com aquilo que é diferente está esboçado no brasão que a Província Portuguesa   da Companhia de Jesus adotou: é o nome de Jesus que nos define e é justamente essa identidade que nos leva a assumir o que tantas tradições religiosas – simbolizadas pela estrela de David ou a Lua Crescente – revelam de Deus.

No Judaísmo, encontramos um povo de irmãos mais velhos, que nos ensinam a centralidade da Palavra – a Lei e os Profetas – que Jesus não veio “revogar, mas completar”. Do Islamismo aprendemos a importância da devoção no louvor a Deus e nos exercícios de piedade que se abrem à presença de Deus ao logo do dia. 

Mais a Oriente, seriamos mais pobres se não valorizássemos as intuições filosóficas e perceções místicas do Hinduismo, ou se não bebêssemos de valores como o espírito de contemplação e o serviço desinteressado à humanidade de que o Budismo é testemunho tão eloquente.Mesmo dentro de aqueles a quem chamamos “ateus”, que a terminologia de Halik nos apresenta como “nones”, certamente não podemos ficar indiferentes à exigência intelectual que o contacto com eles nos sugere. Tal como nos exorta S. Pedro, também estes nossos irmãos – pela sua busca existencial desconcertante-, nos impelem a estar “prontos a dar as razões da nossa esperança”, na medida em que uma Fé desprovida de racionalidade e base doutrinal facilmente se dissipa num espiritualismo ocioso.

De forma a contribuir para um diálogo profundo, a CG 34ª oferece quatro pistas orientadoras que devem ser assumidas sequencialmente e de acordo com o papel de cada um:

  1. O diálogo da vida”, enquanto disponibilidade para partilhar as alegrias e sofrimentos com quem é diferente de mim. 
  2. O diálogo das obras”, mediante o qual a união de esforços, partindo da diversidade e na persecução de objetivos comuns, sintoniza os corações de quem colabora e promove o desenvolvimento integral de quem é servido.
  3. O diálogo da experiência religiosa”, pelo qual a partilha das riquezas espirituais de cada tradição expande os horizontes do fenómeno religioso, ao nível da linguagem, do imaginário e da perceção da totalidade da realidade.
  4. O diálogo dos intercâmbios teológicos”, tendo em vista um desejável aprofundamento da compreensão de cada tradição religiosa, através do trabalho de uma minoria qualificada que, para lá chegar, necessita de consolidar o intercâmbio espiritual.

Tendo em vista aplicar estas coordenadas à realidade religiosa que enfrentamos no Ocidente, não me parece difícil encontrar paralelo na vida de cada um para:

  1. a experiência de cultivar sinceras amizades com pessoas que frequentam realidades eclesiais diferentes da minha, o que tem revelado ser um grande travão para a maledicência, a lógica desimplicada das trincheiras e o fomento da desunião na Igreja;
  2. o testemunho inflamado da Ir. Irene Guia, aci, e da equipa inter-religiosa de que fazia parte, no trabalho humanitário desempenhado num campo de refugiados do Sudão, própria de quem se descentrou e deixou elevar;
  3. o exemplo do P. Pedro Arrupe, sj que soube integrar a prática meditativa do Zen na espiritualidade fundante que o levou a servir a Igreja de modos tão diversos, seja como missionário no Japão ou como Superior Geral dos Jesuítas em Roma;
  4. o risco de desperdiçarmos o Sínodo, instrumentalizando-o como uma disputa entre cadernos de encargos, mais ideológicos do que espirituais, próprio de quem quer queimar etapas, chegar a soluções instantâneas, esgotar as respostas sem explorar as perguntas em atitude de escuta orante. 

III – Uma ponte estreita entre abismos

Tentando descrever o exigente exercício do diálogo, num mundo e numa Igreja cada vez mais polarizados, Tomas Halik fala-nos de uma “ponte estreita” entre os “abismos” da descrença dogmática e do fanatismo religioso. Mais visualmente, há uma região cinzenta a explorar entre o preto e o branco que se bastam a si próprios, numa ideologia blindada de ceticismo ou religiosidade, que acaba por justificar uma interpretação totalizante da realidade. Em suma, quem se julga dono de uma visão total da realidade, prescinde do diálogo racional com quem ousa discordar e no limite, pode chegar a exercer sobre os outros violência, irracionalmente. O terrorismo religioso ou a abolição forçada da Religião são exemplos-limite destes abismos.

Mas, para falar desse entre-tanto cinzento, será pertinente evocar Joseph Ratzinger que, na sua magistral Introdução ao Cristianismo, fala-nos do crente e do ateu que coabitam e dialogam no nosso interior. “Reconhecer o pequeno ateu que nos habita” dá espaço à dúvida que permite que a fé cresça e dá-nos a humildade capaz de dialogar com outros. Paradoxalmente, esse tal “crente que duvida” terá muito mais dificuldades em dialogar com um fanático que duvida do que com um “seeker”. Por outro lado, um “seeker” não se satisfará com as respostas finais de uma ateísta dogmático. Percorrer lado a lado com os seekers a ponte estreita do diálogo, valorizando a sede espiritual que teima em afirmar-se, e perscrutando nela a ação de Deus, afigura-se como prioridade para os nossos tempos e para a ação evangelizadora da Igreja.

Quanto ao diálogo (não tão prioritário) com o fanatismo e o ateísmo, deve-se ceder à tentação de responder ao mal com o mal, isto é, de deixar que a irracionalidade contagie a racionalidade, sob pena de negar o próprio Deus. Primeiro, deverá começar-se por um exercício de consciência no sentido de reconhecer em si próprio as atitudes de intolerância que cultiva, prontificando-se a corrigi-las. Posteriormente, vem o esforço por percorrer os níveis do diálogo por ordem, evitando cair na troca de argumentos surda. Por fim, tem lugar o dispor-se a compreender os motivos que levaram à opção fundamentalista do outro, acolhendo as feridas que eventualmente motivaram comportamentos violentos. 

IV – O sentido do Humano

Desejando apresentar a resposta Cristã à pergunta sobre a “Identidade Religiosa”, encontramos no documento do Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, um contributo que considero iluminador:

“Cristo, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime (…): a plenitude.” (GS 22)

Na verdade, o movimento de parábola que descreve a Redenção esboça para cada homem e para toda a Humanidade um sentido de realização no além que se vai edificando desde o aquém. A Encarnação do Filho mostra que toda “a natureza humana foi assumida”; a sua Morte “reconciliou” toda a humanidade com Deus; e a sua Ressurreição deu à nossa vida um “novo sentido”.

Cristo, o verdadeiro Deus que não deixa de ser verdadeiro Homem, desafia-nos a encontrar neste esquema existencial – Encarnação, Paixão, Ressurreição – não somente três factos passados e separados que nos são alheios, mas um conjunto indivisível e potencialmente decisivo. Na verdade, podemos encará-lo como chave de leitura para o que de inesperado acontece na nossa vida e como modo de proceder de quem quer viver como gente salva. Se por um lado, são muitos os momentos de Encarnação, Morte e Ressurreição por descobrir na nossa vida; reconhecemos que o sentido da vida é dar a vida, seguindo os passos de Jesus. 

Através de uma intuição visionária, de quem contempla a Igreja além dos limites visíveis e institucionais, o Concílio considerou que a vocação última de todos os homens é uma só – a divinização – chegando a afirmar que “o Espírito Santo a todos dá a possibilidade de se associarem ao mistério pascal, por um modo só de Deus conhecido”. Neste “todos” estão incluídos os homens de boa vontade que caminham honestamente em fidelidade à sua Religião, aqueles que não tiveram condições de escutar e acolher o anúncio da Fé por diversas circunstâncias, aqueles que continuam a buscar verdadeiramente a Deus, apesar de ainda não o terem encontrado, e aqueles que, sem saberem, já foram encontrados por Ele, “por um modo só de Deus conhecido”. 

Concluindo, recorro à minha experiência pessoal de “Identidade Religiosa”, como cristão e como religioso na Companhia de Jesus. Para o efeito, evoco a célebre frase do Papa Bento XVI, na sua Encíclica Deus caritas est: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo.”

Se, como afirma Halik, a “força da Fé” reside na espiritualidade, tudo se joga no encontro misterioso e transformador que cada um poderá fazer com Jesus Ressuscitado, no íntimo do seu coração.  Assim assaltados, como Paulo a caminho de Damasco, a nossa resposta terá de passar por cultivar uma relação de intimidade e confiança, única e intransmissível, que depende do silêncio e da oração fiel. Só desse ambiente de sintonia de corações pode brotar a vocação pessoal, modo único de responder com a vida ao amor de Deus. A vocação inaugura um caminho pessoal de valor incomparável – a consagração, o matrimónio, o sacerdócio, a entrega à ciência, aos mais desfavorecidos,… – para alcançar a vocação comum a todos: a plenitude, a felicidade, a santidade. 

Pessoalmente, encontrei na Companhia de Jesus, o lugar e o modo onde posso viver a minha identidade mais autêntica: a de ser um homem “pecador, perdoado, chamado e enviado”, para servir na missão de Jesus no mundo de hoje e na Igreja real. Desejando viver mais de perto o estilo de vida de Jesus, os votos de pobreza, castidade e obediência que professei são símbolo e vínculo da entrega de vida a Deus. Em suma, reconhecendo-me verdadeiramente amado, só posso amar com tudo o que sou. 

Como diz o Papa Francisco, “a alegria do Evangelho enche a vida dos que se encontram com Jesus”. Estando ainda no início desta viagem pelos caminhos do Evangelho, apenas posso partilhar que vale a pena dar a vida por amor!