A Voz Profunda

Diz-nos Lewis: «Devo manter vivo dentro de mim o desejo do meu verdadeiro país, que não encontrarei até depois da morte;(...) devo fazer com que o propósito central da minha vida seja caminhar para esse país e ajudar outros a fazer o mesmo»

No Domingo passado foi dia 22 de Novembro de 2020 e celebrámos a festa de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo. O próximo Domingo será dia 29 de Novembro de 2020 e celebraremos o primeiro Domingo de Advento, o início do novo ano litúrgico. Todos temos os nossos heróis pessoais, e gostaria de falar um pouco de um dos meus. Nasceu no dia 29 de Novembro de 1898, em Belfast (Irlanda) e morreu a 22 de Novembro de 1963, em Oxford (Inglaterra). Quando era pequeno informou a família que, daí em diante, deveriam chamar-lhe “Jack”, muito embora o seu nome fosse Clive.

Clive Staples Lewis foi um escritor e académico britânico. Professor em Cambridge e Oxford e amigo íntimo de J.R.R. Tolkien, a obra que o imortalizou foi As Crónicas de Nárnia, publicadas entre 1950 e 1956. Se é verdade que Nárnia deixou um impacto na literatura anglo-saxónica, a influência de Lewis não ficou por aí: apesar das resistências encontradas em Oxford, C. S. Lewis foi um dos maiores apologetas cristãos. Se alguém procura um livro de Lewis que o ajude a usar a fé como uma lente para ver o mundo, basta escolher um que tenha sido escrito depois da sua conversão, em 1931. Talvez o leitor tenha já ouvido títulos com Mero Cristianismo, Vorazmente teu, Quatro Amores ou Milagres: são apenas quatro nomes de uma longa lista de obras explicita ou implicitamente cristãs.

Nesta semana entre a comemoração dos 57 anos da sua morte e os 122 anos do seu nascimento, que é também a semana entre a celebração de Cristo Rei e o início da espera do Rei-Menino – uma semana que, maravilhosamente, se dá entre o fim e o início, e não entre o início e o fim –, aproveito para escrever algumas palavras sobre um conceito que, na minha opinião, é absolutamente fundamental para entender o trabalho apologético e literário deste grande autor do século XX. O conceito, dependendo de onde o lemos, pode chamar-se desejo, alegria ou esperança.

Este(s) conceito(s) aparecem com maior clareza, respectivamente, nas obras O Regresso do Peregrino (1933), Surpreendido pela Alegria (1955) e Mero Cristianismo (1952). Andemos uma por uma.

Em O Regresso do Peregrino, Lewis tem como conceito fundamental o “doce desejo” . Na obra, John (a personagem principal) debate-se entre a religião legalista puritana e os seus desejos mais profundos; depois de uma busca longa e honesta, aventureira e dolorosa, acaba por regressar a casa… mas esta não era mais a mesma, porque o herói se encontrara com o seu desejo mais profundo. O livro descreve a peregrinação espiritual de John, que tem tanto em comum connosco; nela, encontramos um dos grandes dilemas de quantos se atrevem a escutar os anseios do seu coração, descrito nestes termos:

«[As coisas que Deus te ensinou a desejar] serão muito diversas daquilo que imaginas. Mas tu já sabes que os objectos que o teu desejo imagina são sempre inadequados para esse desejo. Até o teres, não saberás o que desejavas».

Esta passagem, no contexto da obra, remete para um desejo último, intuído mas desconhecido, que todos temos.

Em Surpreendido pela Alegria, Lewis dá uma nova forma ao mesmo conceito de desejo. Aquilo que desejamos mais profundamente (e, na medida em que o sabemos fazer, também que o desejemos…) é a alegria, a verdadeira alegria. Embora se trate de uma obra autobiográfica — e por isso nada sistemática —, vemos a alegria verdadeira como o indicador, como o objecto intermédio do desejo. Digo “objecto intermédio” porque, para Lewis, o objecto último do desejo não é a alegria, mas Deus – e Deus apenas. A alegria verdadeira, no entanto, é a bússola para essa procura:

«um desejo não satisfeito. É, porém, mais desejável do que qualquer outra satisfação. Chamo-o Alegria. (…) A Alegria (no sentido que dou à palavra) tem apenas uma característica comum com [a Felicidade e o Prazer]: o facto de que, quem quer que a tenha experimentado, a quererá de volta. À parte disso (…) poderia ser igualmente considerado um tipo particular de infelicidade ou luto».

Fundamental para compreender este conceito de alegria e a importância na sua vida, é que Lewis nos tenha relatado que, tendo-a procurado toda a vida, e tendo-a encontrado em Deus, não mais se preocupou com ela, mas com Deus apenas.

Por fim, em Mero Cristianismo, Lewis dedica um pequeno capítulo à virtude teologal da esperança: aconselho quem quer que deseje ler seja o que for de Lewis (ou sequer ver as adaptações cinematográficas de As Crónicas de Nárnia) a começar por ler este capítulo. Permitam-me uma citação um pouco mais extensa.

«A maioria das pessoas, se tivesse aprendido a olhar para o seu próprio coração, saberia que quer, e quer muito, algo que não pode ter neste mundo. Há muitas coisas neste mundo que te-lo oferecerão, mas nunca cumprem a sua promessa. Os anseios que surgem em nós quando nos apaixonamos pela primeira vez, ou pensamos pela primeira vez num mundo estrangeiro, ou estudamos pela primeira vez um assunto que nos interessa, são anseios que nenhum casamento, ou viagem, ou aprendizagem podem realmente satisfazer. (…) Devo manter vivo dentro de mim o desejo do meu verdadeiro país, que não encontrarei até depois da morte; não o posso deixar desaparecer debaixo de outros desejos, ou pô-lo de lado; devo fazer com que o propósito central da minha vida seja caminhar para esse país e ajudar outros a fazer o mesmo».

O desejo é um fenómeno inteiramente subjectivo, isto é, dá-se inteiramente dentro de nós mesmos. A alegria, que é um tipo de desejo, é já mais concreta, porque implica um certo tipo de relação com o objecto desejado. A esperança, por sua vez, é aqui explicitamente cristã e tem o seu centro em Deus.

São, enfim, três conceitos diferentes e cada um seria suficiente para um belo artigo (foi, pelo menos, para um belo livro). No entanto, apresentei-os aqui juntos porque me parecem uma bela proposta espiritual, que desejo partilhar com o leitor. Atrevamo-nos nós a olhar para dentro de nós mesmos e eis o que veremos: entre os nossos desejos mais profundos, um em concreto – atrevo-me a dizer “o mais profundo de todos” – que, independentemente de quanto nos tenhamos empenhado, nunca conseguimos satisfazer. Se o que Lewis nos ensinou tiver alguma verdade, não só não foi, como nunca será – pelo menos neste mundo.

Mas, se olharmos com mais atenção, veremos que esse desejo insatisfeito é o nosso mais antigo companheiro de viagem: esteve presente em todos aqueles momentos em que encontrámos algo que valesse a pena chamar realmente “alegria”. Convido o leitor a examinar estes momentos passados e a estar atento aos futuros: deixados à nossa natural imprudência, continuaremos a querer satisfazer o que não foi feito para ser satisfeito; continuaremos a querer calar aquela «voz profunda»(1*) que nos chama. Convido o leitor a deixar-se chamar e a aprender a ouvir, porque, como nos lembrava o B. Miguel Agostinho Pró – cuja festa, chamemos-lhe coincidência ou providência, foi anteontem… nesta bela semana – «Fala Deus à Alma? Sim, fala, e é dulcíssima a sua palavra». «Não te atrevas a não te atreveres»(2*).

Tenho também alguma esperança que, como efeito secundário destes poucos parágrafos, o leitor possa ter ganho uma pontinha curiosidade para, finalmente, pegar num livro de C.S. Lewis e ler do início ao fim – e eis-nos aqui, entre o fim e o início.

 

 

(1*) C. S. Lewis, As Crónicas de Nárnia: o cavalo e o seu rapaz.

(2*) Ibidem.